Os antecedentes: velha mídia e mensalão

Por Bento

Mas o que é realmente impressionante é a absoluta falta de bom senso desses senhores, que jogaram fora todas as chances de seus candidatos vencerem as eleições. E isso não de agora, mas desde 2005.

Até então, o governo Lula era um governo morno, apático, perdido em discussões bizantinas sobre as causas da elevada taxa de juros no país e vendo seu prestígio e poder político desgastar-se pouco a pouco a cada nova reforma – ou arremedo de tal – aprovada no Congresso. Lula era a continuidade, e, como tal, era pífio, criticado à esquerda e à direita, pela falta de vontade de mudar o modelo vigente ou pela falta de capacidade de mantê-lo. Mas ainda assim, o governo logrou construir uma identidade em torno de projetos como o Bolsa Família, bem como outras medidas discretas que lentamente recuperavam a capacidade de planejamento e operacionalização do Estado.

Mas a eclosão do escândalo do mensalão e as trapalhadas subsequentes do governo causaram uma cisão na mídia que acabaria por enterrar por completo o pensamento crítico, abrindo espaço para o espetáculo circense das feras-bestas ora promovidas a “analistas políticos”. De repente, vendeu-se a idéia de que o PT, aquele mesmo partido que até então se mostrava indeciso entre seguir a cartilha do mercado ou atender às reivindicações históricas de seus eleitores, na verdade havia elaborado um plano ousado de dominação do Estado por meio do aparelhamento e da compra de votos no Congresso.

Qualquer analista com um mínimo de conhecimento de Brasil sabia que a acusação era ridícula, e que o próprio mensalão representava a rendição do PT a um esquema (e não projeto) de poder profundamente enraizado em nossa tradição republicana, e não o contrário, como queriam fazer crer os detratores do partido. Era compreensível o acirramento de posições da oposição naquele momento, afinal tratou-se sim de uma crise política gravíssima, que por certo abria consigo uma janela de oportunidades única à uma oposição até então carente de discurso. Mas foi a mídia, com suas opções claramente golpistas, que rompeu de vez o frágil consenso entre a política e a sociedade, abrindo caminho para a reviravolta posterior e a revanche de Lula. As se recusar a cumprir seu papel de mediadora entre as esferas política e social, preferindo ao invés disto postar-se como partido político, a imprensa fez a escolha que culminaria na sua tragédia. Não pela derrota política, mas pela perda – quiçá definitiva – da credibilidade enquanto instrumento democrático.

É direito da mídia tomar posição nos embates políticos – alguns diriam mesmo que é um dever, em nome da defesa da democracia. Essa posição, porém, não pode se confundir jamais com a de um partido. Isso porque é trabalho dos partidos construir discursos – à mídia cabe apresentar e interpretar os fatos. Juntos, imprensa e partidos podem e devem contribuir para a construção de uma agenda de mudança, desde que respeitem o espaço legítimo de cada um. No entanto, quando a imprensa usurpa o espaço dos partidos, a democracia perde. Porque então não temos nem mais imprensa, nem tampouco mais partidos.

O Brasil teve uma oportunidade única em sua história de transformar a dinâmica das relações espúrias estabelecidas entre Executivo e Congresso quando do escândalo do mensalão. Cabia à mídia capitanear esse processo, apresentando idéias que ajudassem os partidos de oposição a consolidar um novo discurso. No entanto, a opção mercadológica falou mais alto e a oportunidade foi desperdiçada. Já era sabido há tempos que havia uma enorme parcela de descontentamento com o governo Lula nas camadas mais elevadas de renda da população – justamente aquelas que mais consomem jornais e revistas de conteúdo político. A Internet e a revolução das comunicações, por seu turno, possibilitou a ascensão de novos “experts” em política: gente de pouca bagagem, mas muito som e fúria, que com poucos cliques era capaz de sintetizar o sentimento desse novo nicho de mercado.

Obviamente, a bile das pessoas teve também sua conta nesse processo – mas, novamente, qualquer analista político com um mínimo de conhecimento do país sabe que as elites (sim, elas existem e têm nome e endereço como todos aqui) nunca tiveram compromisso para com o amadurecimento político necessário ao progresso de nossa ainda jovem República, e, de fato, em matéria política sempre foram tão messiânicas quanto o restante do povo brasileiro, esperando passivas pela redenção na forma de um novo Príncipe, ainda que de farda e fuzil em punho. Ninguém ali queria informação, todos queriam sangue. E, como bons prestadores de serviços, muito sangue os jornais e revistas lhes davam.

No caldo de cultura política que se seguiu ao mensalão, o jogo foi se tornando cada vez mais claro – e seu desfecho previsível. Escândalo em cima de escândalo, fabricado ou não, perdia sua importância material ao mesmo tempo em que ganhava cada vez maior importância política. A demonização do PT tornou-se de tal vulto que mesmo jornalistas sérios, com anos dedicados ao estudo da política nacional, afirmavam em suas colunas diárias que era inadmissível que um cidadão honesto ainda apoiasse o governo naquelas circunstâncias – como se apoio a uma política de governo tivesse algo que ver com a aprovação dos atos políticos desse governo. Ignorava-se por completo as medidas implementadas pelo governo e cujos resultados já se faziam ver na sociedade. Acima de tudo, ignorava-se a profunda ligação que o povo brasileiro tinha com a figura de Lula, muito maior que qualquer identificação partidária e que transcendia em muito o mero sentimento de retribuição por eventuais ganhos econômicos.

O maior erro da mídia foi pautar a oposição, quando esta, no dilema entre o enfrentamento direto com Lula ou sua desconstrução progressiva (o “sangramento”), deixou de aproveitar a oportunidade que tinha para apresentar um novo discurso confiando apenas na derrocada do discurso do PT. A mídia, cujo único compromisso era para com a bile da elite, comandou então o ataque, trazendo a oposição a reboque. Não se tratava, por certo, de um ataque coordenado – afinal não havia um general nesse exército, mas apenas comandantes ávidos em mostrar seu valor, cada qual se superando mais em embaraçar seus pares. E o resultado, vimos em 2006 e veremos novamente agora, com ainda mais evidência.

Não é preciso ser um gênio para deduzir que, se um presidente goza de 80% de popularidade, alguma coisa de bom ele por certo fez (excluindo-se a hipótese de manipulação das pesquisas, própria das ditaduras). Por outro lado, o candidato da oposição também aparecia em posição confortável nas sondagens de voto, o que evidenciava possivelmente um esgotamento do modelo político vigente, embora também o desconhecimento da candidata de Lula. Em todo caso, uma coisa era clara: muitos dos que aprovavam a gestão de Lula votariam em Serra. Então, deveria ser claro como cristal que nenhum discurso oposicionista seria vencedor se se concentrasse na figura do presidente, de seu partido ou de sua candidata. Era preciso apresentar uma nova visão de país – não o contrário, mas a superação da atual, de modo que Serra consolidasse o apoio de parte da enorme parcela da população que apóia o presidente. Para tanto, boas idéias não faltavam, nem ontem nem hoje.

Mas nossa imprensa é impagável. Ao dar espaço a “especialistas” sem qualquer responsabilidade para com o país e muito menos para com a verdade, concluiu-se que era preciso bater – e bater muito. Criou-se termos pejorativos para designar os eleitores de Lula, seguindo a lógica bastante racional de que fazê-lo convenceria apoiadores do presidente a mudar de lado, ignorando o fato óbvio de que não existe melhor forma de convencer a alguém a fortalecer sua posição que ofender-lhe por isso.

Pior que isso: os “estrategistas” esqueceram-se de outro fato óbvio: muitos membros das camadas mais elevadas da sociedade, aquelas mesmas que têm acesso à melhor informação, apoiavam e apóiam Lula, não por comungarem dos métodos de seu governo mas por reconhecerem seus avanços. Entre essas pessoas, muitos dos quais formuladores de opinião com poder muito maior que o das redes convencionais de mídia graças à revolução das comunicações, a oposição poderia ter buscado construir um discurso consistente, tivesse escolhido o caminho da superação ao invés do confronto. Mas para isso teria de se livrar das amarras impostas pela velha mídia, dos velhos slogans moralistas e dos discursos bolorentos e sem profundidade. Lamentavelmente, a oposição, que já era fraca, escolheu o suicídio – delegou por completo à velha mídia a formulação de seu discurso, enquanto se dedicava a inúteis lutas interstinas pelos despojos de um governo que, ao contrário do que imaginava, ainda não havia acabado.

Respeito a euforia justificada de muitos leitores deste blog para com as perspectivas eleitorais deste ano, mas o fato é que a situação atual é deprimente para o futuro da democracia brasileira. A oposição desapareceu enquanto forma e conteúdo, o que significa não a vitória do discurso do PT, mas seu enfraquecimento também, posto que o atual sistema de governabilidade, assentado no fisiologismo e na submissão à supremacia do PMDB no Congresso, tornou-se um dos “pés” do modelo de desenvolvimento nacional, tão ou mais importante e imutável que a independência do BACEN ou o câmbio flutuante. E, pior que toda a decadência da política nacional é a decadência da mídia. Pois partidos se reinventam, uma vez que podem recuperar sua identidade por meio do vínculo com seus eleitores. Mas uma imprensa sem credibilidade, que forja discursos fechando os olhos para a realidade do país, é uma tragédia para a democracia. Não há controle social capaz de devolver a credibilidade a uma mídia que abandonou de vez seu dever moral em nome do interesse econômico de curto prazo.

Contudo, a velha mídia não morrerá tão cedo, como muitos imaginam aqui, ao contrário – ela ainda vicejará por muitos anos às custas do nicho de mercado que ela tão bem cativa hoje. Os “experts” políticos de hoje certamente definharão, uma vez mais exposta sua absoluta falta de qualidade e responsabilidade. Com eles serão arrastados também alguns pobres medalhões da mídia que compraram seu discurso pobre por conveniência ou preguiça. Mas seus patrões continuarão, firma e fortes, no comando dos jornais e revistas. Não haverá imprensa, mas os negócios continuarão a fluir. A não ser, é claro, que ao suicídio moral da velha mídia sobrevenha em seguida seu suicídio econômico, na forma de decisões equivocadas sobre o futuro das tecnologias de comunicações que ameacem sua sobrevivência. É improvável na minha opinião que isso aconteça – mas é possível. Como vimos, não podemos jamais subestimar a capacidade de nossa mídia fazer lambança. E, se há algo que aprendemos nesses últimos anos, é que, se eles realmente chegarem à hora final, morrerão atirando e para todos os lados. E então senhores, salve-se quem puder. 

Luis Nassif

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