Por que o Egito ainda não abriu totalmente sua fronteira com Gaza

Egito vive um dilema: como ajudar o povo palestino massacrado pela guerra de Israel sem abrir a porteira para um segundo Nakba

Brasileiros na Faixa de Gaza, aguardando retorno para o Brasil via Egito. Foto: Itamaraty/Divulgação
Brasileiros na Faixa de Gaza, aguardando retorno para o Brasil via Egito. Foto: Itamaraty/Divulgação

Por Patrick Wintour

No The Guardian

O Egito tem estado preso num dilema há semanas sobre a abertura da passagem de Rafah para Gaza: querer ajudar os palestinos mais gravemente feridos a sair, mas recusar-se veementemente a contemplar os refugiados com vagas na península do Sinai. “Estamos preparados para sacrificar milhões de vidas para garantir que ninguém invada o nosso território”, disse o primeiro-ministro do Egito, Mostafa Madbouly, no início desta semana.

As negociações sobre a libertação de palestinos feridos e de alguns cidadãos estrangeiros, em grande parte supervisionadas pelo Qatar, tem estado indissociavelmente ligadas ao fluxo de ajuda do Egito para Gaza através da travessia. O presidente dos EUA, Joe Biden, negociou uma passagem para ajuda através de Rafah, mas os níveis são baixos em comparação com o que é necessário. Na quarta-feira, o coordenador humanitário da ONU, Martin Griffiths, apelou novamente a Israel para reabrir Kerem Shalom, a passagem que controla no extremo sul de Gaza.

Alguns criticaram o Egito e o seu presidente autoritário, Abdel Fattah El-Sisi, por não abrirem as suas fronteiras aos palestinos desde que o bombardeamento de Israel começou em resposta à violência brutal do Hamas em 7 de Outubro.

Sisi disse na cimeira de paz do Cairo, em 21 de Outubro, que o mundo nunca deve tolerar a utilização do sofrimento humano para forçar as pessoas a deslocarem-se. “O Egito afirmou, e reitera, a sua veemente rejeição da deslocação forçada dos palestinos e da sua transferência para terras egípcias no Sinai, pois isto marcará o último suspiro na liquidação da causa palestiniana, destruirá o sonho de uma independência do Estado Palestino e desperdiçará a luta do povo palestino e dos povos árabe e islâmico ao longo da causa palestina que dura há 75 anos”, disse ele.

Vazamentos de dentro do governo israelense, na forma de um documento conceitual do Ministério da Inteligência escrito este mês [leia mais aqui], sugerem que um dos planos de Israel tem sido, de fato, expulsar dezenas de milhares de palestinos para o Sinai, numa base nominalmente temporária. Os palestinos temem uma repetição do que chamam de Nakba ou catástrofe – a expulsão de 700 mil palestinos em 1948, após a criação de Israel.

Parece também que o Egito não quer repetir a experiência do Líbano e da Jordânia, que há décadas acolhem refugiados palestinos. Sisi considera o alojamento de até 1 milhão de palestinos em campos no seu país um risco político que não vale a pena correr.

Alguns dos protestos pró-palestinos que ele autorizou já usaram os slogans e símbolos da revolução da Primavera Árabe de 25 de Janeiro de 2011 no Egito, gritando “pão, liberdade e justiça social”. Sisi precisa de canalizar o sentimento pró-Palestina em seu benefício.

Até mesmo as referências a um êxodo em massa deixam Sisi nervoso. O meio de comunicação Mada Masr, com sede no Cairo, foi suspenso por seis meses e encaminhado ao procurador-geral depois de publicar um relatório sobre o que dizia serem planos para o deslocamento dos palestinos de Gaza no Sinai.

Na quarta-feira, Rafah abriu para a evacuação de dezenas de palestinos feridos e centenas de portadores de passaportes estrangeiros, mas ninguém sabe quanto tempo essa situação vai durar. Além disso, o processo de seleção de quem pode sair – negociado entre Israel e o Egito no Qatar – é opaco. As embaixadas nacionais, ao que parece, podem fazer lobby para que os cidadãos atravessem a fronteira, mas não têm voz ativa.

A preocupação do Egito é que o fluxo atual se transforme numa avalanche: Sisi reuniu uma massa de tanques no lado egípcio da fronteira para evitar tal ocorrência.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que deverá estar na região na sexta-feira, espera claramente que um fluxo ordenado de cidadãos estrangeiros que saem de Gaza continue e que possa levar à libertação de mais reféns, a maiores fluxos de ajuda e até a uma pausa humanitária, criando um círculo diplomático virtuoso.

A ONU disse na terça-feira que 59 caminhões transportando água, alimentos e medicamentos entraram em Gaza através de Rafah, o maior comboio desde que a entrega de ajuda foi retomada em 21 de Outubro, elevando o número total de caminhões para 217. O objetivo é chegar a 100 caminhões por dia no fim de semana.

O fluxo normal antes do bloqueio imposto por Israel era de 500 a 800 caminhões por dia, mostrando a profundidade do desastre humanitário.

As autoridades israelitas também estão a começar a destacar a ajuda que entra em Gaza em tweets destinados ao consumo internacional. A entrada de combustível, necessário para operar equipamentos salva-vidas, continua proibida, mas a água está agora a ser entregue por Israel através de uma conduta existente.

Num artigo no Washington Post esta semana, Blinken explicou a Israel que seria do seu próprio interesse de segurança permitir que o Egito enviasse mais ajuda para Gaza. Ele escreveu: “Fornecer ajuda e proteção imediata aos civis palestinos no conflito é também uma base necessária para encontrar parceiros em Gaza que tenham uma visão de futuro diferente da do Hamas – e que estejam dispostos a ajudar a torná-la realidade. Não conseguiremos encontrar esses parceiros se eles estiverem consumidos por uma catástrofe humanitária e alienados pela nossa aparente indiferença à sua situação.”

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Redação

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