Entrevista: Certificação da madeira ilegal da Amazônia é o foco dos criminosos, diz delegado Saraiva

Na Amazônia, criminosos estão preocupados com o DOF, um certificado que "esquenta" a madeira obtida de maneira ilegal

O delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva. Foto: Divulgação/TV Cultura
O delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva. Foto: Divulgação/TV Cultura

Por Cintia Alves
Colaboro Johnny Negreiros

Em alta desde que resolveu dar nomes aos políticos que “estão no bolso” de empresários que exploram os recursos naturais da Amazônia ilegalmente, o delegado da Polícia Federal, Alexandre Saraiva, disse em entrevista exclusiva à TVGGN [assista abaixo] que é possível combater toda sorte de crime que existe na região.

Ele mostrou, com exemplos, que operações ostensivas da polícia podem desmantelar o garimpo e a pesca ilegal em territórios indígenas. Já para combater a madeira ilegal – o grande esquema que derrubou o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles – Saraiva recomendou atacar os “processos administrativos” que levam à expedição do DOC, o “documento de origem florestal”, uma espécie de certificado para as madeiras extraídas.

“O que deve ser atacado são esses processos administrativos, porque é desse processo que sai o DOF [Documento de Origem Florestal], que vai esquentar a madeira da terra indígena.

Saraiva contou, na entrevista ao jornalista Luis Nassif e convidados, que os madeireiros na Amazônia focam no DOF para legalizar o produto do crime. “Já flagramos conversas entre madeireiros em que eles dizem assim: ‘eu não estou preocupado, madeira eu tenho aqui de graça! Eu quero é o DOF, porque com o DOF colado na madeira, ele tira madeira de qualquer lugar – de terra indígena à unidade de conservação”, frisou.

Hoje, na visão do delegado, “a grande ponta de lança da destruição da Amazônia é a madeira, porque ela teve um aumento de preço no mercado internacional em razão de um colapso na produção do sudeste asiático.”

“Há caso na Amazônia, que tive acesso, em que o traficante de drogas, condenado, com várias passagens, saiu do tráfico e foi pra madeira. Entre 2015 a 2019, ele movimentou 41 mil metros cúbicos de madeira, que dá 18 milhões de reais. É só ele fazer uma continha: por tráfico de drogas, eu respondo de 5 a 15 [anos de reclusão]. Isso aqui [madeira ilegal], detenção de 6 meses a um ano mais pagamento de cesta básica.”

Saraiva conhecida o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, executados na região do Vale do Javari, próxima à fronteira com o Peru, no início de junho de 2022. Eles viajavam a região justamente para expor os esquemas ilegais que ameaçam a vida de povos originários e a preservação do meio ambiente.

A situação ali é de uma organização criminosa que explora o tráfico de drogas, a madeira ilegal, o ouro. É como se fosse uma holding de uma empresa criminosa. E para uma organização criminosa, não faz diferença se o dinheiro vem da madeira, do tráfico de cocaína, do garimpo. É uma organização criminosa horizontalizada, formada por diversas células“, pontuou Saraiva.

Para ele, a questão na Amazônia é um problema de ordem política. “A percepção que eu tinha quando trabalhei na Amazônia é a mesma percepção que eu tinha no Rio de Janeiro 30 anos atrás. O Estado vai perdendo o controle. A reversão do quadro é extremamente complexa. A questão da repressão ao garimpo, ao desmatamento, sob o ponto de vista operacional é simples. Nós temos capacidade operacional, temos expertise para acabar com aquilo em seis meses. Agora, ultrapassar os entraves burocráticos, os entraves políticos, aí a conversa é outra.”

Assista:

DROGAS, OURO, MADEIRA ILEGAL: A HOLDING CRIMINOSA DO AMAZONAS

“A situação ali é de uma organização criminosa que explora o tráfico de drogas, a madeira ilegal, o ouro. É como se fosse uma holding de uma empresa criminosa. E para uma organização criminosa, não faz diferença se o dinheiro vem da madeira, do tráfico de cocaína, do garimpo. É uma organização criminosa horizontalizada, formada por diversas células. Há milhares de hectares de plantação de coca do lado peruano, aquela rota do Solimões é muito disputada. A cidade de Benjamin Constant, que está do lado brasileiro da fronteira com o Peru, é tida como cidade de nascimento da [facção criminosa] Família do Norte. Ou seja, é um local de absoluta ausência do Estado. Pelas falas do presidente da FUNAI, dizendo que o garimpeiro é vítima, dão ainda mais força para a prática do ilícito, como se garimpo não fosse crime.”

O PODER POLÍTICO LOCAL RESPALDA CRIMINOSOS

“Eu comecei a trabalhar na Amazônia em 2011. Antes, fui voluntário em Roraima, depois Maranhão, Amazonas e um pouco no Pará também. Em Roraima e no Amazonas vi manifestações de garimpeiros, de madeireiros ilegais. Prefeito de cidade em Roraima já me pediu para liberar. É uma coisa que só no Brasil existe: criminoso fazer manifestação [política].”

INDIGENISTA BRUNO PEREIRA DEU PREJUÍZO MILIONÁRIO AO CRIME

“Na última operação que fizemos, a Corumbá, uma das mais bem sucedidas, nós destruímos 60 balsas de garimpo. E o Bruno foi o elo entre as instituições, ele tinha muitos bons contatos na ponta e tinha a confiança tanto da Polícia quanto do Ministério Público. É uma pessoa que fará muita falta nesse momento. Assim como o Dom Phillips, que eu tive a oportunidade de conversar por duas horas para o livro dele. (…) É muitíssimo provável que o Bruno Pereira esteja na lista de vítimas [do crime na Amazônia], porque cada balsa daquela custava de 100 a 150 mil reais. Só na Corumbá foram destruídas 60 balsas, e Bruno era uma pessoa muito atuante. Era servidor da FUNAI na época.”

FUNAI, IBAMA, PF: TODOS DESARTICULADOS

“Depois dessa operação, e acho que depois de uma outra, ele [Bruno Pereira] foi exonerado, se licenciou [da FUNAI] e continuou exercendo o trabalho dele de forma independente, por ideal. Porque quando o Estado se ausenta, algumas pessoas da sociedade civil, de forma legítima, tentam defender o patrimônio público, e ninguém pode ser criticado por isso, ainda que seja arriscado. Não tinha mais a FUNAI, não tinha mais o IBAMA, e a Polícia Federal – a parte de meio-ambiente – foi completamente desarticulada.”

EXÉRCITO DEVE REVER DOUTRINA NA AMAZÔNIA

“A atuação do Exército [na Amazônia] sempre foi muito burocrática. Em vários casos, fui a reuniões onde me falavam assim: ‘não, não pode destruir as balsas’. Se não for para destruir, eu nem vou, nem mando a minha equipe. É o instrumento do crime [que está na balsa], no local do crime, eu não tenho condições logísticas de retirar [a balsa dali], como que eu vou deixar isso lá?”

“O que a gente precisa é [mudar] essa doutrina vigente nas Forças Armadas, esperando eternamente um inimigo externo – enquanto isso, nós temos um inimigo interno que está corroendo o Estado por dentro, debaixo das barbas do Exército e das Forças Armadas, que são as únicas instituições que têm estatura, capacidade operacional de confrontar essas organizações criminosas na Amazônia. Nós temos a Lei Complementar 97, que diz que o Exército pode fazer isso na zona de fronteira. Existe também dois decretos: o 4411 e o 4412, de 2002, que dizem que o Exército pode atuar em terras indígenas e em unidades de conservação. Então, é preciso mudar essa doutrina, porque existe, claro, a possibilidade de um inimigo externo, mas existe também um insurgente criminoso que domina territórios.”

FALTA VONTADE POLÍTICA PARA ENFRENTAR O CRIME NA AMAZÔNIA

“A percepção que eu tinha quando trabalhei na Amazônia é a mesma percepção que eu tinha no Rio de Janeiro 30 anos atrás. O Estado vai perdendo o controle devagarzinho, vai cedendo espaço. Chega em determinado momento em que a reversão do quadro é extremamente complexa, difícil, com enorme custo humano. A questão da repressão ao garimpo, ao desmatamento, sob o ponto de vista operacional é simples. Nós temos capacidade operacional, temos expertise para acabar com aquilo em seis meses. Agora, ultrapassar os entraves burocráticos, os entraves políticos, aí a conversa é outra.”

A BOIADA DE RICARDO SALLES CONTINUA PASSANDO

“O esquema ilegal do Salles está funcionando a todo vapor. Eles não conseguiram recuperar as madeiras apreendidas, mas o esquema de funcionamento da retirada da madeira ilegal da Amazônia continua. É bom que se diga que isso aí funciona com base em corrupção. Os europeus gostam de dizer: ‘a madeira que vocês enviam é documentada, a gente não tem culpa’. Não é bem assim. Madeira documentada não é sinônimo de madeira com origem lícita, e isso vale para [pesca ilegal de] pirarucu também. Não adianta proteger de um lado e não proteger do outro.”

O MERCADO QUE GANHA COM A PESCA ILEGAL

“Nós já fizemos uma operação chamada Podocnemis, em que prendemos a dona do restaurante mais famoso de Manaus. Eles tiravam, por semana, 500 tartarugas, na época de desova no Rio Branco. É uma espécie que está em um beco sem-saída: eles pegam as matrizes, saqueiam os ninhos. (…) Havia um projeto do IBAMA chamado Projeto Quelônios. Mataram o colaborador do IBAMA. O governo, ao invés de dar uma resposta forte, fechou a base. E todos, depois, receberam uma nota fiscal.”

O ESQUEMA ILEGAL DOS MADEREIROS

“Essa madeira que nós apreendemos, [para destravar] eles abrem processos administrativos nos órgãos estaduais de meio ambiente para gerar o DOF, o Documento de Origem Florestal. Para ficar fácil de entender: imagina uma empresa que é especializada na venda de carros roubados ou furtados. É claro, ela pode vender como sucata, como peça avulsa, mas se ela tiver um esquema no DETRAN que consiga esquentar aquele carro, vai ganhar muito mais dinheiro. E é isso que os madeireiros fazem.”

O PROBLEMA É O ‘DOF’

“O que deve ser atacado são esses processos administrativos, porque é desse processo administrativo que sai o DOF, que vai esquentar a madeira da terra indígena. Há caso na Amazônia, que tive acesso, em que o traficante de drogas, condenado, com várias passagens, saiu do tráfico e foi pra madeira. Entre 2015 a 2019, ele movimentou 41 mil metros cúbicos de madeira, que dá 18 milhões de reais. É só ele fazer uma continha: por tráfico de drogas, eu respondo de 5 a 15 [anos de reclusão]. Isso aqui [madeira ilegal], detenção de 6 meses a um ano mais pagamento de cesta básica.”

PORQUE A EXTRAÇÃO DE MADEIRA CRESCE NA AMAZÔNIA

“Já flagramos conversas entre madeireiros em que eles dizem assim: ‘eu não estou preocupado, madeira eu tenho aqui de graça! Eu quero é o DOF [Documento de Origem Florestal]’. Porque com o DOF colado na madeira, ele tira madeira de qualquer lugar – de terra indígena, de unidade de conservação… Hoje a grande ponta de lança da destruição da Amazônia é a madeira, porque ela teve um aumento de preço no mercado internacional em razão de um colapso na produção do sudeste asiático. O sudeste asiático ainda é o maior produtor de madeira do mundo, mas vem oferecendo cada vez menos madeira no mercado internacional. Então, o preço da madeira subiu, de modo que, hoje, o negócio dos madeireiros é chegar na área, tirar a madeira toda, vender e ir embora. (…) É o pior negócio do mundo que a gente faz, porque a gente está vendendo uma madeira que leva de 200 a 400 anos para se formar, não é um recurso tão renovável assim. Aí vira móvel na Europa, agrega-se valor na Europa. O desmatamento na Amazônia gera emprego na Europa.”

A EUROPA LUCRA COM A MADEIRA ILEGAL DA AMAZÔNIA

“Quando a gente pega o regulamento que trata da importação de madeira de florestas tropicais, a legislação europeia, que é o regulamento 995/2010, é um regulamento extremamente permissivo, frouxo. Já o regulamento europeu que trata da importação de carne bovina tem mais de 200 artigos e a palavra ‘rotulagem’ está escrita lá 35 vezes, com uma cadeia de custódia rigorosa. Não sou contra, sou a favor [do rigor na lei], só não entendo porque não fazem isso com a madeira também. Mas a explicação é óbvia: a nossa madeira entra na Europa como insumo para a economia deles, ao passo que a nossa produção agropecuária entra como concorrência. Eu não tenho pena nenhuma do agronegócio, acho que merecem todo preconceito por isso, porque eles têm uma bancada ruralista que defende fortemente os madeireiros. O que uma organização criminosa quer? Parecer agricultor, parecer pecuarista, mas na verdade eles estão ali entrando, devastando tudo, grilando terra.”

FALTA VONTADE POLÍTICA PARA VENCER O GARIMPO

“Nós provamos que é possível resolver o problema [do garimpo]. Primeira coisa: vamos descobrir como funciona a logística. Chega por avião e por barco? Ah, é? Quem são os pilotos? Fulano, Beltrano, Ciclano. Começamos uma operação de inteligência, descobrimos os compradores, descobrimos os pilotos, fizemos um pedido na Justiça, apreendemos todos os aviões do garimpo – 14 aviões, ficaram lá na frente da Superintendência, parecia força aérea. Suspensão do brevê dos pilotos. E colocamos uma corrente no Rio Uraricoera, uma base formada por elementos da FUNAI, da Polícia Federal, do IBAMA e do Exército. Depois de dois meses, tinha garimpeiro saindo ainda de lá. Nós praticamente zeramos o garimpo na terra Yanomami naquela época. É plenamente possível resolver o problema, o que não se tem é vontade política.

“Não basta criar unidades de conservação, não basta criar terra indígena, é preciso que sejam designados os meios necessários para tomar conta daquela terra, porque, na criminologia, uma das causas principais do crime, o que que é? É ausência de guardião, que pode ser o policial, o servidor da FUNAI, um satélite: o importante é passar para a população que o Estado está tomando conta daquela área. Eu chamo de ‘efeito Lei Seca’. Qual a probabilidade de você ser parado na Lei Seca? 0,001 por cento, mas isso faz com que 80% das pessoas deixem de consumir álcool antes de dirigir. É isso que é necessário. E isso pode ser feito.”

COMO DERROTAR O CRIME

“Quando nós fizemos a operação Corumbá, eu cheguei pro meu chefe e falei assim: ‘ Quer resolver? Eu preciso só de 60 homens e dois helicópteros’. Com a nova tecnologia de satélite, a gente cria um protocolo: a balsa, uma vez detectada, em 15 dias ela tem que estar no fundo do rio. Eu fico constrangido como brasileiro quando dizem que o problema da Amazônia é dinheiro. Não é nada disso. Se você pega 10 fiscais do IBAMA, cinco peritos da Polícia Federal, [e pergunta] qual foi o estado que mais desmatou? Mato Grosso e Pará? Então vocês vão sofrer auditoria nos processos de autorização de desmatamento. Nós fizemos isso no Amazonas. O que aconteceu? O órgão estadual cancelou metade dos planos de manejo. Viraram pra mim e falaram assim: ‘Você vai quebrar a indústria madeireira no Amazonas’. Eu falei: ‘eu não, eu vou quebrar a indústria criminosa no Amazonas’. Porque eu afirmo aqui, sem medo de errar: 99% da madeira retirada da Amazônia é completamente ilegal. Primeiro porque a matéria-prima é de graça. Segundo, o segundo principal insumo da indústria madeireira é energia elétrica. Eles roubam da rede. (…) Plano de manejo, inventário, tudo isso é fraudado. (…) Como que alguém vai conseguir madeira nativa dentro da lei e competir com esse pessoal? É impossível. É por isso que o ipê do Brasil está sendo vendido, nos Estados Unidos, pelo mesmo preço de pinos. Na Europa, pelo mesmo preço de eucalipto.”

Redação

1 Comentário

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  1. Olá Nassif, boa noite!!

    Ótima entrevista! Mas, apenas a título de contribuição, gostaria de esclarecer um ponto sobre o DOF.

    Trata-se do último documento do processo, aquele que permite transportar produtos de origem florestal, madeireiro ou não.

    A fraude, o “esquentar” a madeira ilegal, inicia lá no primeiro documento: o Plano de Manejo da área florestal. Na sua elaboração é que se faz o Inventário Florestal, o levantamento que irá dizer o quanto de madeira poderá ser explorada, o ciclo de corte, etc. É o principal instrumento de planejamento para exploração.

    Já analisei diversos desses documentos frente à realidade da exploração em campo. É óbvio que as medições no inventário não terão uma precisão milimétrica. Entretanto, encontrei erros que chegavam a 60%. E, curiosamente, sempre o erro era para mais. Por exemplo, o inventário dizia que seriam extraídos 10 mil metros cúbicos e na verdade, na exploração, só saiam 4 mil.

    Você pode se perguntar: para que serve um planejamento com tamanho erro?

    Ocorre que, é em função do volume de madeira constante no Plano de Manejo que será feito o Plano de Operação Anual, o qual será a base para o órgão ambiental emitir a autorização de de extração.

    No exemplo acima, teria autorização para extrair 10 mil, mas só seriam efetivamente extraídos 4. Sobra um saldo de 6 mil para esquentar madeira ilegal. Se forem fiscalizar o pátio onde estão as madeiras, caso encontrem 10 mil, esse volume estará coberto pela autorização de extração, caseada no Plano de Manejo e no de Operação Anual – portanto, “legal”.

    Assim, facilmente conseguirá o DOF para transportar. Pois ele funciona como um sistema de compensação entre pátios. Se vendo madeira, debita meu pátio e credita o do comprador.

    Espero ter contribuído com esse necessário debate.

    Parabéns pelo seu importante trabalho.

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