Grande mídia e a defesa de uma política externa subserviente aos interesses imperialistas, por Francisco Fernandes Ladeira

Para os articulistas dos principais veículos de comunicação brasileiros, a classificação de um presidente como “democrata” ou “ditador” é seletiva.

Grande mídia e a defesa de uma política externa subserviente aos interesses imperialistas

por Francisco Fernandes Ladeira

Certa vez, Chico Buarque disse que o Brasil, em sua política externa, não deveria falar grosso com os países pobres e fino com as nações imperialistas. Isso significa uma diplomacia voltada para a solidariedade entre os povos oprimidos e não subserviente às grandes potências.

No entanto, para a (colonizada) mídia hegemônica brasileira, a postura de nossa política externa deve ser exatamente o contrário: alinhamento incondicional às agendas geopolíticas de Washington e companhia e, por outro lado, completo desprezo pelas nações periféricas.

Este tipo de postura ideológica ficou bem nítido na cobertura jornalística sobre a VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), realizada no último dia 24, na Argentina.

Conforme sabemos, os países latino-americanos e caribenhos, no decorrer dos séculos, de maneira geral, se desenvolveram “de costas uns para os outros”, seja pela forma de colonização europeia, por se constituírem como economias “concorrentes” (ao invés de “complementares”) e em razão de diferenças culturais.

Desse modo, a Celac surgiu, justamente, para corrigir essa pendência histórica e promover uma maior integração entre os povos da América Latina e Caribe.

Evidentemente, tal iniciativa não é bem-vista pelos Estados Unidos, pois a aliança entre latino-americanos e caribenhos não interessa, em hipótese alguma, para a dominação imperialista que o Tio Sam exerce na região.

Como os interesses da Casa Branca são, automaticamente, também os interesses dos grandes grupos de comunicação brasileiros (espécies de sucursais das agências internacionais de notícias), qualquer tipo de aproximação de nosso país a seus vizinhos subcontinentais será apontado nos noticiários geopolíticos como algo negativo.

Para tanto, são produzidos editorias e matérias que não se furtam em utilizar chavões, lugares-comuns, maniqueísmos, simplificações, padrões duplos de julgamento e, principalmente, distorções grosseiras da realidade.

Em matéria do jornal O Estado de S. Paulo, publicada na terça-feira (24/1), o encontro da Celac foi descrito como “cúpula com presença de países autoritários, [em que] líderes debatem defesa da democracia”. No dia seguinte, um editorial do periódico paulista enfatizou que a participação de Lula no evento em território argentino foi marcada pelo “carinho por ditadores”.

Ao realizarmos um exercício hermenêutico para “desmanipular” os noticiários, entendemos que “países autoritários” e “ditadores” se referem a “governos que não se curvam aos ditames de Washington”: Cuba, Nicarágua e Venezuela.

Já o termo “líder” traz uma forte carga semântica negativa, haja vista que remete a um chefe de “bando”, um tipo de organização “selvagem”, anterior ao que conhecemos por “civilização”. Dificilmente (para não dizer impossível!) vamos constatar em algum veículo de imprensa uma menção a Joe Biden como “líder dos Estados Unidos” ou Emmanuel Macron como “líder da França”.

Já esse (suposto) “carinho por ditadores” se refere à declaração de Lula sobre a necessidade de a Celac tratar Venezuela e Cuba com “muito carinho”, sem ingerências e com respeito à soberania dos povos.

Diga-se de passagem, uma postura que se espera de qualquer tipo de organização internacional democrática como a Celac. Porém, não é o que considera um veículo de imprensa extremamente ideologizado como O Estado de São Paulo, para quem “normalidade diplomática não significa tratar como normais ditaduras militares, comandadas por caudilhos e seus clãs, que mergulham seus povos a cada dia mais na opressão e na miséria”.

Não obstante, o jornal paulista, em tom irônico, ainda minimiza os efeitos dos criminosos embargos econômicos impostos pelos Estados Unidos à Cuba e Venezuela: “é no mínimo curioso que ele considere que esses países são oprimidos por um regime ‘imperialista’ que se autodeterminou a não fazer negócios com eles. Afinal, se o socialismo é tão superior ao capitalismo, por que eles precisariam da maior potência capitalista do mundo para serem livres e prósperos?”.

Nas frases acima, além da carga semântica negativa da palavra “caudilhos”, encontramos um típico exemplo de desonestidade intelectual. Primeiro: os bloqueios às atividades comerciais com Venezuela e Cuba não se restringem aos Estados Unidos; também se aplicam aos parceiros de Washington. Segundo: nenhuma nação é autossuficiente; para se desenvolver necessita de manter relações comerciais com diferentes atores internacionais (prática bastante comprometida quando vigora um embargo econômico).

Seguindo a (tendenciosa) linha editorial do Estado de S. Paulo, Thiago Nolasco, repórter do Jornal da Record, apontou em seu blog que “o saldo da primeira viagem internacional do presidente Lula nos faz lembrar o passado recente […] com a proximidade de ditadores e com promessas de dinheiro a velhos amigos”. No UOL New, Josias de Souza escreveu: “Lula prega democracia no Brasil e oferece carinho a ditaduras companheiras”.

Para os articulistas dos principais veículos de comunicação brasileiros, a classificação de um presidente como “democrata” ou “ditador” é seletiva. Varia de acordo com sua posição no xadrez geopolítico. Se for aliado incondicional dos Estados Unidos; é “democrata”. Caso contrário; é “ditador”.

Além da agenda externa para América Latina e Caribe, na grande mídia também há uma intensa propaganda para que o Brasil se alinhe aos interesses estadunidenses no contexto global. Nesse sentido, um recente artigo de Guga Chacra no jornal O Globo simplesmente propôs o fim dos Brics, bloco das potências não ocidentais (Brasil, Rússia, Índia e China) que, no atual cenário, representa uma considerável ameaça à hegemonia planetária imperialista. “Lula não pode se sentar ao lado de um criminoso de guerra como Putin. Seria um desrespeito a todas as vítimas do conflito na Ucrânia”, argumentou Chacra.

No entanto, este raciocínio não se aplica a outros “criminosos de guerra”, como George W. Bush e Barack Obama, responsáveis por inúmeras agressões a países do Oriente Médio e Norte da África. Dois pesos, duas medidas.

Em suma, o terceiro mandato de Lula, além de enfrentar os cotidianos ataques de bolsonaristas aloprados, que insistem em não aceitar o resultado legítimo das urnas, também tem pela frente um velho e conhecido opositor: a imprensa hegemônica que, como vimos, apregoa uma política externa pautada, exclusivamente, por uma total subserviência aos ditames de Washington e aliados.

Sendo assim, para nos posicionarmos sobre uma determinada questão diplomática, podemos recorrer a uma histórica frase de Leonel Brizola: “se a Rede Globo (e a grande mídia em geral) for a favor, fique contra. Se for contra, fique a favor!”.

***

Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de dez livros, entre eles A ideologia dos noticiários internacionais (Editora CRV).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

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