Diogo Pacheco, por Walnice Nogueira Galvão

Muita gente acostumou-se a seus programas de rádio e TV por décadas a fio,  divulgando música clássica para as massas, com doutos comentários.

Diogo Pacheco

por Walnice Nogueira Galvão

… E lá se foi nosso querido maestro, aos 96 anos bem vividos, marcados por extraordinária dedicação à sua arte. E ao fomento da cultura musical, a contracorrente de um retrocesso planetário.

Muita gente acostumou-se a seus programas de rádio e TV por décadas a fio,  divulgando música clássica para as massas, com doutos comentários. Atuou na Globo, Eldorado, Cultura, e nesta última até quase o ano de sua morte. A par com a carreira de maestro de casaca e batuta, foi crítico militante de jornal.

Aluno de Koellreuter e discípulo de Eleazar de Carvalho, este, ante a vocação e os talentos do jovem, tomou-o sob suas asas. Fez dele seu assistente na Orquestra Sinfônica Brasileira  e cuidou de sua formação, com bolsas no exterior.

O jovem maestro, que tinha um traço saliente de humor e molecagem,  distinguiu-se pela valorização das vanguardas e pela experimentação que o aproximou do popular. Interessou-se pela poesia concreta e fez recitais misturando-a à musica. Isso nos anos 60, quando tudo era possível. Sempre irreverente, mas profissionalmente seríssimo, criou, com Paulo Herculano, Samuel Kerr e Henrique Gregori, todos eles regentes e instrumentistas profissionais, eruditos de alto bordo, o quarteto vocal Mestres Cantores, que se apresentava com sobrepelizes de alva renda, em camuflagem de coroinha.

O experimento que mais celeuma originou, pela inusitada combinação, foi a escalação de Elizeth Cardoso, que sobressaía entre as cantoras populares, como solista nas Bachianas no. 5. Abalando as convenções, ela soltou a poderosa voz no espaço nobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e no de São Paulo.

Depois nosso maestro faria Alaíde Alaúde, com Alaíde Costa e seu timbre incomum, capaz de cromatismos incríveis, rivalizando com cantoras de jazz como Sarah Vaughn e outras. Ela brilhou  num recital de melodias medievais e renascentistas,  no Theatro Municipal de São Paulo.

Se selecionava cantoras populares para solfejar música erudita, Diogo Pacheco podia reverter o processo, convocando artistas do bel canto para interpretar canções pop, que ouvíamos habitualmente entoadas por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. O espetáculo no Teatro Maria Della Costa chamou-se A Jovem Guarda em Estilo Clássico. Orquestra de câmara e cravo no palco, Zwinglio Faustini e seu belo  basso profondo, Eládio González, Stella Maria: o resultado foi extravagante e divertido. Aqueles homens sisudos, de traje a rigor, em poses de cantor de ópera, escandindo com a voz potente e educada frivolidades como “Ei  Ei/ que onda/ que festa de arromba…” – e por aí afora… É de lamentar que de nada disso restem gravações, por penúria do maestro e desinteresse das empresas.

Outra iniciativa pouco ortodoxa deu-se no João Sebastião Bar, boate de Paulo Cotrim em pleno coração da concentração estudantil, na esquina da rua Major Sertório com a Maria Antonia em que ficava a Faculdade de Filosofia. Patrocinada por intelectuais e artistas, a casa tornou-se um sucesso. Ali pontificaram como atrações fixas a cantora Claudete Soares e o pianista Pedrinho Mattar, este um grande nome do jazz, de prestígio internacional, que tocou até na Casa Branca. Nosso maestro encarregou-se da programação de música erudita do simpático endereço, decisivo na difusão da Bossa Nova em São Paulo, de que se tornou uma espécie de embaixada. Também encenava shows “de bolso” interessantes e variados. Num desfile ininterrupto de atrações, passaram por lá de Tom Jobim a Elis Regina, do Tamba Trio a Geraldo Vandré.

Em seu afã de levar a música clássica a audiências mais amplas, Diogo Pacheco compôs inúmeras trilhas sonoras de montagens teatrais e cinematográficas. Seu trabalho para o filme Veredas da salvação, dirigido por Anselmo Duarte em adaptação de peça de Jorge Andrade, ganhou o prêmio Governador do Estado, o maior do país. Era requestado pelos mais influentes diretores do palco, em peças relevantes.

Quem teve a sorte de ter contato com a brilhante carreira e feitos inolvidáveis do maestro, pode contar, sorte redobrada, com a biografia Diogo Pacheco, um maestro para todos, de Alfredo Sternheim.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

1 Comentário

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  1. Executou um programa belíssimo, levando a musica clássica para a praça, que era do povo, como o céu do condor. Tive a felicidade em morar no Recife, década de 80, assiste o Maestro, em inenarrável concerto, na Praça do Derby, em frente do Quartel da Polícia Militar. Soube, com seu humor, que lhe era particular, afastar o preconceito sobre a musica erudita, restrito a elite, tornando acessível ao povão. E eu lá, em êxtase.

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