Do vinho envenenado à água pura: a encruzilhada na ONU, por Susana Prizendt

O combate à escravidão contemporânea e a exploração abusiva da terra estão estreitamente vinculados à luta pelo acesso livre e universal à água.

Imagem: Marcelo Santos Braga/Brasil de Fato

do Outras Palavras

Do vinho envenenado à água pura: a encruzilhada na ONU

por Susana Prizendt

Um dos primeiros milagres que a Bíblia atribui a Jesus é a transformação da água em vinho. Desde tempos imemoriais, a bebida alcoólica feita a partir da fermentação da uva tem sido um símbolo da cultura alimentar de diversos povos da região mediterrânea.

Se Jesus transformou água em vinho é porque este último era considerado mais valioso do que a primeira, o que é compreensível, dado o fato de que ele exige trabalho humano para ser preparado, ao passo que a água é um bem que costumava estar disponível na natureza de forma pronta para o uso.

Mas será que nos dias de hoje, em que a disponibilidade de água potável está se tornando cada vez menor, já que seu uso insustentável para atividades não essenciais e sua contaminação por substâncias tóxicas industriais se ampliam dia após dia, podemos considerar que uma transformação do vinho em água é que seria o ideal de milagre, a ser realizado por um enviado de Deus?

Se o vinho for produzido em uma monocultura repleta de agrotóxicos, com certeza, não.

Alguns dias atrás, descobrimos que vinícolas de marcas bem conhecidas no mercado brasileiro estavam utilizando trabalhadores em um sistema de escravidão em seus ciclos produtivos. A situação encontrada no momento de sua libertação, em um município no interior do Rio Grande do Sul, era de azedar qualquer bebida que estivéssemos bebendo e expôs como a ganância empresarial segue ameaçando a vida de trabalhadores e trabalhadoras.

O vinho produzido nessas condições jamais poderia ser tomados como uma bebida santa. Ele pode ter sido vendido e apreciado em empórios e restaurantes chiques, mas simplesmente é uma afronta a qualquer tipo de sacralidade, dado que é fruto de uma violência brutal. 

E práticas violentas parecem ser mais comuns do que o imaginado em lavouras ligadas a grandes empresas deste estado sulista. Trabalhadores resgatados em outro tipo de cultivo, dessa vez o do arrozrelataram levar banhos de agrotóxicos, vindos de pulverizações aéreas, enquanto faziam seu trabalho sem nenhuma proteção. Por trás da produção feita no local, uma das maiores corporações mundiais da produção de venenos, a gigante Basf, apontada pela justiça no processo como responsável, mesmo alegando desconhecer o que ocorria em sua própria cadeia de fornecedores.

Um cafezinho (muito) amargo

E passando do vinho ao café, outra bebida tradicional, descobrimos que trabalhadores da cadeia cafeeira também eram mantidos em situação de escravidão. O fato, agora em Minas Gerais, mostra que a prática segue acompanhando o tal agronegócio brasileiro – aquele mesmo que se diz sustentável e gerador de emprego e renda no país. Neste caso, a situação era tão precária que eles não tinham acesso nem à própria água – voltando aqui a falar da bebida mais essencial a qualquer forma de vida.

A apropriação privada dos elementos naturais básicos, como a água, tem revelado graus de crueldade totalmente incompatíveis com a possibilidade de vivermos em uma sociedade minimamente democrática e equilibrada.

Globalmente, são mais de 2 bilhões de pessoas sem acesso à água potável e mais de 4 bilhões que não podem contar com um saneamento básico que assegure sua qualidade de vida. No Brasil, país das águas fartas, cerca de 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada – um número muito próximo do atual contingente de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave, mostrando que a luta contra a fome e a luta contra a sede precisam caminhar juntas, já que, provavelmente, ambos os flagelos atingem os mesmos grupos de habitantes.

Agora, no mês em que celebramos o Dia Mundial da Água – 22 de março –, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) vai realizar uma conferência histórica para debater seu uso no mundo e buscar o estabelecimento de compromissos globais que assegurem o direito de todos ao acesso a ela. O encontro integra o calendário da Revisão de Meio Termo Sobre a implementação da década de ação “Água para o Desenvolvimento Sustentável 2018-2028” e ocorre após uma lacuna de 50 anos, período em que nenhuma reunião com essa dimensão foi realizada sobre um tema tão vital.

O evento, que acontecerá entre 22 e 24 de março, na sede situada em Nova York, prevê o lançamento da Agenda de Ação pela Água, um documento que reunirá as metas voluntárias estabelecidas por parte de governos e instituições. 

Em um estágio de transformação acelerada do ambiente planetário devido às ações humanas, os compromissos a serem assumidos não poderão ser tímidos. Desequilíbrios extremos já vêm se tornando cada vez mais frequentes pelo efeito da emergência climática, trazendo inundações e secas em lugares já vulneráveis e ameaçando a sobrevivência de comunidades e ecossistemas. O próprio cerrado brasileiro, considerado o berço das águas no país, está sofrendo um processo de deterioração feroz, como consequência do avanço da monocultura da soja em seus territórios, revelando, mais uma vez, como o modelo produtivo do agronegócio é absolutamente indefensável.

Boca seca além das lavouras

Seguindo na trilha do campo para a cidade, em São Paulo, maior município do país, a iniciativa privada também quer complicar o acesso até a um simples copo de água. Donos de bares e restaurantes estão tentando acabar com a lei que exige que eles disponibilizem água filtrada gratuitamente para as pessoas que frequentam seus estabelecimentos. A alternativa oferecida seria, provavelmente, água engarrafada, produto extremamente rentável para a indústria poderosa que o explora – a qual deve estar nos bastidores dessa mobilização.

É mais um capítulo na disputa entre o controle financeiro e o direito a um bem essencial, compondo uma novela em que podemos incluir também a tentativa de privatizar empresas de fornecimento de água, como a SABESP, na mira do governo Tarcísio, no estado mais rico do país.

Um conjunto de experiências internacionais já mostrou como a qualidade do serviço de abastecimento tende a se deteriorar, após a privatização. Vários países estão revertendo os processos de venda e reestatizando empresas de serviços essenciais, em um passo básico para garantir o acesso ao que todos os seres humanos – e, no caso da água, todos os outros seres vivos – têm mais do que direito.

Sabemos que a luta pela água, assim como por outros elementos da natureza dos quais tanto precisamos, seguirá sendo árdua, dado que a situação ambiental planetária continua se agravando. No entanto, é uma luta da qual depende a sobrevivência da nossa espécie e não temos como fugir dela. Já que o agronegócio e as grandes corporações empresariais – e até as organizações locais, como no cenário dos restaurantes paulistanos – revelam não ter pudor em negar o direito ao que é mais essencial, precisaremos nutrir as nossas forças de resistência.

Se grandes vinícolas vendem bebidas com sabor de escravidão, o MST nos oferece um suco de uva orgânico que poderia ser considerado mais sagrado do que qualquer vinho. É dessa energia regenerativa, que brota da fonte da agroecologia, que precisamos nos abastecer.

Nós, movimentos ativistas pela soberania alimentar, manifestamos com toda força que nossa luta é por um país livre da FOME e livre da SEDE, em que todos tenham sempre garantidos um prato de comida saudável e saborosa e um copo de água potável e fresca, ambos sem venenos agrícolas e outros contaminantes tóxicos.

Pela manutenção das empresas públicas de fornecimento de água, pela Reforma Agrária Popular e pela regeneração dos nossos biomas, seguiremos semeando a resistência e a construção de um outro caminho civilizatório, até que possamos brindar – com água boa – a conquista de um mundo no qual não haja mais opressão dos seres humanos e exploração da natureza. 

Obs.: se o resultado da conferência da ONU for alentador e houver um restaurante que sirva água boa gratuitamente a todos que nele entrarem – e não sirva vinhos marcados pelo uso de violência – poderemos até já deixar combinado de fazer um pequeno brinde em uma de suas mesas para celebrar esse primeiro passo rumo à mudança. Se não houver um estabelecimento assim por perto, brindemos em nossas casas, em nossas comunidades, em piqueniques ao ar livre, em nossas roças ou em qualquer lugar em que possamos expressar que a água e as pessoas não podem, e jamais poderão, ser reduzidas a simples mercadorias.

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