Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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O lugar do Brasil na querela sul-africana contra Israel, por Daniel Afonso da Silva

Depois de 1948, a tensão entre judeus e árabes só fez aumentar. E os incidentes de 1956, 1967 e 1973 foram apenas mostras de suas desavenças

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O lugar do Brasil na querela sul-africana contra Israel

por Daniel Afonso da Silva

Um adágio antigo informa que “não se deve brincar nem jogar com o sofrimento dos outros”. Uma recomendação também antiga vaticina que “para todo problema complexo existe uma solução simples e sempre equivocada”. Um ensinamento transcendente informa que “a paciência é a irmã da prudência”. E o mago das letras russas, Liev Tolstói, imortalizou a máxima de que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

O que sucedeu ao lamentável acontecimento de 7 de outubro de 2023 mobiliza todos os níveis dessas ponderações e qualquer tomada de posição sem elas como guia pode conduzir a temeridades.

A investida do Hamas ante civis desprotegidos e desarmados naquele 11 de setembro israelense foi uma ação sem-nome e não comporta escusas. Sempre foi muito difícil perdoar o imperdoável. E aquilo foi imperdoável. Mas um imperdoável não foi sem razão. Do contrário: foi uma ação, por mais odiosa que possa ter sido, produto da acumulação de rancor e ódio entre fiéis, de parte a parte e de família comum, em disputa pelo mesmo chão.

Um conflito histórico

Numa perspectiva bem longa, essas escaramuças entre judeus e árabes remonta a momentos bíblicos ambientados em Gênesis. Mas foi ao longo do século XIX, sob o Império Otomano, por volta de 1870, que a questão sionista que até hoje carcome a paciência e a prudência desses médio-orientais ganhou novos contornos. Judeus sefarditas, nesse momento do Oitocentos, começaram a conscientemente valorizar a língua hebraica como insumo para o revigoramento do nacionalismo judaico. E deu certo. Os anos que se seguiram foram de ampliação das demandas de afirmação, diferenciação e territorialização do povo judeu. E, por fim, veio o sem-nome da Shoah para promover a comoção mundial que serviu de base para a justificação do Estado de Israel.

Concomitante à criação desse Estado de Israel ocorreu a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Tudo em 1948.

A Solução Final dos nazistas alargou a materialização de insanidades inauguradas na limpeza étnica praticada contra armênios e continuada nos extermínios em massa perpetrados por Estados comunistas ao longo do momento de extremos entre 1914 e 1945. Foi-se, nessas ações, longe demais. Fez-se, assim, necessário o aprimoramento da punição desses crimes incontestáveis.

Em 1929, a Convenção de Genebra mirou a proteção de prisioneiros de guerra. Mas a 2ª Guerra Mundial impôs desafios ainda maiores que foram definidos na punição de 1. crimes contra a paz, 2. crimes de guerra e 3. crimes contra a humanidade. Todos esses crimes foram impetrados, também e sobretudo, contra os judeus. Daí o impulso para a criação de um Estado de Israel. Mas a situação sempre foi mais complexa.

Os árabes, em todas as suas variações, reivindicam a mesma causa, as mesmas punições e o mesmo território. Por tudo isso, depois de 1948, a tensão entre judeus e árabes só fez aumentar. E os incidentes de 1956, 1967 e 1973 foram apenas mostras de suas desavenças eternas.

Os acordos de Oslo de 1993 situaram a possibilidade de uma “paz suportável”. Mas o assassinato, dois anos depois, do primeiro-ministro Isaac Rabin pôs fim às esperanças. Desde então que o conflito virou sem solução nem fim.

O papel do Ocidente

O que se viu, portanto, no 7 de outubro de 2023 e depois, por mais cruel que possa aparentar, foram simplesmente a continuação dessa trama. Mas, desta vez, com tons de maior irritação. Primeiro pela revisão do papel do Ocidente no mundo. Em seguida, pela tempestade perfeita protagonizada pela pandemia de Covid-19 e pela nova fase da tensão russo-ucraniana. E, por fim, pela violência da contraofensiva israelense contra os árabes após o ocorrido.

Desse modo, nos primeiros momentos após o 7 de outubro, os países ocidentais que sempre apoiaram a existência do Estado de Israel condenaram ostensivamente as ações do Hamas e, na sequência, os demais países árabes. Os países menos ocidentais e até mesmo antiocidentais pelas Américas, África e Ásia inicialmente hesitaram e alguns ignoraram a situação.

Voltando no tempo, os desdobramentos do 11 de setembro de 2001 complicaram em muito a relação de todos, ocidentais ou não, com o Mundo Árabe. A Guerra ao Terror do presidente George W. Bush gerou complicações difíceis de se superar. Quase de súbito, ser árabe virou sinônimo de ser terrorista em todas as partes. O presidente Barack H. Obama tentou remediar essa péssima impressão. Mas não conseguiu. A relação especialmente entre ocidentais – inclusive israelenses – e árabes só fez piorar.

Se nada disso bastasse, 2009 coincidiu com o momento de superação da crise financeira mundial de 2008 e, concomitantemente, com a afirmação dos países emergentes ancorados nos BRICS. Esses países, agindo em bloco, foram passando da qualidade de fórum de discussões para plataforma revisionista do sistema internacional saído de 1945. Essa intenção de revisão acelerou a alteração de consensos sobre o meio internacional – especialmente aqueles consensos fabricados por europeus e norte-americanos – e, com eles, os consensos sobre o Estado de Israel e as relações israelo-palestinas.

Revisionismo internacional

Foi nesse novo cenário que Israel lançou mão do seu “direito de defesa” e partiu para uma contraofensiva sem perdão contra o Hamas e o mundo árabe situado em Gaza. De lá pra cá, sob alegação de proteção da sobrevivência do povo judeu, as forças israelenses assassinaram mais de 23 mil árabes – em sua maioria, civis e desarmados. Observando a gravidade da situação, os sul-africanos identificaram nesse morticínio uma “intenção de genocídio” e impetraram uma ação na Corte Internacional de Justiça contra o Estado de Israel, surpreendendo o mundo inteiro com a inversão de valores. Perceba-se que uma denúncia desse tipo seria impensável antes da emergência de países revisionistas na cena internacional. Mas, agora, nesse cenário de valores em revisão, a denúncia foi apresentada e aceita pela Corte. Novos tempos.

Como fiador dessa revisão de preceitos e valores internacionais, o Estado brasileiro, sob a presidência de Lula da Silva, expressou solidariedade aos árabes e apoio à iniciativa da África do Sul, no dia 10 de janeiro de 2024, após uma reunião com o embaixador da Palestina em Brasília. No campo diplomático, essa decisão decorre simplesmente da mutação de perspectivas dos países revisionistas do sistema internacional e da proeminência do Brasil no interior desses países. No campo jurídico, esse apoio serviu para pressionar a Corte a aceitar a denúncia da África do Sul. No campo político, o Brasil tomou partido de uma situação que não é necessariamente política nem jurídica, tampouco diplomática. Talvez simplesmente tenha apostado na fixação de seu lugar na História.

Faltou ao Brasil paciência e prudência nessa aposta? Os dias dirão.

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e Pós-doutor em Relações Internacionais na Scienses Po (Paris)

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

2 Comentários

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  1. Na boa… que textinho doído hein! Dá pra extrair ponderações importantes, mas falar que o 7 de outubro é o 11 de setembro logo na primeiro paragrafo já não anima muito na continuação da leitura..
    E dai, vem outros eufemismos.. Fala da morte de Isaac Rabin e de que isso gerou o fracasso da criação de dois estados, mas não cita que o enfraquecimento desta política já era trabalhado por Grupos Israelenses que eram contra a Autoridade Palestina. A morte de Issac Rabin não veio do vácuo. Não foi uma coisa “hun..o que eu vou fazer hoje? Acho que vou tomar um sorvete e depois matar Issac Rabin”. Os tensionamentos contra a criação de dois estados eram tanto de palestinos quanto israelenses, mas o texto da entender que frustrou única e exclusivamente por causa disso! Inclusive, a Palestina não foi a primeira opção para a criação de um estado Judeu, cujo boa parte dos Judeus ortodoxos, entendem que sua criação foi um erro, portanto, estes tensionamentos tambem advem de grupos judaicos.

    Sem mencionar que o texto não cita que o assassinato foi cometido por um ultranacionalista israelense, a leitura do primeiro paragrafo em relação ao Hamas, pode induzir o leito despreparado ao erro e faze-lo achar que foram terroristas árabes que contribuíram para a inviabilidade da criação de dois estados ..

    Outra coisa, dá muita ênfase às lamentáveis mortes do dia 07, mas na hora de citar as mortes palestinas, fala que morreram 23 mil pessoas (hoje 25)e que a maioria eram civis desarmados, o que dá uma passada de pano ao fato que a maioria são CRIANCAS e MULHERES. Israel está massacrando, em especial, crianças! Que, por sua vez, boa parte delas não eram nem nascidas quando o HAMAS venceu DEMOCRATICAMENTE as eleições em GAZA em 2007! Não precisa ser um grande historiador pra fazer esse paralelo.

    Depois, pra arrematar, vem me falar que o genocidio foi tipificado, entre outras forças, por conta dos regimes comunistas e pelo massacre da Armenia; quando na verdade essa ideia de genocidio comunista foi uma narrativa que ganhou maior ênfase nos anos 70 principalmente com a grande fome na UCRANIA e pelas brigas narrativas ocasionadas pela guerra fria. Eu não vou nem entrar no mérito de questionar se foram ou não genocídios.
    Texto muito anacrônico e se dispõe a fazer uma crítica muita intensa, de maneira muito vazia, em outras palavras, com uma pitadinha de presunção!

    1. Apenas me retratando: errei em relação ao tema do Holomodor ter tomado proporções a partir dos anos 1970. O tema já era tratado desde o final dos anos 40. Minha confusão é que esse tema ganha novos contrastes de acordo com cada período de tempo.

      Retiro a parte do anacronismo do texto, mas ainda me faltou muita sustância.

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