As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico, por Daniel Gorte-Dalmoro

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos.

Agência Brasil

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

por Daniel Gorte-Dalmoro

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente – pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas – inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha – e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago – um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos – na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o “dia do fogo” aconteceria independente de quem estivesse na presidência – e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado – não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos – e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio – mas fiel ao projeto de quem o indicou – e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico – a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira – por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade – uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional – Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa – inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas – partidos, mídias, academia, movimentos sociais – e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população – para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.

Daniel Gorte-Dalmoro é bacharel em filosofia e ciências sociais pela Unicamp e mestre em filosofia pela PUC-SP, escritor e psicanalista em formação.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  1. Não faz muito tempo o PT resolveu fazer um abaixo-assinado em favor da Dilma
    O PT se orgulha de ser o 2º maior partido do mundo ou das Américas com 4 milhões de filiados.
    O tal abaixo-assinado não teve 300 mil assinaturas.
    O PT não consegue se comunicar com seus filiados, imagina disputar o discurso evangélico.

  2. Sobre o caráter dos ministros nomeados.
    Fachin é aquele menino pobre que vendeu laranjas na rua em sua infância , cresceu e se formou em direito na Universidade Federal Paraná. Socialista, fez carreira, participou da CUT, assinou manifestos em favor da desapropriação de terras para a reforma agrária, foi procurador do INCRA e, vinculado ao PT virou ministro do STF.
    Mais promissor do que isso, impossível. Todas as garantias aos direitos fundamentais e aos hipossuficientes estariam com ele.
    Então, um servo de deus, numa dança inspiradora comemorava: “Ahá! Iuhu!, o Fachin é nosso.
    E a promessa de justiça foi convertida, pela graça dos crentes, em instrumento de vingança do estado contra aqueles que o beneficiaram com a nomeação de ministro.
    Carmen Lúcia, mineira de origem pobre, segundo dizia, brincava com espigas de milho na infância, as quais vestia como bonecas porque a família não tinha posses para dar-lhe uma boneca de verdade.
    A comovente história da “sef-made-woman” que também fez carreira jurídica até chegar ao STF por nomeação de um homem de poucas letras, grande coração e enorme confiança na natureza humana, o presidente Lula, trouxe muitas esperanças ao povo, que então contava um um colegiado heterogêneo e confiável.
    Sucede que pelas notáveis características do milho, pode-se vesti-lo como boneca, comer-lhe o corpinho cozido ou ralado e limpar-se com ele quando já não mais tiver utilidade , eis que ele limpa, alisa e penteia.
    Lula então, virou sabugo na mão da Carmen Lúcia.
    Então, caro amigo, aborrecer-se pela escolha do “terrivelmente evangélico”
    para o STF é esperar que o tempo congele. Não há com o que se preocupar.
    O poder transforma os ambiciosos e oportunistas.
    Quanto a laicidade é de se compreender que o que fortalece uma religião (ou seita) é o sentido de pertencimento, a exclusão do outro e o privilégio.
    Quando a pessoa é “aceita”, ela passa a ser exclusiva, superior, diferente, especial e escolhida. Quando a pessoa cria seus filhos com essas restrições, então, temos um mundo à parte: o mundo de Mendonça, de Dalagnol, de Malafaia, de Garotinho. Eles não conhecem outra realidade e jamais se imaginariam em outra religião, em especial quando as suas vidas são bem sucedidas. Aliás, a doutrina providencia limites mentais intransponíveis aos crentes, de tal sorte que eles não tem o direito de se imaginar adeptos de qualquer outra religião sem sentir o medo do inferno.
    Os crentes se referem aos demais cidadãos como “incrédulos” ou “do mundo”, o que lhes dá o direito de separatismo ou da conversão forçada do outro para que estes gozem dos mesmos direitos de convivência.
    Estamos sim, numa rota de evangelização forçada e abrangente, porém, a natureza do brasileiro é mais elástica, menos permanente, mais ardente, e no final das contas como tudo o que é quente ou crente, logo se deteriora.

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