ABIN paralela x Estado de Direito, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Se o STF não punir com rigor todos os envolvidos nesse episódio da ABIN paralela o próprio Estado de Direito deixará de existir.

Antonio Cruz – Agência Brasil

ABIN paralela x Estado de Direito: o que devemos esperar da Suprema Corte e da imprensa?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O STF é o guardião da constituição (art. 102, da CF/88), de Estado de Direito cujos principais fundamentos são a cidadania, dignidade humana e o pluralismo político (art. 1º, II, III e V, da CF/88). No Brasil, autoridades e servidores públicos devem respeitar os princípios da legalidade e moralidade, impessoalidade (art. 37, caput, da CF/88).

A redação do art. 8º, da Lei nº 11.776/2008. não é ambígua, nem pode ser interpretado de maneira a garantir a violação dos dispositivos constitucionais acima transcritos. Dentre as atribuições dos oficiais de inteligência da ABIN não se encontra espionar cidadãos, políticos e autoridades brasileiras com a finalidade de impedir órgãos Estatais de investigar crimes eventualmente cometidos pelo presidente da república ou pelos filhos dele. Também não é lícito agentes da ABIN ajudarem quem quer que seja a criar uma agência paralela de informações para operar sistemas de monitoramento da internet.

A julgar pelo que consta da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes no caso da ABIN paralela, uma verdadeira quadrilha estava funcionando dentro do Estado brasileiro. Agentes da ABIN e cedidos à ABIN operavam uma organização criminosa que não apenas espionava ilegalmente cidadãos, políticos e autoridades, mas fazia isso para proteger os chefes de uma orcrim ainda maior para que ela conseguisse se perpetuar no poder mediante fraude e intimidação. a

Segundo Norberto Bobbio:

“Num parágrafo da segunda edição da Reine Rechtslehre, dedicado ao problema da diferente entre a ‘comunidade jurídica’ e a ‘quadrilha de bandidos’, com um apelo explícito, em nota à famosa disputa entre Alexandre, o Grande, e o pirata, registrada por Santo Agostinho, Kelsen tenta resolver o problema distinguindo o sentido subjetivo do sentido objetivo de um comando. O comando do bandido tem apenas o sentido subjetivo do comando, enquanto o considera assim quem o profere, mas não tem seu sentido objetivo, enquanto não pode ser interpretado como uma norma objetivamente válida. Para mostrar que o comando emanado de um órgão do Estado pode ser interpretado como um comando objetivamente válido, Kelsen expõe pela enésima vez a teoria do ordenamento jurídico como ordenamento dinâmico para o qual uma norma inferior remonta a uma superior até a norma fundamental. Então é como dizer que a vaidade objetiva de um comando e do poder do qual o comando deriva (não existe comando sem poder), diversamente do comando do bandido, é assegurada em última instância pela pressuposição (porque de pressuposição se trata) de uma norma última que fecha o sistema.” (Direito e poder, Norberto Bobbio, editora UNESP, São Paulo, 2008, p. 201/202)

A norma que fecha o sistema jurídico brasileiro é a interpretação da constituição pelo STF. O que fecha o sistema criminoso denominado ABIN paralela não é a norma que regulamenta a atividade dos agentes daquela instituição e cedidos àquela instituição e sim a vontade criminosa do chefe da quadrilha que desejava se autoproteger e proteger seus filhos. Bolsonaro chegou a dizer em certo momento“Eu sou a constituição”. Então o que está em disputa no caso comentado é predominância da constituição do chefe da quadrilha ou aquela que a Suprema Corte está fazendo cumprir ao determinar providências indispensáveis à investigação e repressão do Estado criminoso criado pelos Bolsonaro dentro do Estado de Direito.

Mas voltemos a Norberto Bobbio. Ao comentar a obra de Hans Kelsen o jurista italiano também disse que:

“O poder sem direito é cego, mas o direito sem poder é vazio. Assim, o direito público tradicional, partindo do poder, sempre seguiu o direito, para conseguir distinguir o poder de fato do poder legítimo, assim como a teoria normativa do direito – Kelsen ensina – teve de seguir o poder para chegar a distinguir um ordenamento jurídico só imaginado de um ordenamento jurídico efetivo. Em outras palavras, para a primeira, o nó a ser desatado é o problema da legitimidade do poder, para a segunda, é o problema do sistema normativo.” (Direito e poder, Norberto Bobbio, editora UNESP, São Paulo, 2008, p. 196)

Como vimos, o jurista alemão Hans Kelsen distinguiu a ordem de cometer crimes (dada ao cupincha por um chefe de quadrilha) da ordem legitima (que é dada pelo Juiz ao subordinado para esse utilizar a força dentro da Lei) não com base na justiça ou injustiça do resultado a ser obtido, mas com base na efetividade da decisão. A ordem do chefe de quadrilha é em si um crime e pode ser reprimida tanto quanto os crimes cometidos pelo subordinado dele. A ordem do Juiz deve ser cumprida sem que o uso da força resulte em punição para os agentes policiais ou para o próprio magistrado.

Essa distinção é importantíssima para compreender o conflito entre os Bolsonaro e o Ministro do STF que mandou a PF fazer busca e apreensão contra o filho do ex-presidente. Ao defender o filho Bolsonaro apenas conseguiu se incriminar, porque é evidente que ele não podia manter uma ABIN paralela nem tampouco investir o filho de poder legítimo para comandá-la.

“O ordenamento ilícito não é [e não deve ser, podemos acrescentar quando debatemos o caso da ABIN paralela] considerado no mesmo patamar do ordenamento normativo do Estado, porque esse é mais eficaz que o ordenamento coercitivo em que se baseia a quadrilha de bandidos.” (Direito e poder, Norberto Bobbio, editora UNESP, São Paulo, 2008, p. 204)

Não existe e não poderia existir norma legal autorizando Carlos Bolsonaro a atuar como se fosse o chefe de uma agência informal de informações. Ele é vereador no Rio de Janeiro e não devia chefiar a ABIN paralela. Aliás, os agentes da própria ABIN obviamente não tinham e não poderiam ter o privilégio de usar equipamentos e sistemas informatizados da instituição para espionar cidadãos, políticos e autoridades a fim de proteger uma família que, ao que tudo indica, operava de acordo com os princípios de uma organização mafiosa. Portanto, a conduta do filho do ex-presidente pode e deve ser considerada passível de investigação criminal. Quem deu a ordem para Carlos Bolsonaro fazer o que fez e quem se subordinou ao comando dele na ABIN paralela não agiu dentro da Lei e sim como chefe e membro de organização criminosa, respectivamente.

A gravidade do que ocorreu (que envolve inclusive a violação ilegal em massa da privacidade de milhares de cidadãos) não pode ser esquecida ou perdoada. Quem é eleito Presidente da República não tem poder absoluto, nem tampouco pode usar o cargo para burlar a Lei e empoderar uma organização mafiosa que atuava fora da Lei e paradoxalmente sob a proteção do Estado.

Se o STF não punir com rigor todos os envolvidos nesse episódio da ABIN paralela o próprio Estado de Direito deixará de existir. A energia criminosa dos Bolsonaro e dos cupinchas dele não pode sobrepujar a legalidade, mas é evidente que ela estava rapidamente se transformando em legalidade alternativa. Se os responsáveis pela ABIN paralela não forem todos devidamente processados e eventualmente condenados a distinção kelsiana entre chefe de estado e chefe de quadrilha deixará de existir e a única norma válida e efetiva do Brasil será aquela enunciada pelo próprio Jair Bolsonato (Eu sou a constituição.)

Existe, por fim, um problema que todos até agora estão evitando discutir que pode ser essencial para preservar o Estado de Direito brasileiro. Durante os quatro anos que ficou na presidência, Bolsonaro enfiou um monte de gente nos Tribunais Regionais Federais, no STJ e no STF. A PF disse que a quadrilha criminosa que operava a ABIN paralela era parte de uma quadrilha maior. Portanto, se o ex-presidente era o chefe de uma imensa quadrilha que se estruturou dentro do Estado, devemos supor que essas nomeações de Desembargadores e Ministros de Tribunais foram maculadas ab initio pela pretensão do capo mafioso de proteger a si mesmo e aos filhos dele.

O Direito brasileiro estava sendo esvaziado pelo poder da quadrilha dos Bolsonaro. O caso da ABIN paralela evidencia que uma legalidade alternativa foi criada da administração pública federal para espionar, perseguir, assediar e intimidar quem quer que ousasse defender o Estado de Direito. Esse fato gravíssimo não pode ser ignorado. O que nos leva à última questão essencial: A imprensa e as plataformas de internet podem criar um palanque para o ex-presidente atacar o STF como se ele e os filhos dele fossem inocentes perseguidos por um Estado policial? A resposta é NÃO.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O “pobrema” seria que talvez, digo talvez, podres dos investigadores estejam com os investigados.

    Digo talvez pois nossa classe dominante não se mete em encrenca.

    Em todo caso alguém viu aquele filme do DiCaprio sobre o John Edgar Hoover ?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador