Daniel Boone e Declan Harp na fronteira Yanomami, por Fábio de Oliveira Ribeiro

As características dos personagens Daniel Boone e Declan Harp são conhecidas. Suponhamos agora que ambos pudessem sair da televisão e perambular pelo Brasil nos dias de hoje...

por Fábio de Oliveira Ribeiro*

Nos últimos dias tenho visto a série Frontier (Netflix, 3 temporadas a partir de 2016). Como tenho 58 anos de idade, foi inevitável para mim compará-la a uma série de TV semelhante muito popular nos anos 1970. Refiro-me à série Daniel Boone (1964-1970).

Declan Harp é uma espécie de Daniel Boone com esteroides. Jason Momoa e Fess Parker deram vida a dois personagens diferentes que pertencem ao mesmo mito fundador norte-americano. Chamarei esse mito de “o homem da fronteira”.

Na série dos anos 1970, “o homem da fronteira” é monogâmico, fiel à esposa e faz tudo o que é necessário para garantir o bem-estar de sua família exemplar. Daniel Boone é um caçador de peles que eventualmente se envolve em disputas políticas entre homens brancos e entre estes e os índios. Ele é um personagem virtuoso, que sempre se coloca ao lado das vítimas da opressão. Muito embora eventualmente recorra à violência, ele sempre tenta evitá-la e age em legítima defesa. Daniel Boone é um homem honesto e equilibrado que se recusa a agir como opressor.

O protagonista da série Frontier é muito diferente. Declan Harp é um psicopata vingativo sedento de sangue, sempre disposto a ferir e a matar o maior número possível de soldados ingleses. Ele também é um caçador, mas as vezes prefere simplesmente roubar as peles das empresas que atuam na fronteira. Num dos capítulos, Declan Harp dispara um canhão a queima-roupa nos soldados ingleses que o seguem no túnel cavado para possibilitar a ele e aos amigos roubar o depósito de peles do forte. 

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Daniel Boone é um homem branco equilibrado. Declan Harp é um mestiço traumatizado. Ambos vivem na fronteira, mas pertencem a mundos diferentes. O primeiro é um representante da civilização onde ela ainda não existe ou está apenas começando a existir. O segundo é o resultado das contradições da própria fronteira, local em que civilização e barbárie se interpenetram. 

A ligação entre os capítulos da série Daniel Boone era fraca. De maneira geral, cada capítulo encerrava uma história com começo e fim. A série do Netflix é uma novela. Os capítulos de Frontier são amarrados uns nos outros e a narrativa progride de maneira mais ou menos linear enfocando as trajetórias de vários personagens.

O homem é o resultado de suas aspirações, ações e vontades, mas estas são sempre limitadas pelas circunstâncias em que ele vive. É impossível dizer quem foi realmente o “homem da fronteira”. Talvez ele nem mesmo tenha existido. 

Se o “homem da fronteira” existiu, não é certo que tenha tido consciência de sua condição humana específica e distinta da dos outros homens de sua própria época. De qualquer maneira, é improvável que ele tenha sido muito semelhante aos personagens Daniel Boone e Declan Harp. 

Um é muito calmo e virtuoso, o outro é exageradamente violento. Ambos representam o mesmo mito fundador de maneira distinta. E isso nos leva à próxima questão: qual deles representa melhor esse mito?

Essa é uma questão difícil de responder. Nos anos 1970 a resposta seria uma. Na atualidade, a resposta certamente será outra. 

O passado se torna mais incerto à medida que vai sendo reescrito. Novas camadas narrativas acrescentadas ao mesmo mito são capazes de desfigurá-lo. Paradoxalmente, as mesmas pessoas podem se identificar tanto com Daniel Boone quanto com Declan Harp. O fato do primeiro ser justo, prudente e trabalhador e do outro ser psicopata, violento e ladrão passam a ser detalhes irrelevantes. 

A moralidade é sempre uma coisa incerta quando as incertezas dominaram o mundo fenomênico. Suponho que os bolsonaristas que apoiam o genocídio Yanomami são capazes de se identificar com o protagonista de Frontier. Mas muitos deles certamente foram fãs da série Daniel Boone. O mito do “homem da fronteira” faz sucesso no Brasil porque a própria fronteira está dentro de cada um de nós. 

Uma coisa me parece evidente: a apropriação e definição ou redefinição do passado nem sempre produz o mesmo resultado em locais distintos. Nos EUA os índios são respeitados e prosperam. Cá eles são desprezados e exterminados como se não fossem seres humanos. Onde nós eramos? 

Se levarmos em conta o crescimento exponencial do racismo e da violência racial nos últimos anos, podemos dizer com segurança que a inércia histórica, a persistência do passado no presente, foi um fator essencial para o sucesso do bolsonarismo. O genocídio Yanomami não pode ser considerado uma exceção, ele foi apenas a repetição de um padrão civilizatório temporariamente interrompido após a redemocratização do Brasil. 

Talvez o pecado capital da civilização brasileira seja o consumo acrítico das séries de TV norte-americanas. Elas nos ligam a um passado inventado que não é o nosso. Isso permite que os padrões bestiais de comportamento da era colonial continuem existindo porque eles nunca foram representados, vistos e discutidos exaustivamente para poder ser superados. A dependência cultural forjada pela indústria de entretenimento brasileira é acidental ou programática? Essa, meus caros, é a pergunta de 1 milhão de dólares que precisa ser respondida.

O comércio de peles era a atividade mais lucrativa na fronteira norte-americana tal como ela é retratada nas duas séries comentadas. Na fronteira Yanomami, os índios foram envenenados com mercúrio, mortos a tiros e reduzidos a pele e osso enquanto os garimpeiros destruíam a floresta e os rios para extrair toneladas de ouro. 

Na série Frontier, Declan Harp não encontra resistência para comercializar suas peles. A origem delas é irrelevante, pois na fronteira a distinção entre “lícito” e “ilícito” não existia. No Brasil, essa distinção é definida pela legislação, mas o Banco Central realizou operações com toneladas de ouro extraídas ilegalmente dos territórios indígenas como se o “ilícito” pudesse ser transmutado em “lícito”.

As características dos personagens Daniel Boone e Declan Harp são conhecidas. Suponhamos agora que ambos pudessem sair da televisão e perambular pelo Brasil nos dias de hoje. Qual seria a reação deles ao saber que os generais Heleno, Hamilton Mourão, Braga Netto etc… ajudaram a criar as condições para o genocídio Yanomami? Eles aplaudiriam os arquitetos do regime assassino ou arrancariam os escalpos deles?

*Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. Tenho 59 anos e também vi o seriado “Daniel Boone”, nos anos 70. Na verdade, durante um tempo fiquei obcecado por ter um chapéu igual ao que o personagem usava, até que consegui comprar um (minha mãe comprou, eu era garoto), numa feira de artes no Embu, em São Paulo. Não era exatamente igual, o que me desapontou, na época, mas serviu ao seu propósito. Não vejo as séries do Netflix, embora tenha o serviço em casa – minha mulher gosta. Vejo alguns filmes, e é só. As produções atuais abandonaram inteiramente um dos aspectos que predominavam na produção americana de filmes e seriados: o heroísmo imaculado, a personificação do Bem e da Justiça que os protagonistas do passado encarnavam. Já nos anos 60 alguns personagens principais de filmes e seriados passaram a demonstrar algumas fraquezas e defeitos pessoais, além de medos e convicções frágeis; penso nos últimos filmes de John Ford, um verdadeiro mea culpa por ter, durante décadas, divulgado (ou criado, mesmo) parte dos estereótipos que descrevi acima, em obras-primas absolutas como “O Homem que Matou o Facínora”, ou “Crepúsculo de uma Raça”. No final dos anos 60, um herói de HQ, o Homem-Aranha, dividia os espaços na sua revista mensal com seu alter-ego, Peter Parker, um jovem inseguro, cheio de dúvidas existenciais e fraquezas; frequentemente, havia mais páginas da revista dedicadas a esses temas do que às aventuras do herói. Rick Deckard, de “Blade Runner”, é um homem comum, sente medo abertamente, e duvida intensamente da ética (e mesmo da lisura) dos benefícios dos produtos das grandes corporações. Mas esse período de predomínio de personagens humanos pouco durou. Os “heróis”, agora, são como esse tal Declan Harp: psicopatas ou canalhas. Talvez a América esteja, finalmente, se mostrando como é, saindo do armário, não no sentido habitual que se empresta a essa expressão, mas assumindo sua face essencial, opressora e espoliadora. Concordo com o Fábio, na essência de seu post. Discordo apenas quanto ao fato de supor que alguma civilização, ao longo da História, tenha possuído outros traços que não os que a América demonstra claramente, hoje. Honra, respeito, Justiça, equanimidade? Não creio. O Homem branco europeu saiu pelo mundo, diz-se, para levar a Fé Verdadeira, o Cristianismo, aos pagãos, para salvar-lhes a alma. O preço a pagar por isso? O roubo e a exploração das riquezas e demais recursos (humanos, inclusive) que pudessem gerar valor para ser apropriado. E quando seu objetivo primordial é esse – roubar, saquear, explorar – não há nada que o possa disfarçar, embora gigantescos esforços, por parte dessas raças opressoras, tenham sido feitos nesse sentido.
    E uma frase do texto do Fábio me causou estranheza: “Nos EUA os índios são respeitados e prosperam.” Não sei se isso é verdade; talvez, para uma prá lá de diminuta minoria de aculturados que se submeteram. Toda vez que ouço algo assim, lembro-me imediatamente do depoimento de um indígena no filme “Corações e Mentes”, de Peter Davis (filme que deveria ser de exibição obrigatória para todo cidadão acima de 18 anos, nascido na Era do Algoritmo), descrevendo sua experiência no Vietnam. Chamavam-no Ira Hayes. O Fábio certamente conhece a história desse índio que lutou na 2ª Guerra Mundial. Aos mais jovens, recomendo: vão no Google, pesquisem: Ira Hayes.
    E um grande abraço ao Fábio.

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