Vale a pena respeitar as leis e a Constituição? (ou os “fins” justificam os “meios”?)

No atual debate sobre a crise política que acomete o Brasil, quando a legalidade de algumas estratégias da Operação Lava Jato são postas em xeque ou a constitucionalidade do processo de impeachment é questionada, não é incomum que se ouçam, seja nas redes sociais, em rodas de conversas de amigos ou familiares, indagações como: “por que é que precisamos defender a lei e a Constituição, quando os próprios representantes eleitos parecem descumpri-la?” ou: “Por que devemos respeitar a Carta Maior mesmo em processos que atinjam pessoas e governantes com os quais não concordamos”? Neste post, trataremos do valor do respeito à Constituição, a “pedra fundamental” de nossa sociedade que, independentemente do partido no poder, será sempre a bússola que trará segurança aos direitos dos cidadãos brasileiros.

As crises econômica e política que assolam o país, os escândalos de corrupção diariamente presentes nos noticiários e as insatisfações com serviços e políticas públicas parecem ser elementos de um cenário que leva considerável parte da população ao descrédito com as instituições e as leis que regem o país. Uma das consequências desse ceticismo é a aposta em qualquer iniciativa que pareça combater esse contexto, custe ela o que custar.

Esse parece ser o caso da Operação Lava Jato, que, embora tenha expressivo valor por estar contribuindo para desvendar profundos esquemas de corrupção envolvendo importantes figuras do setor público, agentes políticos de dezenas de partidos – da situação e da oposição – e representantes de algumas das mais importantes figuras do empresariado nacional, enfrenta atualmente graves questionamentos quanto à legalidade de muitas de suas estratégias (referentes, por exemplo, à condução coercitiva de investigados, ainda na fase de inquérito, sem que tenham sido previamente intimados – uma prática típica do período ditatorial; ou à divulgação de grampos ilegais que envolvem a figura do Presidente da República).

Também o processo de impeachment da Presidenta da República configura exemplo desse tipo de ação que, para muitos brasileiros deve ocorrer “custe o que custar”, mesmo que seu trâmite não respeite a Constituição, e mesmo que não cumpra os requisitos constitucionais, como a configuração de crime de responsabilidade pela Presidenta. O raciocínio seria o de que, como a Constituição “não funciona”, ela deve ser descartada em virtude de um suposto benefício maior.

Contudo, não se pode esquecer que a Lei Maior havia sido empregada para fundamentar o caso da Operação Lava Jato em boa parte de seu andamento, o que nos dá um indício de que a Constituição não seja frágil ou mera “protetora de bandidos”. Pelo contrário, ela é que proveu insumos legais para as investigações, até o ponto em que estas ultrapassaram a barreira da legalidade. O mesmo vale para a oposição ao Governo Dilma Rousseff. A Constituição possui ferramentas que garantem o pleno exercício da crítica e, em caso de cometimento cabal de crime pessoal de responsabilidade por parte da Presidenta da República, cabe a aprovação de um processo de Impeachment. Logo, se há provas e se elas são consistentes, o Texto Fundamental prevê a possibilidade de afastamento. Se não há, não é legítimo o processo. E o mesmo procedimento vale para questões cíveis, administrativas, penais. É o princípio do devido processo legal, igualmente previsto na Constituição.

A Constituição é uma espécie de “pedra fundamental” da sociedade, por dois motivos essenciais. Primeiro, ela significa o projeto de Brasil, o “programa de Estado” de nosso país, e não meramente de governo. Certamente ela deve ser continuamente aperfeiçoada, mas com a preservação de seu profundo espírito democrático e republicano. Segundo, não se deve negligenciar a questão legal envolvida no fato de a Carta Maior funcionar como o alicerce de todo o arcabouço jurídico da nação. É a partir dela que todas as demais legislações são formadas: direitos sociais, trabalhistas, políticos, ambientais, econômicos, de trânsito, de saneamento, e tantas e tantas outras categorias. Por sinal, há questões tão importantes as quais, segundo seus próprios preceitos, por serem a espinha dorsal das garantias que conformaram o desenho dessa Constituição, jamais poderão ser alteradas: os direitos e garantias individuais, a forma federativa de Estado, a separação dos poderes, e o voto direto, secreto, universal e periódico.

Neste sentido, todo ataque à Constituição é um ataque, por um lado, à sociedade brasileira e ao seu melhor projeto; por outro, à arquitetura jurídica que estabelece como nós nos organizamos enquanto Estado, e tudo o que decorre daí. Violar o núcleo da Carta Maior significaria, de uma parte, termos governantes que colocassem em risco a democracia, a separação entre os Poderes, os direitos individuais ou o federalismo; de outra, promover o afastamento de um Presidente da República sem a caracterização de crime para tanto. Sem cometer os delitos que justamente significariam o alijamento da democracia, um Presidente deposto desta forma resultaria na negação desse fundamento democrático que constitui o cerne da Constituição.

Por isso, a retirada de um presidente eleito do poder, de modo a afrontar a Constituição, configuraria um ataque ao seu coração, por dois fatores: a desestabilização de toda a estrutura legal conformada a partir da própria Constituição e, igualmente, a deslegitimação do projeto cidadão expresso como seu conteúdo.

O significado prático desse desequilíbrio político-normativo é o que se costuma chamar de arbítrio ou “arbitrariedade”: um critério que pode ser usado a favor de uma pessoa pode ser usado contra outra, e não haverá problema nisso. Se nós aceitamos que ilegalidades podem ser cometidas, seja contra outras “ilegalidades”, seja em nome de um “bem maior”, nós aceitamos que elas possam vir a ser cometidas contra nós mesmos.

Afinal, a depender de quem estiver no poder, o arbítrio poderá ser distinto: o que é “bem maior” agora deixará de sê-lo em outro momento; o que é “ilegal” agora poderá deixar de sê-lo, para uns e não para outros, em um segundo momento. Afinal, quem é que define o que é “bom” ou “certo”? Essa, por sinal, é justamente uma das razões de ser da Constituição: ela parametriza, após um intenso debate social – como o que ocorreu em nossa Constituinte, entre 1986-1988 – quais são os padrões de aceitação do que é adequado, justo, probo, ideal. Nem todos ficaram plenamente satisfeitos com as definições ali contidas, mas a partir da aprovação da Carta Maior, todos nós passamos a estar a ela submetidos, e com base em suas diretrizes seremos beneficiados e responsabilizados. Essa é a essência do Estado de Direito.

Na prática, o desrespeito ao que for de mais central na Constituição será necessariamente o desrespeito a cada um de nós, porque esse achaque sempre significará o arroubo da isonomia: entre forças políticas, entre instituições e cidadãos, entre pessoas.

Nossa resposta é outra: evitemos o arbítrio com mais respeito à Constituição; evitemos o risco de fragilização da democracia com mais democracia. Respeitemos o devido processo legal, doa a quem doer, mesmo que a parte que defendemos ou que, por nossos princípios, considerarmos como correta não se sagrar vencedora. Pois a Justiça não é mero ato de vontade, mas sim a equilibrada e isonômica aplicação de critérios na avaliação dos atos dos cidadãos a partir de princípios aceitos por toda a sociedade. Cumprir a Constituição é pressuposto para que nossos direitos sejam respeitados, e para que possamos, enfim, querer que todos o façam. Para vivermos em sociedade, não há outra escolha. Atuemos, todos, pela Constituição.

Crédito: Desenho da Bandeira do Henfil – Edição Especial para a exposição Imprensa, Arte e Cidadania : 25 anos da Constituição de 1988 (emhttp://inacio.com.br/2013/10/inacio-na-constituinte-queremos-o-progresso-e-desenvolvimento-do-pais/)
 
 
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