2017 e o flerte com o fascismo

publicado em http://kadorojas.blogspot.com

Desde o segundo turno da última eleição presidencial ficou evidente que as coisas estavam desorganizadas. Convergindo com a emergência daquele confusionismo político de junho de 2013 e do moralismo requentado com as investigações sobre a Petrobrás, a direita renasceu das cinzas e tirou do armário o orgulho do discurso conservador. Daí para o escancaramento do racismo, da homofobia e do preconceito contra os nordestinos foi um passo – muito embora, por outro lado, tenham se consolidado posições legítimas em defesa do moribundo livre-mercado. A esquerda, por sua vez, perdeu de vez o PSB (que, com o apoio ao PSDB no segundo turno, engatinhava para se tornar a aberração política que é hoje) e viu o crescimento de um discurso asfixiado pelo maldito pós-modernismo – que ressuscitou em nós uma desordem teórica e política, cujo núcleo central é o elogio ao irracional e à ausência de verdade.

Discussões epistemológicas à parte, a esquerda nos últimos dois anos vive um período desfavorável em, no mínimo, três aspectos. Primeiro porque perdeu a ligação com as reivindicações populares, algo que Lula fez como ninguém – e aqui não se trata de reivindicações revolucionárias de um sujeito coletivo ideal, mas reivindicações que estão enraizadas na vida cotidiana do povo, especialmente aquelas ligadas ao consumo, ao bem-estar e à ambição profissional. Segundo porque perdeu o horizonte normativo e aquela característica antecipatória capaz de idealizar uma forma de vida que merece ser vivida e pela qual vale a pena lutar. Terceiro, menos saturada filosoficamente mas igualmente perigosa, é o crescente namorisco com sentimentos fascistas – como nos casos recentes da soltura do goleiro Bruno e do jantar de Chico Alencar com Ricardo Noblat.

O caso de Chico Alencar é espantoso. Não é preciso repassar o conteúdo da biografia de Alencar, basta lembrar que o deputado é um dos principais responsáveis por publicizar os conchavos realizados no congresso nacional e um dos poucos deputados que pode se dar ao luxo de não se mover um milímetro de sua régua de princípios. Chico Alencar se posicionou abertamente contra o impeachment e foi protagonista na cassação de Eduardo Cunha. Apesar de tudo, na semana passada ele cometeu o “crime” de ir a um jantar organizado por Ricardo Noblat – conhecido jornalista reacionário, golpista e anti-pestista. Para piorar, lá encontrou a cúpula do golpe e comeu e brincou entre eles como se entre amigos estivesse. No outro dia, impulsionada por uma manchete maldosa da Folha de São Paulo (“Chico Alencar beija a mão de Aécio e o diferencia de Renan e Jucá”), a reação de setores da esquerda foi quase unânime: Chico Alencar se dobra ao PSDB.

A conclusão, bem como os elementos da medíocre narrativa que atribui a esse patrimônio da esquerda brasileira uma suposta conivência com os golpistas, só pode florescer num estágio patológico na qual a convivência respeitosa entre adversários políticos é vista como abominável. Chico Alencar, por sua vez, ao gravar um vídeo no qual admite o “erro” de ter ido ao referido jantar perdeu a oportunidade de dar uma lição de civilidade e acabou se curvando a esses sentimentos autoritários que fazem reviver as “confissões voluntárias” às quais eram submetidos os adversários de Stálin. Ao reiterar que não pretende passar a imagem de estar “convivendo com os nossos adversários”, Alencar fomenta uma encíclica purista segundo a qual o adversário é inimigo e quanto mais distância melhor. É a encíclica da bolha.

O segundo caso é mais grave. Se o primeiro pode ser considerado fruto de um purismo aprisionador (e, portanto, a má vontade com a convivência democrática emerge da ingenuidade), o segundo beira a traição de princípios. Também não é necessário repassar a biografia de Bruno, basta dizer que ele atuou como goleiro do Flamengo e por lá se envolveu em alguns problemas com a diretoria do clube e com a polícia até que em 2013 foi condenado a 22 anos de reclusão por homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver no caso Eliza Samudio. A defesa apelou contra a sentença em 2013 e, quaro anos depois, essa apelação ainda não foi julgada. Já sabemos o que ocorreu, condenamos moral e juridicamente o sujeito. O crime não poderia ser mais monstruoso. No entanto, (a) enquanto a apelação da defesa não for julgada ele é inocente e (b) mesmo condenado, porque estaríamos atacando o processo de ressocialização do indivíduo?

No segundo caso, a esquerda está diante de uma situação na qual precisa optar entre o direito e a vontade. Ou cumpre-se o direito conforme as conquistas civilizatórias dos últimos dois séculos, inclusive no que tange à presunção de inocência e a ressocialização, ou abraça-se a vontade autoritária do fascismo – segundo a qual o direito deve se curvar às paixões do senso comum. Certamente, esse namorisco incoerente não vai dar boa coisa.

Redação

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