Um deserto para todos nós, por André Márcio Neves Soares

Se a maior floresta tropical do mundo perder a guerra para o capitalismo desmedido, o impacto desse desastre tomará proporções globais.

Agência Brasil

Um deserto para todos nós

por André Márcio Neves Soares

Preciso confessar uma coisa, caro leitor: jamais pensei que eu fosse escrever isso um dia, mas, infelizmente, é bem provável que ainda na minha geração tenhamos a confirmação de que a grande floresta amazônica morrerá em algum momento ainda não determinado da nossa história. Apesar de tudo ainda ser incerto, os cálculos mais pessimistas apontam para o final dessa década, quiçá início da outra, quando atingiremos o ponto de não retorno da capacidade de regeneração do maior bioma tropical do mundo. (1) Com efeito, mesmo a grande mídia tão simpática, por assim dizer, aos interesses do capital transnacional tem alertado, exaustivamente, sobre a crescente “savanização” da Amazônia nos últimos anos. A novidade agora é mais alarmante pois, ainda que não se trate de um caso totalmente perdido, as recentes pesquisas científicas apontam para um grau de devastação sem precedentes, especialmente no período dos governos Temer-Bolsonaro.

Todavia, engana-se quem pensa que os infortúnios de um colapso da floresta amazônica é um problema local, no máximo regional, da nossa já castigada América Latina. De fato, se o ponto de regeneração da floresta vier a ser ultrapassado, ou seja, se a maior floresta tropical do mundo perder a guerra para o capitalismo desmedido, o impacto desse desastre tomará proporções globais. Nesse sentido, os fenômenos climáticos que estão a se alastrar por todos os continentes é só a ponta do iceberg do que pode estar por vir, caso não só a floresta amazônica, mas também todos os biomas mundiais continuem a ser devastados em prol do fetiche da mercadoria.

A crítica local que estamos a desenvolver em nosso país – como a agropecuária extensiva em terras desmatadas, o ignóbil projeto de exploração de petróleo na foz do rio amazonas e a continuidade (inexplicável) do garimpo em terras indígenas, ainda que já fortemente mitigada pelo novo governo Lula – precisa ser estendida a todos os atores envolvidos nos principais países poluidores, independentemente da ideologia.

A “era da fervura”, como já está sendo chamada nossa pós-modernidade, se realmente ela já chegou, como afirma o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, trouxe não só febre aos oceanos, mas também diversas enfermidades ao paciente-terra.(2) Realmente, o acúmulo excessivo de gás carbônico na atmosfera, a diminuição diária das extensões da camada de gelo da Antártida e do Ártico, as crescentes ondas de calor e frio extremos todos os anos, com catástrofes climáticas muito pouco naturais, denunciam um planeta na UTI, quase terminal.

Por conseguinte, é imperioso afirmar que a luta pela manutenção do clima como está no nosso globo, este já bastante carcomido em termos de sobrevivência para todas as espécies, incluindo a nossa, não se trata mais de ser de esquerda ou direita; liberal ou marxista; democrático ou autoritário; carnívoro ou vegano. Trata-se, antes de tudo, de salvar o que resta do planeta para o bem de todos, sem distinção de espécie, de território ou até mesmo de estado natural da matéria.

Nesse ponto, vale perguntar: o que faremos quando toda a água doce do planeta, ela por si só um bem escasso, rarear de vez? E se o ar que respiramos se tornar, em algum momento mais a frente, pouco respirável, como já acontece em diversas regiões do planeta, pela excessiva aridez do clima ou, ao contrário, nos locais demasiadamente úmidos pelas chuvas torrenciais? E quanto à matéria física dos produtos comestíveis que estão a ser consumidos em estado inapropriado, seja porque estão envenenados por produtos químicos (agrotóxicos) seja porque estão contaminados pelos chamados PGM (Produtos Geneticamente Modificados)    

Duzentos e cinquenta anos após a revolução industrial, é preciso ter coragem para admitir que o modelo econômico-financeiro de reprodução ilimitada de mercadorias chegou ao fim. Mais até. É preciso reconhecer que o progresso como panaceia para todos os males do mundo está, da forma como ele foi apropriado pelas forças do mercado, a promover uma aceleração da degradação das forças naturais que sempre regeram esse planeta. Não obstante muitos ganhos na qualidade de vida do animal humano – o mesmo não podemos dizer para a maioria das outras espécies da fauna e da flora – com os avanços tecnológicos, especialmente na área da saúde pública, é fato que esse mesmo progresso produziu um crescimento sem precedentes do Produto Interno Bruto (PIB) em todos os países, mesmo nos mais pobres, a um custo incalculável em termos de sustentabilidade da Terra.

Nessa toada, a crítica ao modelo neoliberal da nova razão do mundo, parafraseando Dardot & Laval,(3) não pode se ater apenas em apontar os atuais problemas que estão a assolar o planeta, muito menos os futuros desastres que já podem ser vislumbrados, se o capitalismo desmedido continuar a ditar suas leis de mercado para todas as esferas de vida viva. Ademais, toda crítica deve vir acompanhada de ideias e sugestões que possam, se não resolver o problema por completo, pelo menos apontar novos caminhos que levem à superação dele o mais breve possível.

Por consequência, o caminho do decrescimento, da forma como vendo exposto pelo seu principal teórico, o filósofo e economista francês Serge Latouche, pode ser um bom ponto de partida para quem entende, como nós, que a vida não se resume ao consumo irracional.(4) Não vou nesse texto expor toda a teoria, mas apenas indicar que a teoria do decrescimento, ao invés do que promove seus desafetos, propõe sim um crescimento. Porém, esse crescimento não pode ser aleatório, indiscriminado e individual tanto dos estados quanto das pessoas físicas, como agentes isolados e adversários, um verdadeiro cada um por si, mas atrelado ao desenvolvimento das potências do nosso globo. Em outras palavras, Latouche teoriza sobre um novo modelo de sociedade em que trabalhar seria o meio pelo qual as pessoas teriam condições de aproveitar melhor a vida, na maioria das horas vagas do dia a dia, e não um modelo que torna o animal humano um toxicodependente do trabalho.

Para finalizar, penso ser importante dizer que mesmo esse modelo de Latouche apresenta problemas em relação ao que entendemos ser o ideal de sustentabilidade para o planeta como um todo. Por exemplo, sem a crítica radical do valor de troca de Robert Kurz é quase impossível pensar numa sociedade alternativa ao modelo neoliberal do grande capital. Mas essa crítica vai ficar para um próximo texto. Por hora, a teoria de Latouche já seria um grande avanço em termos civilizatórios. O nosso planeta seria mais feliz. A Amazônia conseguiria sobreviver.

REFERÊNCIA:

1 – https://g1.globo.com/globonews/cidades-e-solucoes/noticia/2023/08/08/amazonia-pode-atingir-ponto-de-nao-retorno-em-2029-entenda-o-que-isso-quer-dizer.ghtml;

2 – https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2023/08/09/era-da-fervura-global-graficos-mostram-oceanos-com-febre-recordes-de-calor-e-gelo-derretendo-tudo-agora.ghtml;

3 – DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. São Paulo. Editora. Boitempo, 2016;

4 – LATOUCHE, Serge. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. São Paulo. Editora Martins Fontes. 2009.

André Márcio Neves Soares é mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH). 

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