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A política monetária e o endividamento recorde das famílias brasileiras

Com a economia estagnada, as condições do mercado de trabalho se deterioram substancialmente, afetando negativamente a geração de renda.

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Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

A política monetária e o endividamento recorde das famílias brasileiras

por Carmem Feijó, Norberto Montani e Paula Sarno

Desde a estabilização dos preços nos anos 1990, as taxas nominais e reais de juros do Brasil estão entre as mais elevadas do mundo. A longa e consistente trajetória de juros elevados consolida uma convenção: esse seria o nosso “normal”. Com a pandemia, a taxa Selic nominal atingiu seu menor nível histórico e a taxa real de juros ficou negativa. Mas por um breve período, já que logo voltou a subir. Atualmente a taxa real brasileira é uma das mais altas do mundo, cerca de 10,0% a.a. Ainda que a trajetória de queda da taxa Selic tenha iniciado ontem, como o foco do Comitê de Política Monetária (Copom) deixou de ser a taxa de inflação – essa hoje abaixo da meta – para dar lugar às “expectativas” inflacionárias, coloca-se areia em qualquer tentativa de reduzir os juros de forma substancial.

É importante ressaltar que, ao considerar o balanço de riscos da política de juros altos, há pouca sensibilidade da autoridade monetária para o aumento da fragilidade financeira.  A política de juros elevados, num contexto de baixo dinamismo, implica um efeito distributivo perverso sobre devedores, principalmente, famílias mais pobres e vulneráveis economicamente. O recente movimento de alta da taxa Selic ajudou a colocar o patamar do endividamento das famílias em nível recorde.

Vamos recordar que o debate sobre as causas da inflação e as formas de combatê-la é antigo e controverso na literatura econômica. Um diagnóstico sobre a inflação para o qual a literatura latino-americana muito contribuiu foi o de mostrar que ela é um fenômeno de múltiplas causas. No entanto, na teoria que fundamenta o regime de metas de inflação, a causa é sempre o excesso de demanda agregada, associado ao excesso de liquidez propiciado pelo banco central. O combate à inflação, neste caso, deve enxugar a liquidez, o que no referido regime é feito via manipulação da taxa básica de juros.

Postula-se, dentro desta lógica, que o banco central deve ajustar a taxa básica de juros para atingir uma meta de inflação previamente anunciada. Um banco central que goze de boa reputação e haja com transparência deve se comunicar bem com o mercado para fazer convergir as expectativas inflacionárias para a meta estabelecida em um prazo determinado. Portanto, o estímulo é para que a autoridade monetária seja rigorosa no cumprimento da meta, pois o sacrifício imposto por uma política contracionista seria de curta duração.

No caso do Brasil, nos últimos anos, a meta de inflação tem sido fixada em um patamar baixo para nosso padrão histórico. Fixar metas baixas – que exigem maior sacrifício para serem alcançadas – resulta em uma política monetária bastante conservadora. O que justifica um arranjo de política monetária tão restritivo? A hipótese implícita no modelo de metas de inflação é a de que os efeitos de políticas monetárias são passageiros, ou seja, não comprometem a trajetória de crescimento da economia no longo prazo.

Porém, o desempenho recente da economia brasileira é um exemplo de que os efeitos de uma política de juros em patamar elevado podem sim comprometer o crescimento econômico – e são, portanto, duradouros. Mais que isso, os juros altos têm efeitos distributivos perversos, que por vezes passam ao largo das análises convencionais.

Tomemos como referência o endividamento das famílias. Com a economia estagnada, as condições do mercado de trabalho se deterioram substancialmente, afetando negativamente a geração de renda. Nesse contexto, as famílias brasileiras passam a recorrer ao crédito para sobreviver. No Brasil, isso pode ser ilustrado por dois indicadores. A razão dívida/renda passou de 16,5% em 2005 para 49,0% em 2022. A razão serviço da dívida/renda (o quanto da renda se paga em juros e amortizações) também cresceu, passando de 17,0% em março de 2005 para 27,4% em fevereiro de 2023.

A evolução desses indicadores sinaliza o aumento do comprometimento da renda com pagamento de dívidas, que se tornam um fardo difícil de ser superado. O indicador agregado mascara, ainda, importantes desigualdades entre as diferentes faixas de renda, que agravam ainda mais o quadro das famílias mais pobres. Dentro dessa dinâmica, a dívida contraída para dar conta das despesas financeiras assumidas no passado é renegociada em condições piores, com altas taxas de juros e prazos curtos: cheque especial e cartão de crédito rotativo são modalidades de empréstimos que se destacam negativamente nesse âmbito, com elevados níveis de inadimplência. No limite, o superendividamento estrangula as condições de reprodução das famílias, empurrando-as para um abismo de privações.

Em trabalho recente* sintetizamos as múltiplas dimensões do endividamento das famílias brasileiras construindo um índice composto de fragilidade financeira das famílias. Ele mostra que houve uma forte ampliação da fragilidade financeira desde a recessão de 2015-2016, da qual ainda não nos recuperamos. A pandemia parecia sinalizar uma expansão sem precedentes do indicador (pico em março de 2020), mas esse processo foi contido devido aos efeitos das políticas de transferência de renda, ao estímulo regulatório às renegociações de dívidas, à elevação do limite do consignado e às baixas taxas de juros então vigentes. Ainda que essas políticas tenham sido temporárias, conferiram maior flexibilidade às famílias brasileiras num momento crucial. No entanto, finalizado o prazo das mesmas, o processo de endividamento retornou de forma aguda.

A expansão da fragilidade desde 2021 reflete três fatores: o aumento do comprometimento da renda das famílias com o serviço da dívida, a piora na qualidade dos empréstimos contraídos e o aumento na inadimplência. Isso tudo justifica a preocupação de que as famílias brasileiras estejam cruzando um limiar de vulnerabilidade financeira, aquilo que o economista americano Hyman Minsky chamaria de posições financeiras Ponzi. Esse nome remete ao golpista Charles Ponzi, que aplicou um esquema pirâmide financeira nos Estados Unidos dos anos 1920, ao qual se assemelha a situação de superendividamento: para honrar as dívidas do passado é necessário contrair mais e mais dívidas, numa espiral sem fim. É nesta espiral que parte das famílias brasileiras parece ter ingressado.

O Programa Desenrola pode ajudar a aliviar a situação no curto prazo e é bem-vindo. Mas é insuficiente para atacar as questões por trás do crescente endividamento das famílias. O endividamento, assim como o baixo ritmo de crescimento econômico, deveriam ser levados em conta para se rever a convenção em prol de elevadas taxas de juros. Os efeitos da política monetária não são passageiros, influenciam de forma significativa a trajetória de crescimento das economias e têm efeitos significativos sobre a distribuição de renda e riqueza.  Sem o auxílio dessa política, será impossível quebrar a espiral de endividamento que assola as famílias brasileiras.

*Para mais detalhes, ver o texto para discussão: Montani, N.; Sarno, P.; Feijó, C. Household financial fragility in Brazil (2005-2023): a Minskyan analysis. Texto para Discussão IE-UFRJ, nº 017, 2023.

Carmem Feijó – professora da Universidade Federal Fluminense e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (Finde).

Norberto Montani – professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Observatório do Sistema Financeiro (OSF).

Paula Sarno – pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Finde e do OSF, além de ex-analista da Comissão de Valores Mobiliários.

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp

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