Cortázar e Thelonious Monk em Genebra, por Jota A. Botelho

Por Jota A. Botelho


Fotos acima: Julio Cortázar e Thelonious Monk. Abaixo: Julio Cortázar e o Teatro Victoria Hall, Genebra, Suíça.

Em 1967, Cortázar escreveu uma crônica baseada num concerto de Thelonious Monk em Genebra, cidade onde residia seu amigo Claude Tarnaud, nos revelando ainda o grande crítico e apaixonado pelo jazz que foi Julio Cortázar. 

 


Claude Tarnaud e seu amigo Julio Cortázar. A mulher de Tarnaud, 
Henriette Champrel, trabalhava na Onu, em Genebra, como tradutora, assim como Cortázar que era tradutor da Unesco, e ambos eram amigos do casal Cortázar, possivelmente Ugné Karvelis, sua segunda esposa, de 1967 a 1978, também escritora, crítica e tradutora.

 

     A VOLTA AO PIANO DE THELONIOUS MONK
     Concerto do quarteto de Thelonious Monk em Genebra, março de 1966.

    Em Genebra há de dia o escritório das Nações Unidas mas à noite é preciso viver e então de repente um cartaz por toda parte com notícias de Thelonious Monk e Charles Rouse, é fácil entender a corrida ao Victoria Hall para a fila cinco ao centro, os goles propiciatórios no bar da esquina, as formigas da alegria, as vinte e uma que são interminavelmente dezenove e trinta, vinte, vinte e quatro, o terceiro uísque, Claude Tarnaud que propõe um fondue, a sua mulher e a minha que se olham constrangidas mas depois comem a maior parte, especialmente o final que é sempre o melhor do fondue, o vinho branco sacudindo as patinhas nos copos, o mundo nas costas e Thelonious parecendo o cometa que dentro exatamente cinco minutos vai tirar um pedaço da terra como em Héctor Servadac, em todo caso um pedaço de Genebra com a sua estátua de Calvino e os cronômetros Vacheron & Constantin.


Charles Rouse e Thelonious Monk

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https://www.youtube.com/watch?v=jKUiUtT-K9A align:center]
    Agora as luzes se apagam, nós nos olhamos ainda com o leve tremor de despedida que sempre nos invade ao começar um concerto (atravessaremos um rio, será outro tempo, o óbolo está pronto) e o baixista já levanta seu instrumento e o sonda, brevemente a vassourinha percorre o ar do timbal como um calafrio e lá do fundo, dando uma volta totalmente desnecessária, um urso com um gorro entre turco e solidéu se encaminha para o piano pousando um pé na frente do outro com um cuidado que evoca minas abandonadas ou aqueles cultivos de flores dos déspotas sassânidas em que cada flor pisada significava a uma lenta morte do jardineiro. Quando Thelonious se senta ao piano toda a sala se senta com ele e produz um murmúrio coletivo do tamanho exato do alívio, porque o percurso tangencial de Thelonious pelo palco tem algo de arriscada cabotagem fenícia com prováveis encalhamentos nos recifes e, quando a nave de escuro mel e barbudo capitão chega ao porto, é recebida pelo cais maçônico do Victoria Hall com um suspiro de asas apaziguadas, de quebra-mares corretos. Então é Pannonica, o Blue  Monk, três sombras que parecem espigas rodeiam o urso investigando as colmeias do teclado, as toscas garras benevolentes indo e vindo entre abelhas desconcertadas e hexágonos de som, passou somente um minuto e já estamos na noite fora do tempo, a noite primitiva e delicada de Thelonious Monk.

https://www.youtube.com/watch?v=ezbVOIl9XwA align:center]
https://www.youtube.com/watch?v=z0-7QuDjzbs align:center

    Mas isso não tem explicação: A rose is a rose is a rose. Estamos numa trégua, há um intercessor, talvez em alguma esfera nos redimam. E depois, quando Charles Rouse dá um passo até o microfone e seu sax desenha imperiosamente as razões pelas quais está ali. Thelonious deixa as mãos caírem, ouve por um instante, ainda pousa um leve acorde com a esquerda, e o urso se levanta balançando, farto de mel ou buscando um musgo propício para a modorra, sai do banquinho e se apóia na beira do piano marcando o ritmo com um sapato e o gorro, os dedos vão escorregando pelo piano, primeiro na beira do teclado onde poderia haver um cinzeiro e uma cerveja mas só há Steinway & Sons, e depois iniciam imperceptivelmente um safári de dedos pela borda da caixa do piano enquanto o urso se balança cadenciado porque Rouse e o baixista e o percussionista estão enredados no próprio mistério da sua trindade e Thelonious viaja vertiginoso sem sair do lugar, passando de centímetro em centímetro rumo à cauda do piano aonde não chegará, sabe-se que não chegará porque para chegar precisaria de mais tempo do que Phileas Fogg, mais trenós a vela, correntezas de mel e abeto, elefantes e trens endurecidos pela velocidade para superar o abismo de uma ponte destruída, de modo que Thelonious viaja ao seu modo, apoiando-se num pé e depois no outro sem sair do lugar, cabeceando na ponte do seu Pequod encalhado  num teatro, e de quando em quando movimentando os dedos para ganhar um centímetro ou mil milhas, ficando outra vez quieto e com ar cauteloso, medindo a altura com um sextante de fumaça e desistindo de seguir em frente e chegar à ponta da caixa do piano, até que a mão larga a borda, o urso gira paulatino e tudo poderia acontecer nesse instante em que lhe falta apoio, em que flutua como uma alcione no mesmo ritmo em que Charles Rouse lança as últimas veementes longas admiráveis pinceladas de violeta e vermelho, sentimos o vazio de Thelonious afastado da borda do piano, a interminável diástole de um único imenso coração onde batem todos os nossos sangues, e exatamente nesse momento sua outra mão segura o piano, o urso se balança amavelmente e regressa nuvem a nuvem para o teclado, olha-o como se fosse a primeira vez, passeia no ar os dedos indecisos, deixa-os cair e estamos salvos, há Thelonious capitão, há rumo por algum tempo, e o gesto de Rouse retrocedendo enquanto tira o sax do suporte tem algo de entrega de poderes, de legado que devolve ao Doge as chaves da sereníssima.

in “A volta ao dia em 80 mundos – La vuelta ao día en ochenta mundos, 1967” (Julio Cortázar, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht, Ed. Civilização Brasileira, 2008, Tomo II, págs. 25 a 30).
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CONCERTO DE THELONIOUS MONK & QUARTETO EM GENEBRA, 1966
As imagens deste post são fictícias quanto ao concerto em Genebra, mas foram retiradas das turnês que o músico fez pela Europa, em 1966, embora o concerto tenha sido gravado em CD, conforme capa do álbum abaixo.  

[video:https://www.youtube.com/watch?v=MVx3TLybT68 align:center
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Exposição Julio Cortázar em Buenos Aires no seu centenário (1914-2014) e a obra O Perseguidor.

CORTÁZAR E O JAZZ: A Criação Literária
A paixão que Julio Cortázar tinha pelo jazz acabou influenciando a sua criação literária de tal forma que a sua literatura aberta e improvisada pode ser visto como um reflexo dos elementos que compõem as qualidades desta música. Podemos ver esta constante desde o seu primeiro livro “Presencia”, um livro de sonetos, de 1938, sob o pseudônimo Julio Denis, em que ele já nos apresenta um poema intitulado ‘Jazz’, até as alusões que aparecem em “O jogo da amarelinha”, a sua obra mais famosa. Outro exemplo encontramos em “O perseguidor”, baseado na vida do saxofonista Charlie Parker, ou por suas crônicas de concertos de Louis Amstrong e Thelonious Monk no livro “A Volta ao dia em 80 mundos”.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=gCSFWnyArjw align:center

CORTÁZAR E O JAZZ: O Perseguidor
O Perseguidor (fragmentos com ilustrações de José Muñoz) & músicas com Charlie Parker.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=bjYJ0Ul9IFY align:center
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Jota Botelho

7 Comentários

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    1. Para gostar da música de Thelonious

      Confesso que quando conheci a música de Monk ela não me pegou muito, não. Coisas de tradicionalistas, e o Bebop já era um jazz que fugia das antigas tradições que eu me acostumei a ouvi-las. Então, eu criei uma imagem de um prato ou um copo ou um vaso de vidros se espatifando ao chão, em mil pedacinhos, pra depois irmos recolhendo os cacos e tentando colá-los uns nos outros num verdadeiro quebra-cabeças. Para mim a música de Thelonious é isso: cacos estilhaçados que vão sendo restaurados milimetricamente formando um novo todo, de uma precisão cirúrgica. Coisa de gênio. Mas as observações de Cortázar são uma maravilha. Preciosíssimas! Outro gênio. Tá tudo aí, nas entrelinhas.  

  1. Agradeco a Nassif mais uma

    Agradeco a Nassif mais uma vez de ter me socorrido,naquilo que costumo chamar de grande mal entendido.Peco desculpas.Entendi errado.

  2. Se meu amigo Jota A.Botelho

    Se meu amigo Jota A.Botelho nao fosse tao turrao,lhe mandaria alguns livros de Julio Cortazar,acompanhados de alguns de Joel Silveira.Ao que deixa transperecer,vamps por assim dizer,a figura e dura na queda.

  3. A crônica de Julio Cortázar sobre Armstrong

    Louis, enormíssimo cronópio, a crônica do concerto de Louis Armstrong em Paris, no dia 9 de novembro de 1952, no Champs Elysées, também contida no livro “A volta ao dia em 80 mundos / Tomo II”, na voz do próprio autor, com música (All of Me) e fotos de Armstrong. 

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=3Ul-H88EQVg align:after]

    1. O maior de todos
      Botelho, sigo desejando que cronópios, bem mais que famas, alegrem os caminhos por onde você passar.

      Um abraço.

      In “Histórias de Cronópios e de Famas” de Júlio Cortázar.

      Trecho:

      VIAJES 
      Cuando los famas salen de viaje, sus costumbres al pernoctar en una ciudad son las siguientes: Un fama va al hotel y averigua cautelosamente los precios, la calidad de las sábanas y el color de las alfombras. El segundo se traslada a la comisaría y labra un acta declarando los muebles e inmuebles de los tres, así como el inventario del contenido de sus valijas. El tercer fama va al hospital y copia las listas de los médicos de guardia y sus especialidades. Terminadas estas diligencias, los viajeros se reúnen en la plaza mayor de la ciudad, se comunican sus observaciones, y entran en el café a beber un aperitivo. Pero antes se toman de las manos y danzan en ronda. Esta danza recibe el nombre de “Alegría de los famas”.Cuando los cronopios van de viaje, encuentran los hoteles llenos, los trenes ya se han marchado, llueve a gritos, y los taxis no quieren llevarlos o les cobran precios altísimos. Los cronopios no se desaniman porque creen firmemente que estas cosas les ocurren a todos, y a la hora de dormir se dicen unos a otros: “La hermosa ciudad, la hermosísima ciudad”. Y sueñan toda la noche que en la ciudad hay grandes fiestas y que ellos están invitados. Al otro día se levantan contentísimos, y así es como viajan los cronopios. Las esperanzas, sedentarias, se dejan viajar por las cosas y los hombres, y son como las estatuas que hay que ir a verlas porque ellas ni se molestan.

      http://poetasilencioso.blogspot.com.br/2004/11/cronpio-ou-fama.html?m=1

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