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8 de janeiro: expressão estética e política do autoritarismo, por Rodrigo Siqueira Jr.

A intervenção em questão produziu estilhaços de vidro, somados aproximadamente 700m² de extensão, em vitrais e vitrines quebradas

Fabio Rodrigues-Pozzebom – Agência Brasil

FENED – Federação Nacional das e dos Estudantes de Direito

8 de janeiro: expressão estética e política do autoritarismo

por Rodrigo Siqueira Jr.

No dia 8 de janeiro de 2023, passado apenas alguns dias da posse presidencial, milhares invadiram a sede dos poderes na Capital Brasília. Camisas amarelas da seleção brasileira et al., faixas e palavras de ordem por intervenção militar e saídas autoritárias formuladas à época pelas redes sociais denotavam o autodenominado campo “bolsonarista” ou “patriota”. Com apelo a símbolos nacionais e internacionais (como a presença de bandeiras dos EEUU e Israel), filmando a si mesmos em transmissões ao vivo da tentativa de golpe de Estado, para as redes de influenciadores deste mesmo campo político.

Não atacaram apenas as Instituições democráticas, contudo. Através do ataque aos edifícios que as representam espacialmente e/ou dão abrigo ao processo político democrático, atacaram também nossa cultura; particularmente obras entre aquilo que produzimos de melhor enquanto sociedade: a destruição dos edifícios do Palácio do Planalto, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, projetados por Oscar Niemeyer e estudado por estetas, filósofos e arquitetos ao redor de todo mundo:

Das relações de a- ou dissociação entre o externo e o interno. Superação dos limites dos espaços, contestando-os a partir da redução de suas definições. Antítese na percepção sobre a rigidez do concreto armado. O uso dos princípios-ideias das curvas, o concreto armado, diálogo das curvas e o ângulo reto; ou o jogo entre opacidade e transparência. São expressões estéticas da ideia de liberdade na forma de Niemeyer. 

Ideias que comungavam com o seu ideal de liberdade política. Nos provocando a comparação de suas imponentes obras e a condição cotidiana, em um movimento da imaginação baseado na fuga do olhar ordinário. Expressão estética que se entrelaça com a visão do arquiteto sobre o Brasil, de um futuro infinito para o país projetado em suas curvas. Em que a crítica da vontade arquitetônica se alia à crítica da realidade.

Adentraram então a sede dos Poderes – seguindo a propaganda massiva sobre possível intervenção das FFAA conquanto houvesse caos social instalado suficiente para “reestabelecerem a democracia”, a qual, segundo os extremistas, teria sido violada pela “fraude eleitoral” que elegera Lula –. Lá, sintomaticamente, atacaram obras de Portinari, Di Cavalcanti, as mobílias de Sérgio Rodrigues e Joaquim Tenreiro. Modernistas que buscaram desnaturalizar a representação do país e suas estruturas, promover aproximação entre a arte, a vida e a sociedade incorporando a cultura popular ao que era produzido pelas elites brasileiras até então. 

Frente ao significado político do 08 de janeiro, sua dimensão estética como fenômeno pode passar despercebida, ao menos conscientemente. Não são insignificantes, no entanto – e se são –, deixam entrever marcas específicas de significação. Para o filósofo francês, Jaques Ranciére, o regime estético constitui-se em regime que permite ver no “insignificante” cargas de sentido, ou o que chama de “significado do insignificante”. Onde a política e arte têm origem comum i.e, na própria formação da comunidade com base no encontro discordante das percepções individuais, que formam a partilha do sensível, determinando os modos de articulação entre formas de ação, produção, percepção e pensamento. 

Uma das obras depredada pelos extremistas neste triste dia para democracia foi a pintura “Retirantes” de Candido Portinari. Complexa como o Brasil, em busca da representação de nossa realidade social, influenciado pelo muralismo. “Retirantes” comunica o social para atingir a sociedade. A partir de estratégias como a própria dimensão da tela e configuração em forma seriada, carrega um caráter de denúncia em representação ao inconformismo com a desigualdade. 

A partir do seriamento das obras, confere-se tom de crônica e ressaltam a historicidade daquilo que é retratado, em fuga da ficção e aproximação ao real. O cubismo mistura-se a outras técnicas, cores e tons mantendo o caráter crítico que permaneceu com ele por toda sua vida. O expressionismo presente, com uso da luz e grande variedade de tons matizados em substituição a traços fortes e demarcados, transmite a quem vê sentimentos de dor e sofrimento, mas também união de uma família, característica daquelas que viviam no norte do Brasil em busca de melhores condições de vida. 

  A escultura “Maria, Maria”, de Sonia Ebling, foi também alvo de violência bolsonarista. Da estética do visível e invisível, palavra e ruído que definem a um só tempo o lugar e o que está em jogo na Política. De livre inspiração, inquietude formal e disciplinada, sua fantasia é acorrentada, combinadas ao anedótico e ao folclórico sob intensa depuração da forma. Num essencialismo para experiência da intimidade brasileira, influenciada pelo Russo Ossip Zadkine, era a primeira escultora a começar aqui no Brasil e desbravar este caminho. 

Outra obra brutalmente atacada foi “As Mulatas “de Di Cavalcanti. Sob influência de Picasso, cores vivas e efeito de luminosidade dos objetos e elementos da natureza presentes no espaço pictórico, dão à estética elementos nacionais de caráter social marcado. Linhas frias, severas e angulosas do cubismo, das figuras olímpicas de Picasso, amolecem; dando lugar para as curvas e exuberância de Di Cavalcanti. 

A arte profundamente identificada com as classes pobres, marginais e excluídas de “As mulatas”, opunham-se aos valores então representados na pintura pela classe dominante. Buscando a romper com a arte acadêmica em rejeite a estética de classe e conceito de beleza feminina aristocrático. Representando mulheres brancas, de corpos “esguios, com postura e gestos requintados”. Regional e popular, assim, o artista buscou dar fisionomia própria à arte brasileira.

A Estética do dissenso para o filósofo francês é a forma política da democracia, baseada na diferença e na contestação. Assim como o modernismo brasileiro. Mesmo que destruíssem os três palácios inteiros, não seria isso – senão eventual intervenção das Forças Armadas, de maneira inconstitucional, usurpando a soberania popular – que colocaria fim às instituições. Mas a destruição dos edifícios e de tudo que dentro deles havia, revela o ódio pela estética do dissenso, bem como pelos valores que representam. Com intenção de pôr abaixo a república e configurar um consenso asceta, homogêneo e autoritário.

A intervenção artística é definida por Ranciére como “qualquer ação que introduza uma diferença no espaço público, que perturbe a ordem do visível e do audível, e que ajude a criar um regime do sensível.” Argumentando que a arte pode ser usada para questionar a “[…]partilha do sensível e promover a igualdade”. Utilizaremos seu conceito de intervenção artística de forma subvertida, para interpretar ações políticas e estéticas, que, no entanto, visam não ampliar a igualdade ou liberdade, senão destruir o espaço do dissenso que a arte ou as instituições democráticas ensejam.

A intervenção em questão produziu estilhaços de vidro, somados aproximadamente 700m² de extensão, em vitrais e vitrines quebradas, conforme relatório da Coordenação de Administração de Edifícios do Senado Federal. Desprendimentos, danos e cortes às peças de azulejos do mural “Ventania” de Athos Bulcão no Salão Verde da Câmara, e ranhuras ao seu “Painel Vermelho” no Senado Federal. Danificados pela invasão dos patriotas ao descerem sem menor desvelo pelo primeiro e atacarem com barras de ferro o segundo; inundaram os carpetes do Salão Verde, onde a mistura com gases de efeito moral e resíduos de pó químico dos extintores de incêndio utilizados pelos vândalos, corroeram obras em bronze, como a escultura “o anjo” de Alfredo Ceschiatti. 

 Tal rastro de destruição pode ser compreendido como expressão estética da ideia de ruptura pretendida pelo campo político reacionário que atacou a Sede dos poderes. Vestígios da expressão de violência, fragmentação e ódio que coincidem com as palavras de ordem e objetivos anunciados. Formando um todo coerente que aponta para a importância do olhar atento à dimensão sensível desta tentativa do golpe de Estado sofrida, para compreendê-la e superá-la.

O trabalho de higienização das obras, iniciado logo após cessarem os ataques, fora realizado com uso de trinchas macias, para remoção de estilhaços de vidro, mistura de álcool e água no fundo das telas, para retirada de fungo em parte do acervo, em razão do encharcamento dos Salões. Após remoção de esporos com um aspirador, colocam-se as telas entre papéis mata-borrão contra a umidade e então passam por uma prensa de planificação. Por último, há reintegração cromática nos locais onde houveram danos e perdas de policromia. 

Gestores públicos discutem qual será a técnica do restauro empregada. Aquela que busca reconstituir ao máximo as obras, apagando todo e qualquer vestígio do dano – a reconstituição artística; ou a arqueológica, que busca preservar os vestígios históricos do dano aos objetos, com a finalidade documental ou de memória coletiva. Gilcy Rodrigues Azevedo, do Setor de restauração da Câmara dos Deputados, considera que o restauro histórico falará “muito mais alto”. Aproveito o presente ensaio para me somar a essa tese. 

Preservar a memória estética, pode gerar estranhamento também nas futuras gerações. Produzindo deslocamento no sentido da formação do valor da democracia, nossa cultura e ética humanista. Pautadas na autonomia, pluralidade, divergência e da dignidade humana, os quais também incitam a cultura. Para não esquecermos deste triste e revoltante dia e assim não se repita jamais.

Rodrigo Siqueira Jr. – Estudante de Direito da UFF – Universidade Federal Fluminense, Diretor Instituto Tristão Fernandes)

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