No dia das mães, a presença de dona Tereza, por Luís Nassif

Família era tudo para mamãe, incluindo filhos, sobrinhos, cunhadas, irmãs e, especialmente, seus pais. Estava muito à frente do seu tempo.

Hoje é dia de dona Tereza. Há várias mães na família, de minhas irmãs e primas a minhas tias. Sobre todas elas paira a sombra protetora de dona Tereza, tão presente que, no dia de sua morte, apareceu nos sonhos de ao menos três parentes.

Era tão protetora que, um dia, minha prima Rosa Maria disse que a considerava mais da família que seu parente de sangue, seu Oscar. Era uma óbvia injustiça, 

Meu pai veio de uma família cujo patriarca, Slaib Nassif, depois Luiz Nassif, migrou para Rosário, Argentina, enquanto parte dos parentes ficava no Brasil.

Fez fortuna, casou-se com minha avó Carmen Abdalla, de uma família libanesa de Mendoza, bem mais nova. Quando Carmen contraiu tuberculose, mudou-se para Quilmes, nas imediações de Buenos Aires e montou sua loja no recém inaugurado Porto Madero. Minha avó morreu cedo, deixando o caçula Oscar órfão aos 4 anos. Slaib entrou em depressão profunda, os parentes brasileiros mandaram um deles para ajudar nas lojas mas, pelo que contavam minhas tias, deslumbrou-se com o estilo de vida e acabou afundando os negócios. 

Vieram para o Brasil, passaram primeiro por São João da Boa Vista, onde tinham muitos parentes. Depois, para Poços de Caldas. Como dizia um amigo do meu pai – o matemático Lindolpho Carvalho Dias – “com dez anos seu pai era argentino, com dez anos e um dia, virou mineiro”. De fato, era um apaixonado pelo país.

Quando vô Luiz começava a se reerguer, foi derrubado por um AVC e seu Oscar, com pouco mais de 15 anos, tornou-se arrimo de família.

Tinha um modo curioso de enxergar a vida. As irmãs, mais velhas, sentiram mais a perda de status econômico. Ele não queria o mesmo para os filhos. Então, comprou nossa casa, ao lado construiu uma casa bem melhor para as tias, com a tia Rosita casada com Leonardo Mesquita, notável seresteiro carioca.

Os primos ganharam TV a cores antes de nós. Tinham piano, onde eu ia ensaiar minhas aulas, já que em casa não havia. Seu Oscar comprou um prédio no centro da cidade e dividiu ao meio, para permitir que uma parte fosse ocupada pela Farmácia Central Salva Sempre, pelas Lojas de Doce Mesquita, Coma e Repita. 

Foi o que lembrei à prima Rosa, para salientar a injustiça que se cometia contra o tio, que sempre foi o protetor maior das duas famílias. 

A formação nos ensinou a ter uma vida frugal. Mas a presença de dona Tereza era marcante. Embora por vezes externasse desconforto com a diferença de tratamento nas duas casas, tornava-se uma onça em defesa da cunhada e das sobrinhas, se percebesse qualquer ameaça a elas.

Padecia de hipercolesterol, em um período em que havia poucos remédios para tratamento. Lembro-me do Ponstran, caríssimo e que ainda impunha sequelas físicas aos doentes. Tornou-se caso clínico no Instituto do Coração e ganhou 8 anos de sobrevida graças ao  José Renato, jovem cardiologista que a atendeu pela primeira vez, em um plano de saúde, e a encaminhou para o titular da equipe, Sérgio de Oliveira, uma das grandes referências médicas do país, mas pouco conhecido fora do meio médico. Aliás, me deu profunda emoção quando ganhei a Medalha da Inconfidência ao lado do grande Sérgio Oliveira.

Família era tudo para mamãe, incluindo filhos, sobrinhos, cunhadas, irmãs e, especialmente, seus pais. Estava muito à frente do seu tempo. Quando morreu, o apartamento ficou fechado por 6 meses, ninguém com coragem para remexer em seus guardados. Depois desse período, aproveitei um dia em que a família viajou para entrar.

Embrulhado em um pacote, descobri a correspondência de noivado de ambos. Ela dizendo a meu pai que não pretendia aprender tênis no Country Club, como sugeriam minhas tias, e outros sinais de status de uma cidade mineira mas que, nas férias, convivia com a elites empresarial de São Paulo e a estatal do Rio de Janeiro. O que ela queria, mesmo, era ser seu braço direito na farmácia.

A formação árabe impediu que meu pai acolhesse uma parceira inteligente que percebeu, antes dele, as mudanças que ocorriam no setor;

Na infância, a mãe foi acometida de reumatismo infeccioso. Quando se casou com meu pai, foi alertada pelo dr. Rowilson Flora, médico da família, sobre os riscos da gravidez. Teimosa, fez questão de ter os filhos em casa. Se tivesse que morrer, que fosse na sua casa. Teve os cinco em casa.

Quando nasci. dr. Rowilson me levou para a sala, onde estavam cerca de 15 pessoas rezando, ansiosas. E anunciou que a mãe passava bem.

Durante toda a infância, fui desafiado permanentemente por dona Tereza. Primeiro, para ser jornalista. Segundo para, como jornalista, ajudar o Brasil. Era uma apaixonada pelo Brasil, assim como seu Oscar. Aliás, o dia mais feliz do seu Oscar foi quando conseguiu o atestado de naturalização e recebeu todos os amigos em casa, para festejar.

A música era o elemento central da declaração ao país. Da parte da dona Tereza, reunindo os filhos de noite, todos sentados na sua cama, enquanto cantava para nós as músicas de sua preferência. “Sá Maroquinha”, “Chuá Chuá”, as valsas de Carlos Galhardo. Da parte do seu Oscar, montando uma discoteca em 78 rotações, com Inezita Barroso, Dorival Caymmi, Ivon Cury, Zé do Norte,

A vinda para São Paulo, deixando tudo para trás, nas mãos de credores, foi uma tragédia familiar. Dona Tereza entrou em pânico com a possibilidade de casamento dos filhos. Tentou convencer a mim e a Regina – os únicos que trabalhavam – a comprar uma casa grande, onde toda a família pudesse ficar junta.

Os filhos foram se casando, mas o núcleo familiar permaneceu. O primeiro imóvel que eu e Regina compramos foi para os pais. E, em torno deles, nos reuníamos todos os sábados, para o almoço em família. E dona Tereza cumpria sempre o ritual de, antes de servir o almoço, me trazer um prato de arroz puro.

Acompanhou minha carreira até o último dia. Ficou orgulhosa quando a Folha divulgou um comercial nas TVs, para explorar o trabalho que eu havia feito para mutuários do Sistema Financeiro da Habitação. Fez questão de comparecer ao primeiro seminário que montei na Folha, pela coluna Dinheiro Vivo.

Nesse ínterim, fez duas operações de ponte safena. Anos antes, meu pai foi derrubado por um AVC, justamente quando estava recomeçando a reconstruir a vida. E, até o fim, dona Tereza foi a cuidadora.

Durante anos, vivi em sobressalto com telefones. Cada vez que tocava à noite, era mais uma crise de dona Tereza. Eu corria para pegá-la e levá-la para o Instituto do Coração.

Lembro-me que, certa vez, ela internada na Beneficência Portuguesa, acordei de madrugada com um mau presságio, me troquei e fui até o hospital. Fiquei na sala de espera torcendo para que não fosse nada. No dia seguinte, o médico me informou que, de fato, ela quase partiu naquela noite.

Na sua segunda cirurgia, fez um cateterismo prévio com três prognósticos sombrios. O primeiro, que ela poderia morrer na intervenção. O segundo, que o exame apontaria que não havia mais nada a fazer. O terceiro, a possibilidade de uma nova cirurgia.

Mas, teimosa, dona Tereza já garantira que em nenhuma hipótese aceitaria passar por uma cirurgia de novo. Seu médico, José Renato, me falou do dilema. Toda manhã, ela recebia a visita da tia Clélia que costumava ouvir, em sonhos, conselhos do dr. Bié Mesquita, que havia salvo a mamãe na infância. Antes de entrar na sala da UTI, perguntei à tia Clélia o que o dr. Bié tinha dito sobre a operação. Sua opinião é que não poderia operar. Expliquei o resultado dos exames e ponderei que seria melhor o dr. Bié mudar de opinião. Tia Clélia deu um sorriso maroto e disse que ele não iria se incomodar se seu diagnóstico fosse alterado. Mamãe ganhou mais quatro anos de vida.

Depois desse período, um novo cataterismo mostrou que não havia mais nada a fazer. Lembro-me desse dia, ela subindo ao meu apartamento, no 6o andar do mesmo prédio, para me contar o resultado. E eu não consegui falar nada.

No dia da sua morte, saí do meu programa na TV Gazeta e, ansioso, passei na Beneficência Portuguesa, onde estava internada. Encontrei-a meio dopada. Mas abriu os olhos e conseguiu levantar o braço e colocar a mão quente no meu rosto.

Quando saí, me disseram que ainda se levantou e deu uma volta no corredor. Era a visita da saúde.

Acordei de madrugada com a empregada batendo na porta. O telefone havia tocado e, desta vez, não tinha ouvido. Quando cheguei no hospital, as irmãs já estavam lá e dona Tereza havia se ido.

Durante muito tempo, quando chegava de viagens, tinha o impulso de telefonar para sua casa, para saber como estava, mantendo as rotinas de seu tempo.

Depois, fui vendo dona Tereza em cada irmã, cada sobrinho, cada filha. Seus conselhos de que uma mulher deveria ser companheira do marido, jamais dependente; seu amor pelo Brasil, só superado pelo amor pela família.

Quando a selvageria avançou sobre o país, desde 2005, chegando ao ápice com as milícias tomando poder, cada artigo que escrevia, cada peça de resistência, era parte do compromisso que, um dia, fechei com dona Tereza. E ela me inspira, diariamente, a continuar apostando no país.

Luis Nassif

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