Lava Jato e privatização da BR Distribuidora levam ex-gerente à Justiça por reparação

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
[email protected]

O ex-gerente-executivo Francelino Paes move duas ações judiciais após ser demitido por justa causa, em 2016. Paes é uma vítima do lavajatismo

Alguma vez você já se sentiu injustiçado ao ver a própria imagem reimpressa em milhares de cópias distorcidas e distribuídas ao público? Terá você chegado ao ponto de pensar em colocar um fim extremado ao desespero parido pela mentira sem controle? E quando os responsáveis por tal devassidão da justiça se apresentam como os mocinhos, piora? 

Estar diante da dor do outro exorta ao exercício de se colocar no lugar do outro, e ouvir a história de Francelino da Silva Paes requer se colocar no lugar dele. Em 2016, ele foi afastado do cargo de gerente-executivo da BR Distribuidora e demitido por justa causa meses depois ao ser exaustivamente investigado sem que encontrassem nada que pudesse ser usado como justificativa para o encalço. 

Desde então, Paes iniciou um périplo nos tribunais para ser readmitido e indenizado por um sofrimento que o fez se colocar diante da dor do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, que cometeu suicídio em outubro de 2017, após a Polícia Federal prendê-lo e expô-lo, sem nem uma prova, ao linchamento público. 

Conforme as ações judiciais às quais o GGN teve acesso, a BR Distribuidora demitiu Paes por justa causa alegando que o ex-gerente concedeu descontos excessivos a clientes da companhia e adiantou recursos para a Shell em transação que trouxe prejuízo à BR.

Nos autos, o ex-gerente apensou documento com análise do Departamento Jurídico da companhia afirmando que os procedimento foram regulares.

Paes comprova ainda que na primeira situação a decisão pelos descontos foi positiva para a BR e no segundo caso a diretoria da companhia sabia do adiantamento de recursos à Shell. No entanto, por conta dos dois casos, Paes, além de ser mandado embora por justa causa, se viu enredado nas investigações da Lava Jato.

Nada de provas, só convicção

Os anos de perseguição a Paes e ao ex-reitor da UFSC são correlatos, 2016 e 2017, senão porque fazem parte de um período de privatização da BR Distribuidora e de infiltração das práticas arbitrárias da Operação Lava Jato na Polícia Federal, nos tribunais, no Congresso, mídia e nas redes sociais. Delações tiradas a fórceps, inquéritos agressivos e manipulados, desrespeito ao processo legal.

Não importava se as provas existiam: bastava a convicção da acusação, no geral urdida por um conceito de justiça emanado do antigo testamento e não da Constituição Federal. Na Petrobras e na BR Distribuidora não funcionou diferente, e as práticas foram adotadas pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff pela gestão Michel Temer e seu afã pela privatização das companhias.   

Antes de chegarmos aos fatos que ligam Paes ao que aconteceu ao Brasil a partir de 2014, tendo um primeiro desfecho nas eleições do ano passado, convém recuarmos ao final da década de 1990.

Esta é a história de Paes, mas é também a de muitos homens e mulheres, incluindo o próprio presidente da República, vítimas de práticas de justiça em revisão crítica pela sociedade.  

Plano de Demissão Voluntária  

Francelino da Silva Paes chegou à BR Distribuidora, na sede do Rio de Janeiro, em 1998. Não levou muito tempo e no ano 2000 assumiu pela primeira vez uma gerência, e foi sendo promovido até 2007, quando chegou à posição de gerente-executivo, o mais alto nível de gerência estando abaixo apenas dos diretores e do presidente. 

Até a metade de 2016, Paes seguiu como gerente-executivo quando voltou às funções administrativas sem cargo de chefia. “Nesse período eu comecei a pensar no que faria com a minha carreira, já havia sido convidado para ir a outras empresas do ramo, mas preferi a BR porque eu amava a BR”, explica. 

Quando perde a gerência, Paes vai ao mercado de petróleo e gás e faz as consultas sobre alguma oportunidade para seu reposicionamento profissional. Ato contínuo, se inscreveu no Plano de Demissão Voluntária. “Só que então eu desisti de sair da BR e me retirei do Plano de Demissão Voluntária”, diz. 

Ao sair do Plano de Demissão, “algumas pessoas vieram me procurar perguntando se não era melhor eu continuar no plano, sair da empresa. Eu dizia que não, que eu gostava da BR e queria continuar”. Paes abriu mão do plano no segundo semestre de 2017 e meses depois, em dezembro, foi demitido. 

Privatização

Em 2017, a BR já estava direcionada para a privatização, buscando renovar o quadro de executivos, promover funcionários à gestão sem os “vícios” de gestores anteriores, conforme a nova chefia, “então o contexto da minha demissão foi esse: ele não está no nosso perfil”, diz Paes, se referindo à privatização.   

O processo de privatização começou com Michel Temer, em 2016, e teve conclusão na gestão de Jair Bolsonaro. A rede de postos de combustíveis BR Distribuidora, ligada à Petrobras e criada com patrimônio público, em 1971, desde setembro de 2021 não tem mais a estatal como sócia-proprietária. 

A privatização veio para encerrar um processo de venda das ações da BR que começou quatro anos antes, ainda no governo Temer, e se estendeu gradualmente até 2021. A Vibra Energia passou a deter a BR pagando pouco mais de R$ 8 bilhões, nem perto do valor real: entre R$ 40 e R$ 50 bilhões. 

Para preparar a empresa para a privatização, o governo Temer nomeia diretores para deixar a empresa estruturada para atender ao mercado interessado em comprar ações da BR sob controle estatal. Ou seja, conduzir programa de demissão voluntária, demissões da própria BR e demais medidas. 

Lava Jato desdobra

Como gerente-executivo, em 2014, Paes conduziu a preparação dos aeroportos para a Copa do Mundo e Olimpíadas. O governo Dilma Rousseff e a CBF estavam preocupados, pois ainda havia certa desconfiança com o setor relacionado ao caos aéreo, ocorrido anos antes. 

“Fizemos um grande plano de investimento e abastecimento das aeronaves. Obtivemos sucesso e em 2014 fui promovido para uma das principais gerências comerciais, a Gerência de Grandes Consumidores. Quando eu fui promovido, a Lava Jato estava esquentando muito”, lembra Paes.  

A Petrobras estava exposta diariamente na mídia. Vazamentos de investigações, prisões e cifras crescentes desviadas levaram a Petrobras a fazer um grande pente fino em todos os seus processos e atividades. Paes afirma que um ambiente de desconfiança interna se instalou em auditorias e processos internos.  

“Comecei a responder a uma série de averiguações internas, auditorias, processos. Imagina: eu era gestor há 14, 15 anos. Foi tudo auditado e passado a limpo. Não ficou apenas nisso”, diz Paes. Em 2016, foi suspenso por sete dias ao encaminhar um processo à diretoria e perdeu a gerência executiva. 

“Eu não tinha cargo indicado de forma política ou possuía alguma relação com sindicato, mas pela minha carreira acreditaram que eu era uma pessoa politicamente exposta, mesmo porque era cotado para ser diretor da empresa, então começou esse processo de investigação”, analisa Paes.

A empresa que virou suco a jato   

“Meu pai faleceu quando eu tinha de 6 para 7 anos. Minha mãe ficou viúva e se viu só. Para cuidar de mim e do meu irmão, ela passou no concurso da Petrobras. Nossa vida melhorou bastante, em tudo, e eu sempre vinculei essa vida melhor à Petrobras”, conta Paes. 

Por isso decidiu prestar o concurso para o administrativo da BR Distribuidora, com a lembrança do que a Petrobras fez por sua família. A partir de 2014, porém, a empresa foi se convertendo numa caça às bruxas, onde, revela Paes, funcionários eram pressionados a fazer delações.  

Com ele ocorreu assim: “nasceu meu terceiro filho e eu estava de licença paternidade. Me ligaram da BR e disseram para eu ir lá porque iriam me entrevistar. Chego e entro numa sala com quatro advogados, com eles várias caixas, páginas e páginas de e-mails meus”, explica.

Os advogados, que não eram da BR, mas de uma empresa contratada, questionaram os contratos estabelecidos pelo gerente-executivo, a razão de Paes falar com uma ou outra pessoa, uma pressão de inquérito criminal, e, ao término, “que eu não poderia contar da reunião para ninguém”.  

Práticas da Lava Jato

Além de ferir a transparência exigida de uma empresa pública, Paes afirma que ele não estava acompanhado por um advogado e por ninguém da BR, seja do Recursos Humanos, diretores ou do Departamento Jurídico da companhia. Então entra a parte tipicamente de procedimento da Lava Jato:  

“Uma pressão terrível para eu falar de outras pessoas, o que eu achava de um e de outro, que era melhor eu falar ou senão… ameaça mesmo, na cara dura. Nunca fiz nada para isso. Nunca recebi vantagem indevida”, explica Paes.

Os advogados pareciam saber disso, tanto que não o acusaram formalmente de receber propina ou algo do tipo, mas se mantiveram firmes nas ilações tentando relacionar descontos oferecidos pelo gerente-executivo a clientes da BR a um possível recebimento ilícito de vantagens e, por outro lado, pressionar Paes a delatar supostos malfeitos de colegas.  

Ele afirma que quando tinha salário, vivia bem. “Agora sem salário meu nome tem restrição, devo ao banco por empréstimos que fiz na época em que estava com salário. Alguém que recebe propina não passa por isso. Nunca recebi propina e nem vi ninguém receber”, diz. 

Consequências na vida pessoal

Em 2 de junho de 2016, a coluna de Ancelmo Goes no jornal O Globo noticiou o afastamento de Paes do cargo de gerente-executivo: “o afastamento foi decorrente da conclusão de uma comissão interna de averiguação. Provável que seja um afastamento definitivo, pois ele está sendo investigado em mais de uma comissão”.

O caso de Paes passou a ser de conhecimento público e relacionado ao escândalo de corrupção na Petrobras. Culpado por simplesmente estar associado, amigos se afastaram, sua reputação de gestor competente no mercado de petróleo e gás derreteu e a vida pessoal entrou num espiral rumo ao chão.  

“O primeiro prejuízo é o financeiro, porque você trabalha, tem salário, trabalha há 19 anos e de repente acabou. Justa causa não te dá direito ao FGTS. Fiquei sem ter como arcar com as despesas. Tinha imóveis, carros… fui vendendo tudo. Numa ansiedade grande, sem salário”, diz. 

Paes cita que em 2016, dois meses antes de ser demitido por justa causa, quitou o apartamento “que eu comprei e dei de presente para minha mãe. Vendi o apartamento que usei o FGTS para quitar e perdi 30% porque é uma operação que ninguém faz, dá prejuízo”, revela.   

A autoestima foi à rés do chão: “você sabe que não fez nada por merecer isso, mas é o que você está vivendo. Todos os resultados excelentes, o reconhecimento do mercado. Até hoje sonho indo para a empresa responder às comissões, auditorias, aos interrogatórios. Meu sonho virou um pesadelo”, afirma. 

Ações judiciais

Paes ingressou com duas ações judiciais que hoje estão em trânsito no Tribunal Superior do Trabalho (TST): a primeira questiona a suspensão de sete dias e a segunda pretende anular a demissão por justa causa. No mérito, as sentenças até a chegada ao TST são favoráveis ao ex-gerente-executivo da BR. 

No caso da primeira ação, duas decisões inferiores anularam a suspensão de sete dias, o que é a tendência de ocorrer no TST. Na outra ação, em decisão de primeira instância, a Justiça determinou a reintegração de Paes pela BR. No entanto, a companhia até o momento não cumpriu a determinação judicial. 

“A companhia me ligou para eu fazer os exames médicos e dois dias depois cancelou os exames e pediu para eu aguardar.  A empresa decidiu não cumprir a decisão judicial. Decisão se cumpre, depois questiona. Era assim que funcionava no meu tempo, mas isso também mudou”, conclui. 

Na segunda instância, a Justiça entendeu que não havia nenhuma razão para a demissão por justa causa de Paes, mas que a empresa tem o direito de demitir. Então determinou que a justa causa fosse convertida a uma demissão normal. Tal decisão não agradou nem uma das partes, que recorreram ao TST.  

Ocorre que no mérito dos procedimentos judiciais pouca ou nem uma divergência pode ser encontrada: trata-se de um caso de discriminação e perseguição, com acusações contra Paes não comprovadas retroagindo a um tempo sem mecanismos de Justiça com o objetivo de punir.   

LEIA MAIS:

Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador