BC extrapola poderes e atropela o Congresso e o sistema jurídico, por Lauro Veiga Filho

A manutenção de taxas de juros reais excessivamente elevadas, com raras inflexões para baixa ao longo de décadas, tem impedido que a economia cresça

Gestão de Campos Neto está descontentando desde os desenvolvimentistas ao mercado. Foto: Agência Câmara

BC extrapola poderes e atropela o Congresso e o sistema jurídico

por Lauro Veiga Filho

Quase dois terços da chamada dívida bruta do governo geral, principal indicador escolhido arbitrariamente pelo Banco Central (BC) para definir sua política de juros, guarda quase nenhuma relação com a execução da política fiscal. Dito de forma mais direta, aquela fatia da dívida está sujeita a outra sorte de fatores que pouco têm a ver com o comportamento das despesas primárias, que desconsideram todo o gasto com juros, embora estes desempenhem papel central no avanço do endividamento do setor público brasileiro.

Mas o tamanho da dívida e sua evolução recente continuam sendo utilizados marotamente para sustentar a retórica de descontrole das despesas públicas e fomentar um clima de pânico em relação à “solidez fiscal” do governo, como forma de justificar uma política de juros irracional e deletéria e dar sustentação a reformas ao gosto e feitio dos mercados. A manutenção de taxas de juros reais excessivamente elevadas, com raras inflexões para baixa ao longo de décadas, tem impedido que a economia cresça ao emperrar investimentos e a criação de empregos, concentrando todo o “ajuste” reclamado pelo setor financeiro e seus acólitos sobre as despesas primárias, penalizando os que mais necessitam do Estado e de políticas sociais.

Como observa com argúcia e maior precisão a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, em artigo publicado ontem no site Consultor Jurídico, “a todo tempo, a tese de uma suposta insustentabilidade da dívida pública brasileira tem sido manejada como mecanismo de constrangimento pretensamente neutro e técnico em prol de determinado fluxo de agendas reformistas, cujas oportunidade e conveniência, todavia, apenas competem às instâncias político-democráticas do Estado deliberar”.

Sem base legal

Ainda mais certeira, a procuradora identifica ausência de bases jurídicas e legais na atuação da autoridade monetária, relacionada a “omissões normativas sobre conceitos sensíveis”, a exemplo do que deveria ser considerado como limite para o endividamento público e, mais ainda, de quais indicadores de dívida deveriam ser tomados em consideração. No curso daquelas “omissões”, Élida aponta que a “discricionariedade” do BC tem sido “alargada de forma indevida”. Adicionalmente, relembra ela, “há severos impactos na dívida do manejo das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia”.

Mais claramente, prossegue a procuradora, “ao invocar como um dos motivos determinantes para a manutenção da taxa básica de juros a percepção de risco sobre revisão das regras fiscais brasileiras e, ato contínuo, sobre a trajetória da dívida pública, o BC extrapola sua competência legal e maneja uma razão frágil e insubsistente”. Entre outras razões, porque o aparato jurídico brasileiro não definiu uma regulamentação sobre o que pode ou não pode ser considerado como “trajetória sustentável da dívida”. Na ausência de uma lei complementar que o faça, acrescenta Élida, “não é permitido a uma instância incompetente para o controle das contas públicas (a autoridade monetária, que pode muito, mas não pode tudo) pretender apontar — ainda que implicitamente — suposto risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública brasileira”. Para reforçar, a autoridade monetária tem invadido terreno do legislador, atropelando o Congresso em sua função de criador de leis.

Qual a dívida?

Há controvérsias mesmo nas formas de calcular a dívida dos governos, ainda que esse tipo de discussão jamais ocupe muito espaço na grande imprensa e no jornalismo dito “especializado”. A dados de janeiro deste ano, divulgados no final de fevereiro pelo BC, registram uma dívida bruta, na soma de todo o setor público, na faixa de R$ 7,257 trilhões, algo como 73,12% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo dos 86,94% alcançados em dezembro de 2020, sob impacto da pandemia. O fim dos créditos extraordinários abertos para o enfretamento da crise sanitária e o avanço nominal do PIB ajudaram a reduzir o endividamento desde lá.

Mas o conceito de dívida bruta considera, por exemplo, créditos e outros haveres de caráter financeiro que não são deveriam ser classificados como dívida e ainda as chamadas “operações compromissadas”, utilizadas pelo BC para regular a oferta de dinheiro na economia (e que, da mesma forma, não têm caráter explícito de dívida).

Como se sabe, com reservas próximas de US$ 331,122 bilhões ao final de janeiro deste ano, o Brasil mantinha inalterada sua condição de “credor líquido” no mercado financeiro internacional, o que significa dizer que suas reservas externas superavam o valor da dívida externa. Precisamente, o mundo devia liquidamente ao País algo como US$ 29,791 bilhões em janeiro. Mas, na composição da dívida bruta total, a dívida externa entra sem descontos, desconsiderando-se o tamanho das reservas, que correspondiam a 17,38% do PIB em janeiro passado.

Além das reservas, o Tesouro mantinha, em sua conta no BC, um saldo de R$ 1,606 trilhão, perto de 16,18% do PIB, uma espécie de colchão de segurança para ser utilizado na gestão do serviço da dívida quando necessário (quer dizer, para pagar juros e amortizar títulos da dívida). Apenas os dois itens correspondiam, em janeiro, a um terço do PIB (33,56%), somando inacreditáveis R$ 3,331 trilhões em créditos a favor do Estado brasileiro. Descontados apenas esses dois haveres financeiros, a dívida baixaria para 39,56% do PIB. Evidentemente, esse percentual não assustaria ninguém e não poderia justificar os juros astronômicos impostos ao País pelo BC.

Em seu artigo, Élida acrescenta outro dado, ao lembrar que as operações compromissadas (venda de títulos pelo BC ao mercado mediante o compromisso de recompra futura) igualmente ajudam a compor a dívida bruta, ainda que funcionem apenas como instrumento para regulara a liquidez no mercado. Também em janeiro, aquelas operações atingiram pouco mais de R$ 1,144 trilhão, correspondendo a 11,53% do PIB.

Sua substituição por depósitos voluntários remunerados, como operam as maiores economias do mundo e conforme já prevê a Lei 14.185, de 14 de julho de 2021, ajudaria a reduzir a dívida bruta para 61,59% (embora a mudança, por motivos que o espaço não permite detalhar, tenha impacto sobre a dívida líquida). Somando operações compromissadas, reservas internacionais e a conta única do Tesouro, nada menos do que 45,09% do PIB ou 61,7% da dívida bruta total são determinados por outros fatores que não as despesas primárias.  Isso mostra como os conceitos são fluidos e sujeitos a debate, que continua sendo interditado pelos mercados.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

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Redação

3 Comentários

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  1. A peça produzida pelos MARKET BOYS, chamada ata do copom, é de um cinismo revoltante, Reproduzo a seguir, um trecho da ata, que no meu entender, dá uma dimensão do viés criminoso dessa malta. “levar a um processo desinflacionário mais benigno através de seu efeito no canal de expectativas”. Na ata foram abordadas a inflação, desinflação, dívida etc.Mas em nenhum trecho, foi abordada redução da taxa de juros pornográfica. Quando eles se referem a uma desinflação benigna, pode parecer um descuido, mas na verdade, revela o desejo deles de alcançar o nirvana de suas expectativas de lucro fácil, tão almejado pelo deus mercado, ou seja: JUROS EXORBITANTES E INFLAÇÃO BAIXA. Dificilmente o Brasil sairá dessa pasmaceira, enquanto o deus mercado tiver o controle do Banco Central do Brasil.

  2. Deixe eu ver se entendi. O Brasil – como quase todos os outros países do mundo – financia os EUA, comprando títulos daquele país, que assim usa o dinheiro dos outros para fazer guerras, ir ao espaço, derrubar governos mundo afora, e para formar as nossas “reservas internacionais”; e essa reserva torna-se, por sua vez, uma espécie de caixa-forte, ou ‘Fort Knox’ da riqueza daquele país, o devedor, já que os compramos, e deles não podemos dispor, fora do tal mercado secundário – que é, literalmente, a tal ciranda financeira. Ou seja, pagamos para custodiar o tesouro dos países ricos, e, tirando uma parcela mínima de comissionados (ao pé da letra) e o Mercado financeiro (leia-se, os operadores e beneficiários do tal mercado secundário, onde negociam-se títulos de dívida), ninguém mais se beneficia disso. É isso? Somos credores, pois nossas reservas – títulos do tesouro americano – superam nossa dívida, mas jamais nos beneficiamos dessa situação, pois não dispomos de recursos próprios, uma vez que nosso caixa segue rigidamente contingenciado e controlado pela necessidade de rolar nossa dívida, o que, até onde eu sei, gira em torno de 45% a 50% do nosso orçamento fiscal, e da qual não podemos pagar o principal, uma vez que, num mundo sem dívidas, não existiriam bancos – o que seria muito cruel, e uma sentença de morte para essa gente tão boa. Ora, se isso aí é minimamente verdadeiro, o BC é o verdadeiro poder deste país – e de todos os outros onde existam bancos, mudando apenas a posição, de subalternidade para chefia. Por que haveria ele, o banqueiro, de dar satisfações a presidentes, ou primeiros-ministros? Presidentes não mandam em banqueiros.
    Quem determina a política do BC é a nossa posição subalterna no mundo. Como colônia, ou país independente (sic), essa é a nossa posição no mundo: entreposto comercial, antes, mercado de overnight, hoje. A taxa de juros atende à necessidade do dólar. US$ 1,00 dólar compra R$ 5,16 (29/03/2023) em títulos com juros estratosféricos (estratosfericamente acima das taxas dos países ricos), mantém-se esse título por alguns dias, negocia-se no mercado secundário (e aí entram um festival de intermediários, prepostos, titulares e portadores, doleiros, ágio, deságio, o escambau, tudo embrulhado em uma coisa só, outrora em papel, hoje em sinais eletrônicos) e ganha-se em algumas horas o que um título, por exemplo, do tesouro americano, levaria três a cinco anos para pagar.
    O Brasil já foi o cu do mundo. Hoje é o aparelho digestivo do mundo. Damos o pasto, e o mundo nos devolve o estrume.

  3. Não seria o caso dos movimentos sociais, centrais à frente, convidar essa procuradora para ver que tipo de instrumento jurídico pode ser utilizado e contra quem, se o ente BC ou seus diretores, por usurpação de poderes? Não devemos ter nenhuma esperança de que mobilizações por mais intensa que sejam venham a sensibilizar essa gente, ameaça de cadeia sim.

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