Bolsonarismo para além de Bolsonaro, por Camila Villard Duran

O simples fato de que houve um segundo turno demonstra que o eleitorado brasileiro está profundamente polarizado.

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do Project Syndicate

Bolsonarismo depois de Bolsonaro

por Camila Villard Duran

Embora o presidente brasileiro Jair Bolsonaro tenha sido destituído do cargo, as forças que o capacitaram mantêm considerável influência econômica, política e cultural. De muitas maneiras, essas forças irão altamente influenciar ou simplesmente enfraquecer a gestão de Lula.

SÃO PAULO – O Brasil escolheu um novo presidente reelegendo um ex-presidente. Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, que ocupou o cargo entre 2003 e 2010, derrotou o candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, no segundo turno. Mas isso não significa que aquilo que Bolsonaro representa tenha sido derrotado.

O simples fato de que houve um segundo turno demonstra que o eleitorado brasileiro, assim como muitos outros ao redor do mundo, está profundamente polarizado. No primeiro turno, mais de 51 milhões de brasileiros e brasileiras votaram em Bolsonaro, e mais de 58 milhões, no segundo. O apelo de Bolsonaro é particularmente forte entre os militares e os cristãos conservadores. Mas Bolsonaro também recebe apoio considerável nos bastidores – tanto financeiro como ideológico – de poderosos interesses econômicos, especialmente do agronegócio. De fato, a agropecuária respondeu por 33 das 50 maiores doações de sua campanha.

O agronegócio é um setor altamente industrializado, responsável por mais de um quarto do PIB do Brasil e 48,3% do total de exportações no primeiro semestre de 2022. E sua extensão geográfica é vasta, abrangendo o norte de São Paulo, uma parte significativa dos estados do Sul, além de dois poderosos estados do Centro-Oeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, chegando a Roraima no norte do país. Durante a presidência de Bolsonaro, a maior parte dos ganhos econômicos no Brasil foi abocanhada por essas regiões, uma vez que o setor agropecuário se beneficiou da combinação de uma moeda nacional desvalorizada e os altos preços internacionais para as commodities.

O resto do Brasil não teve tanta sorte. A alta inflação – os preços ao consumidor subiram 8,3% em 2021 – tem pressionado grande parte da população, com mais da metade dos brasileiros e das brasileiras (125.2 milhões de pessoas) vivendo com algum tipo de insegurança alimentar, sendo 15% da população (33 milhões pessoas) enfrentando a fome. Para o país que se enaltece por ser o “celeiro do mundo”, é uma triste ironia.

Não é surpreendente que as regiões dominadas pelo agronegócio sejam mais propensas a apoiar Bolsonaro do que Lula. Mas o presidente é apenas uma parte do quebra-cabeça político. Mesmo sem Bolsonaro no poder, o agronegócio tem ampla representação legislativa. Em 2021, os membros da Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA) – a poderosa bancada rural do Brasil – representavam 46% da Câmara dos Deputados e 48% do Senado Federal. O Instituto Pensar Agropecuária (IPA), que reúne 48 entidades do setor, assessora tecnicamente a FPA.

A máquina política que o agronegócio construiu no Brasil tem se mostrado altamente eficaz. Tanto na gestão de Bolsonaro quanto de seu antecessor, Michel Temer, a FPA promoveu, de forma organizada e sistemática, seus interesses, principalmente por meio da contestação de direitos territoriais indígenas para legitimar o uso das terras demarcadas para a produção agropecuária. A FPA também ajudou a articular propostas e emendas sobre uma série de questões regulatórias, incluindo direitos trabalhistas, licenciamento ambiental, regularização fundiária e de agrotóxicos.

Ilustrando ainda mais a influência do lobby agrícola, Tereza Cristina, ex-presidente da FPA, foi nomeada para chefiar o Ministério da Agricultura de Bolsonaro, em 2019. No último 2 de outubro, no primeiro turno das eleições nacionais, Cristina – também conhecida como “Senhora Desmatamento” e a “Musa do veneno” – foi eleita senadora pelo Mato Grosso do Sul, com mais de 60% dos votos válidos.

Cristina não estava sozinha. 70% dos representantes da FPA na Câmara dos Deputados foram reeleitos. A organização espera ocupar pelo menos 40 das 81 cadeiras do Senado em 2023, e até projeta novas “adesões”, o que pode elevar o total para 45.

O Congresso Nacional também incluirá o ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles. Em 2018, Salles foi condenado, em primeira instância, por improbidade administrativa enquanto chefiava um órgão ambiental do estado de São Paulo. No entanto, ele se tornou ministro do Meio Ambiente no mês seguinte e presidiu o órgão durante o aumento do desmatamento da floresta amazônica e cortes significativos em programas de proteção ambiental, antes de ser forçado a renunciar, no ano passado, por alegações de envolvimento em esquema de tráfico de madeira.

A influência política da agropecuária, portanto, corresponde ao seu status frequentemente declarado de “pilar da economia”. Mas há também um importante componente social e cultural em sua influência. Para grande parte da população, a vida rural é uma espécie de identidade nacional, encarnada pela imagem romântica do sertanejo.

De rodeios e vaquejadas, a música sertaneja e festivais, as tradições culturais rurais são tão populares em algumas áreas do país quanto o futebol e o carnaval. O agronegócio recorre a essas atividades como oportunidade para avançar a narrativa de que é central para a identidade brasileira. Não é coincidência que muitos dos principais cantores sertanejos apoiaram publicamente Bolsonaro.

Assim, o bolsonarismo tem a influência econômica, política e cultural para sobreviver a Bolsonaro. De diversas formas, o agronegócio e a FPA, em particular, irão altamente influenciar ou simplesmente enfraquecer a gestão de Lula, principalmente no que se trata de política ambiental, regularização fundiária e defesa dos direitos indígenas e de quilombolas. Se os agentes do bolsonarismo ganharem ainda mais influência nas eleições municipais em dois anos, o desafio para Lula será ainda maior.

A derrota de Bolsonaro merece comemoração. Mas ninguém – muito menos Lula – deve olvidar que as forças que empoderaram Bolsonaro estão ainda presentes no território nacional.

Camila Villard Duran é professora associada de direito na ESSCA School of Management.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Redação

1 Comentário

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  1. Falou um detalhe na matéria-comentário da Senhora Camila:

    Derrotamos sim a extrema direita.

    Derrotamos sim o abuso-assalto aos cofres públicos destinados, exclusivamente, a reeleição do atual presidente.

    Derrotamos sim o abuso do agronegócio e o assédio contra os trabalhadores, assim, como, de parte do afortunados.

    O Brasil e o mundo respirou aliviado pela estrondosa VITÓRIA do LULA mundo a fora, como a única pessoa que poderia derrotar a extrema direita mundial.

    Foi apenas isso que aconteceu ou foi tudo isso que aconteceu.

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