Comentário de Douglas Barreto da Mata: Brasil, um país sem futuro, capital: Medicilândia

É como se o assassino de Martin Luther King fosse eleito presidente do partido republicano em uma cidade chamada Jim Crow

Crédito: Pedro Guerreiro/ Agência Pará

Comentário ao post: Elaborando o passado: Lula e o Golpe Militar de 64, por Bruno Alcebino da Silva

Recentemente, o Brasil, como de hábito, juntou seu passado com seu presente.

Corta para a longínqua e remota Amazônia, na cidade batizada com o nome de Emílio Garrastazu Médici, um dos mais sanguinários generais-presidentes do período inaugurado em 1964, cujo “aniversário” se aproxima em 1º de abril.

Na cidade de Médici, o Partido Liberal alçou à presidência local da agremiação o autor (mandante) do assassinato de Chico Mendes.

É mais ou menos como se o assassino de Martin Luther King, preso, condenado, e após cumprir sua pena, fosse eleito presidente do partido republicano em uma cidade do Alabama, Geórgia ou do Mississipi, e que esta cidade se chamasse Jim Crow.

O Brasil é a certeza científica do que dizem os físicos sobre o tempo, ou seja, passado, presente e futuro, são uma coisa só, não há essa divisão linear.

Cena dois:

Em simbólica data redonda, no dia 1º de abril a “Redentora” estará sessentona, mas com corpinho de 20, 30 anos, talvez.

O golpe cívico-militar de 64 rejuvenesce e se alimenta de nossa incapacidade de superá-lo, de dizer o que houve, de fato e de direito, já que quase não é mais possível punir muita gente, já que a maioria está morta, ao menos, os generais-presidentes e seus lugares-tenentes.

Tem um ótimo filme, O Conde (Netflix), onde um Pinochet vampiro, eternizado, assombra e suga o sangue dos chilenos, mas tem por preferência o suco de corações batidos em liquidificador.

Uma metáfora poderosa sobre a persistência de tais figuras e regimes no imaginário das sociedades.

E olhem vocês, o Chile que revistou, e como bem disse Adorno (citado no texto), se não concluiu, ao menos tentou elaborar suas memórias.

Somos, por assim dizer, um país de cretinos, não por golpes ou violências institucionais contra seus cidadãos e cidadãs, nada disso, todas as civilizações, de um modo ou de outro, em nome do capitalismo, já experimentaram esses processos.

Os EUA, cinicamente, fazem até filmes disso tudo depois.

Nossa indigência, nossa covardia, nossa podridão moral é manifestada na ausência de punição, de apuração desses acontecimentos, reparando, por pouco que seja, as feridas abertas nesses episódios, ensinando e prevenindo que gerações posteriores esqueçam e sejam tentadas a repetir esses feitos.

Assim fizeram Argentina, Chile, Uruguai, com suas ditaduras, Alemanha com o nazismo, Itália com o fascismo.

Não me consta que estes países tenham desintegrado após esses ajustes de contas, mesmo que haja vampiros.

Volta para cena um:

O que choca, no entanto, não é o fato de existir uma cidade chamada Medicilândia (há tantos outros tantos monumentos e homenagens, como Rodovia Castello Branco, Ponte Costa e Silva, etc, etc), e nesta cidade o presidente do partido de extrema-direita seja o assassino de um importante líder de movimentos dos povos da floresta.

Pelo menos, o assassino de Chico Mendes foi julgado e cumpriu sua pena, fato raríssimo.

A surpresa, nestes tempos incertos, é ler que o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva, quando perguntado sobre o 1º de abril, respondeu que está muito mais preocupado com o 8 de janeiro de 2024.

Lula, como todo líder, fala muita estupidez, e outras coisas são retiradas do contexto para que pareçam piores que são.

Neste caso, porém, a total de falta de empatia de Lula com as pessoas que foram mortas, torturadas e “desaparecidas” é assombrosa, e faz crer que, como dizia Leonel Brizola, seria ele uma cria de Golbery (do Couto e Silva, ex-chefe do SNI e o Rasputin da ditadura) para atrasar as esquerdas e os movimentos populares.

De fato, mesmo que reconheçamos toda genialidade de Lula e sua habilidade de absorver rapidamente conceitos novos, ele nada mais é que um produto do “milagre econômico” de Médici, saído das linhas de montagem das carroças com motor do ABC, que só se meteu com sindicato porque a crise do modelo reduziu a quantidade de churrasco e cachaça que tinha acesso, assim como a chance de comprar, como dizia Raul Seixas, um corcel 73.

Enquanto o pau comia nos porões da ditadura, Lula ia, com seu carisma, ao jogo de futebol.

Por mais maldosa e cínica que seja essa fala do Brizola, um craque nessas adjetivações (lembram do sapo barbudo?), ela não se afasta da realidade.

Ou é isso, ou Lula é um medroso, um “frouxo”.

Em 2003, o medo era até justificável, mas se passaram dois mandatos, com enorme popularidade, e nenhum gesto do governo de Lula para mobilizar sua base (o PT chegou a 95 deputados naquela época), sequer para debater a revogação da Lei de Anistia, que o STF (nossa atual “sala da justiça” contra o “mal”) disse constitucional, em afronta a toda legislação e tratados que assinamos, dizendo a tortura crime imprescritível e inafiançável.

Nem vou mencionar a questão técnica do sequestro, já que os desaparecidos por obra de agentes do Estado são, tecnicamente, sequestrados, crimes cuja consumação só cessa com o resgate da vítima, encontro dos seus cadáveres ou declarações de suas mortes, o que não aconteceu.

Portanto, ainda que se considere a excrescência jurídica do argumento que a Lei de Anistia não retroceda para os crimes cometidos antes dela, os sequestros ainda estão em andamento!!!!!

Bem, voltando ao assunto principal, o Sr Lula deu-nos uma importante dica sobre nós mesmos ao dizer: “deixa disso, isso já passou”.

Causa certo espanto, ler em vários meios, a aparente surpresa ou espécie dos articulistas ao contarem o público da Avenida Paulista, que foi lá louvar seu mito, dizendo os analistas que o mito revelou sua força, e que ele está mais que vivo.

Ora, me surpreende que ele não tenha levado 2, 3 milhões de pessoas para o curral paulista.

Minha gente, se pegarmos Lula, sua covardia moral, institucional e política (ele só fala do Holocausto alheio EXTERNO) e Medicilândia, se juntarmos isso à nossa mídia, ao STF, que ora são lava jatistas, ora são democratas, se tudo isso for embrullhado com o crescente número de violência doméstica, à pedofilia tolerada e incentivada na Igreja Católica, enfim, a abissal e intocada (logo eterna) desigualdade social, às mortes de 40 mil pessoas por disparos de arma de fogo, sendo a esmagadora maioria negros e pobres, aí sim teremos um quadro espaço-tempo desse país.

O tempo aqui não passa, seja onde for que ele esteja localizado.

Cena três:

Nossas capitanias eram hereditárias, e ainda são.

Nosso rompimento com Portugal não foi rompimento, foi compadrio de pai para filho, traço de caráter que ainda norteia a determina, como em nenhum outro local do planeta capitalismo, quem vão ser os donos do país, e quem serão os lacaios.

Um pequeno parêntese: além de sermos o último país a abolir a escravidão, ainda tentamos manter esse flagelo em outro país, quando D. Pedro II (o que dizem o ilustrado) mandou navios com ajuda militar para os estados confederados do sul dos EUA, que estavam em guerra com a União, justamente para impedir a abolição por lá.

A república não foi movimento de massas, mas de militares.

As eleições eram de cabresto, alternando oligarquias rurais mineiras e paulistas.

Em 1930, outra oligarquia, a gaúcha, fez-se “revolucionária”, para tecer outro golpe, povo alheio, e desceu goela abaixo a organização do trabalho e do capital, a pauladas de DIP, estados novos, etc.

Em 1945, novo golpe sobre o golpista Getúlio, que depois, em 1954, desta vez eleito, foi esmagado até a morte.

Democratas o assediaram? Quem, Lacerda?

Vem 1958, e o corvo grasna: “Juscelino não pode ganhar, mas se ganhar, não pode ser empossado, e se empossado, não pode governar”

1961, Jânio Quadros, um tipo de Collor com Bolsonaro assume, e depois, some, varrido pela própria vassoura moralista.

1964 todos já sabem, e depois, desembocamos no arquétipo de democracia castrada, que chegou até o golpe de 2016, e aqui estamos.

Estes ecos do tempo não deixaram de se ouvir aqui, Campos dos Goytacazes, terra de miséria, desigualdade, poder católico conservador, e elite violenta.

Em 1855, éramos a cidade com maior proporção de negros cativos para homens livres do país, mas aqui chegou a luz elétrica primeiro.

Aqui queimamos os corpos dos mortos pela ditadura em fornos de usinas (cada um dá o que tem, jornal paulista emprestou carros, né?), mas somos todos gente de bem, e o álcool é o combustível moderno.

Lá no planalto, o ministro dos banqueiros, haddad, o sábio, diz que tem que ter uma forma justa de taxar os super ricos.

Uai, mas eu pensei que a simples existência de super ricos ou mega hiper ultra fortunas já fosse uma injustiça pornográfica, não?

Sobem os créditos.

Cenas adicionais pós créditos.

Brasil, 2027, janeiro, a presidente eleita Michele Malafaia toma posse em Medicilândia.

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Redação

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