O golpe interno de cada um, por Gustavo Conde

O golpe interno de cada um

por Gustavo Conde

Algumas pessoas estão fazendo uma confusão básica com  os registros elementares da linguagem. As redes sociais e a internet realmente embaralharam a percepção de muita gente. E os mais afetados são aqueles que não têm experiência com a prática leitora do cotidiano, gente que pouco leu ou escreveu durante a vida.

A leitura, ademais, também é feita de práticas e vícios em ambos os sentidos do espectro valorativo. Ler muito Augusto Cury ou Lair Ribeiro, por exemplo, pode ser o equivalente a ser um telespectador assíduo de TV aberta. Aliás, são práticas correlatas: quem lê esses autores, em geral, gosta da linguagem de televisão.

De modo que, no Brasil, a coisa não está fácil em vários sentidos. Leitura por leitura não significa muita coisa. Leitura qualificada, por sua vez, tem uma outra estrutura social e cognitiva. Lê-se não apenas um tipo de texto (autoajuda, palestra motivacional ou nutrição lúdica), mas uma imensa gama de gêneros e dicções.

Não só. A leitura prática do cotidiano exige que o leitor escreva obrigatoriamente. Quem diz que lê muito, mas não escreve é como jabuti que sobe em árvore: é puro imaginário popular – em geral, quem diz que lê muito, comete três auto violências: está se autoelogiando, está se justificando e está com pena intelectual de si mesmo.

Quem lê muito de fato, não diz que lê muito. Diz o contrário. Diz que “precisa ler mais”.  É exatamente disso que trata a leitura a ser aqui arrolada sobre a falta de competência para codificação básica de enunciados. Muita gente ainda acha que a fala e/ou o texto são reflexos do mundo real. Não são reflexos: são refrações (Bakthin escreveu isso há 40 anos quando publicou seu “Estética da Criação Verbal”).

É por isso também que os adolescentes têm muito mais competência leitora para codificar textos virtuais do que a geração analógica, que foi letrada – precariamente – em um mundo comportado demais e limitado demais, dentro daquela imensa e vazia caixa pedagógica que caracteriza a educação brasileira (tirando Paulo Freire e o Enem – como indutores de competências leitoras e de liberdade – a prática pedagógica no Brasil é um desastre).

De sorte que quando subleitores se depararam com a plataforma infinita e agressiva das redes sociais, o processo de codificação de enunciados básicos sofreu um colapso.

Faces do suicídio simbólico mascarado

Vou dar um exemplo muito singelo e curioso. Usuários de rede que se entendem politicamente progressistas vêm atirando furiosamente contra o próprio pé quando debocham de si mesmos em determinadas publicações pretensamente satíricas e inteligentes (e, fundamentalmente, céticas).

O processo pode ser descrito assim: a cada derrota judicial da esquerda, surge uma avalanche de pequenos textos criticando a autoconfiança do passado recente. Elas surgem em formas de hipercitação de hashtags: #NãoVaiTerGolpe, #VoltaDilma, #NaoPassarao, #DiretasJa, #Lula2018, #LulaInocente, #EleicaoSemLulaéFraude, #LulaLivre, #LulaNobelDaPaz.

O usuário, supostamente crítico – autocrítico? – e irônico toma esses pequenos enunciados como a comprovação máxima da ingenuidade da esquerda, e pratica uma autoflagelo que mais parece um suicídio: “teve golpe, passaram, Lula foi condenado, vai ser preso, não vai ser candidato e não vai ganhar Nobel”.

Tentemos entender esse fenômeno – e por partes, como diria aquele cidadão britânico do século 19. Ora. As hashtags de outrora não eram previsões a espera de confirmação. Eram ‘mobilização’. Eram retórica. Seu sentido só poderia ser recuperado levando-se em conta a dimensão pragmática da linguagem. Desde os anos 50 (desde Émile Benveniste), sabe-se que o sentido de um enunciado não é uma relação direta entre os sentidos abstratos das palavras tomados isoladamente.

Ler as referidas hashtags assim é fruto de falta de competência leitora. Qual seja o desvio de ordem técnica? A codificação precária – para não dizer ‘enviesada’ – do registro pragmático da hashtag-enunciado: lê-se como premonição o que é apenas um gesto mobilizador.

A manutenção da paralisia política

Claro que o leitor pode se auto conceder a liberdade de produzir uma outra interpretação de maneira deliberada. Assim, nascem as piadas. Mas, quando isso ‘nasce’ exatamente da parte interessada – o segmento progressista -, as barbas da mínima coerência existencial ficam de molho.

Notem que esse tipo de ‘estocada’ (ou ‘autoestocada’) tem o imenso poder de fazer a manutenção simbólica da paralisia que, de fato, acomete parte da esquerda brasileira. É quase que um serviço ao golpe, prestado de maneira gratuita e repleto de autopiedade.

Em outras palavras: a esquerda vem se anulando simbolicamente, talvez pelo excesso de conteúdo que tem e, sobretudo, pelo fato de não saber o que fazer com ele.

Como não há debate nem interlocução, a esquerda trava uma luta interna, autodestrutiva e fratricida, cujo resultado mais evidente é o prosseguimento do golpe que, a rigor, não precisa se dar ao trabalho de se lançar na peleja discursiva da cena política (a ‘esquerda’ faz isso para ele).

O deboche e o descrédito ao curso simbólico de combate que as redes progressistas travaram ao longo de todo o golpe irão apenas prolongar a agonia pela qual passa a democracia brasileira. Democracia também é linguagem, também é interpretação, também é postura diante dos enunciados e diante do legado histórco de cada um e de cada segmento político.

A deriva simbólica de um segmento fundamental para a democracia

A esquerda sempre teve respeito pelos seus enunciados. Teve orgulho, autoconfiança, autoestima.  A autocrítica é necessária, mas ela precisa ser estratégica, não suicida.

Esse jogo de produção aplicada de autodescrédito talvez seja o instrumento mais eficiente de manutenção da paralisia simbólica que vem caracterizando esse período político brasileiro. É por isso que o STF se dá ao direito de fazer o que quer, não o que uma sociedade e o próprio direito exige e merece.

A esquerda – ou a pretensa esquerda – ficou mal acostumada. De uma certa maneira – dadas as nossas características culturais e históricas – este segmento progressista tão importante e tão vitorioso não apresentou a maturidade histórica suficiente para lidar com suas próprias conquistas.

Todas essas ações que tomaram as redes e que já fazem parte da nossa história política não devem ser menosprezadas. O ‘menosprezo’ é um sentido caro à direita. Que ele fique lá, onde é bem alimentado e domesticado.

As hashtags democráticas que lutaram e lutam contra o golpe são um vetor importante de mobilização e difusão de causa. Elas podem sim desencadear processos politicos (fizeram isso no Caribe, na Argélia, no Bahrein, no Djibuti, na Jordânia etc). Entender isso é uma questão de timing.

Os processos democráticos – entenda-se de uma vez por todas – não são feitos a fórceps, o que seria um contrassenso. Eles levam mais tempo, obrigatoriamente. Toda a ansiedade disfuncional que grassa nas sociedades pós internet, acaba por travar o curso natural das construções de consenso e de convencimento. É muita gente ‘mimada’ e mal acostumada com os processos históricos em ambos os lados do espectro ideológico.

A arte de terceirizar a culpa

Decorrente desse fenômeno dos deslocamentos de interpretação – para concluir – ainda há um outro subproduto que vem crescendo na aceitação passiva de usuários de meia idade com pouca tradição de leitura-escrita: o descrédito das próprias redes sociais.

Sabe-se: é um deleite histórico criticar o novo, independente de como ele seja. Mas, neste momento, esse distúrbio social ganhou outros contornos anti-estratégicos: critica-se as redes porque elas “não resolvem nada”. Elas são as culpadas “pelo povo estar apático e não estar nas ruas”.

Típico das mais eloquentes variedades de preguiça mental. Bota-se a culpa no “outro”. Esse processo é primo-irmão do “é tudo culpa do PT”. Aliás, é impressionante notar como a sociedade ainda não se desvencilhou deste vício atávico. Haja psicanálise lacaniana para dar conta de tanta culpa terceirizada.

O jogo da democracia, no entanto, não está perdido, por mais que queiram acreditar os progressistas com pendores suicidas. No fundo, a luta só não está ganha porque algumas esquerdas sofrem de profundo complexo de inferioridade. Fosse isso diferente, Temer já estaria devidamente trancafiado em alguma cela suja do nosso apodrecido sistema carcerário.

O primeiro passo para se recuperar a democracia perdida é recobrar a autoestima. Sem ela, nada vai acontecer (e a culpa não é da internet).

 

Redação

1 Comentário

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  1. Por que não mencionou Lênin?

    Com algumas variantes (e muitas dúvidas sobre se, de fato, o líder revolucionário russo proferiu ou escreveu esta máxima), atribui-se a Lênin um pensamento que pode ser resumido assim:

    “Para se fazer a revolução é preciso três coisas: povo, dinheiro e armas.”

    Vencida a controvérsia e polêmica (que nada contribuem para a causa, mas prejudicam a defesa e realização do intento) o certo é que:

    1º) No momento em que a Esquerda Política Brasileira é perseguida, caçada, mutilada e sob risco de aniquilamento (realidade atual) não há espaço/lugar e tempo para digressões, auto-críticas e auto-flagelação;

    2º) Dividir-se em facções e entrar em luta fratricida com outras correntes do mesmo espectro político é tudo o que deseja o campo inimigo (a direita golpista, olgárquica, plutocrata, escravocrata, cleptocrata, privatista e entreguista);

    3º) Sem os três elementos básicos NENHUMA revolução ou transformação social se realiza. Fragilizada e derrotada, a Esquerda Brasileira não possuii os dois últimos elementos; e não basta o apoio das massas populares para se fazer uma revolução.

    Lingüista, o autor do texto preferiu não mostrar esses aspectos duros, crus, objetivos, os quais jogam por terra qualquer utopia ou frases de efeito e provocações que acadêmicos possam fazer, no confôrto de suas poltronas, sem ir às ruas, enfrentar bombas de gás, incendiárias, de efeito moral, tiros de balas de borracha e de chumbo e pólvora, spray, jatos d’água, cavalaria, cães, etc.

    Reconhecer uma realidade desfavorável, que impossibilta o  sucesso de uma luta revolucionára, não é complexo de inferioridade, mas senso de realidade. É isso que mostram os analistas políticos mais qualificados e experientes, como Ruy Costa Pimenta.

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