O mundo enfrenta com mentirinhas a catástrofe das salamandras, por Nilson Lage

A terceira consequência da globalização decorre dessa retomada do misticismo: é o uso abundante da informação de fonte indefinida, que dá espaço à suspeita desinformada e à mentira expressa.

O mundo enfrenta com mentirinhas a catástrofe das salamandras

por Nilson Lage

Em 1936, Karel Capek, o autor tcheco que inventara, anos antes, a palavra “robô”, publicou sua novela mais conhecida, “A guerra das salamandras”. Trata-se de uma sátira, entre outras mazelas da sociedade, à destruição do meio ambiente pela prática da soberba e da ganância que independe de regimes políticos, mas chega à máxima insensatez, aplicada à luta de classes, na fase imperialista do capitalismo.

Salamandras de uma espécie diferenciada, que têm mãos e aprendem a falar, são descobertas em uma ilha na Indonésia. Aprisionadas e escravizadas, habilitam-se a substituir os homens em tarefas produtivas e, enfim, despertam neles simpatia — conquistam-nos a ponto de não perceberem que os bichos anfíbios têm seus próprios planos justiceiros: tranquilamente, vão deglutindo os continentes e reduzindo o espaço vital de seus amos.

Há muito que aprender nos anos 30, tempo de recessão e do apogeu de três modelos de intervenção estatal — o estalinista, o fascista e o keynesiano do New Deal. Mudaram cenário, estratégias e elenco; a União Soviética suicidou-se; os Estados Unidos regrediram de Roosevelt a Trump; a China voltou ao palco que abandonara há século e meio; o nazismo ressurge, agora crente. Mas há muita coisa parecida, até a ansiedade e a urgência.

Em portos brasileiros, filas de carretas trazem a soja e o minério jorra de dutos em porões de grandes navios: são montanhas de ferro que desmoronam, deixando depósitos precários de lama tóxica que escoam de vez em quando. Tudo que é humano, das cidades às ilusões, renova-se em prazos cada vez mais curtos. E a Terra esquenta.

Que o planeta está de fato aquecendo, há poucas dúvidas. Embora não seja trivial, existe tecnologia para a medição da temperatura média, que vem sendo feita. São muitas as implicações dessa constatação, e é em torno de consequências, desdobramentos e interpretações que se distribuem divergências.

O clima é um processo caótico: tende a se desenvolver combinando parâmetros que variam com alguma regularidade, como as ondas do oceano ou os ciclos da economia, curtos e longos. É preciso estabelecer se o atual aquecimento reforça ou contraria o movimento programado, isto é, se é cíclico ou anticíclico; e se, afinal, tem ímpeto capaz de quebrar o equilíbrio do sistema, gerando a catástrofe.

“Catástrofe”, neste sentido, é algo que ocorre quando, por exemplo, o ferro parte ao dilatar-se, a água ferve ou as bolsas de valores colapsam. Para nós, a do clima seria o apocalipse: para a Terra, leve inflexão em seu destino, da qual, obviamente, não haveria registro humano.

Uma hipótese radical

Fala-se em “consenso entre cientistas”: não é tão amplo quanto se sugere e, mesmo se fosse, nada provaria. Há pouco mais de um século, era consensual a superioridade biológica e mental dos indivíduos brancos, e assim se explicava porque os europeus haviam conquistado Ásia, África e América; consensuais, em seu tempo, foram o heliocentrismo, a utilidade terapêutica das sanguessugas e do ar puro da montanha que, longe dos miasmas, combateria infecções virais e bacterianas.

No entanto, a poluição é algo real e trágico, que se evidencia localmente aos sentidos humanos pela turvação do ar, em geral acastanhado, e das águas; seca e inundação, poeira e mau cheiro; safras perdidas. gases irritantes, metais pesados, chuva ácida.

Atribui-se o aquecimento global não a isso, mas ao acúmulo na atmosfera terrestre de dióxido de carbono (CO2) e de metano (CH4). O primeiro desses gases — como seu par incompleto, o monóxido (CO) –, não tem cor ou cheiro, é essencial à vida porque se exala na respiração e permite a reconversão do oxigênio pela fotossíntese das plantas vasculares. O metano é o mais simples dos hidrocarbonetos, categoria que representa resíduo último de todo processo de vida que houve na Terra; aprisiona-se no solo e sob a camada de sal do mar como óleo ou gás sob pressão. Ambos são abundantes, funcionais, produzidos por vários mecanismos geofísicos e biológicos, essencialmente orgânicos, porque o carbono é a substância de que se compõem os organismos.

Se o problema tem, como parece ter, a potência catastrófica que atribuem a substâncias tão comuns e necessárias, então há algo errado nas campanhas ambientalistas que ocupam espaço na mídia e as grandes corporações abraçam Seu caráter enganador deve-se a que não se trataria de corrigir desvios de comportamento, mas de interferir na matriz econômica padronizada das sociedades atuais.

A fúria do máximo consumo

A ideologia em voga em nossa era pós-industrial propõe que, em lugar de se utilizar o trabalho dos homens para produzir bens, serviços e testemunhos — monumentos, palácios, obras de arte –, como no passado, bens, serviços e testemunhos sejam produzidos com o objetivo primordial de gerar trabalho, porque da exploração do trabalho é que se extraem lucros e se realimenta o sistema. O resultado é a aceleração contínua do ciclo produtivo e a rápida obsolescência dos produtos.

Estipulado um patamar tecnológico e um padrão estético, promovem-se séries progressivas de acumulação de enfeites ou adereços e de progressão de valores (na potência das máquinas, por exemplo, ou na velocidade dos processadores), até que nova transformação essencial aconteça, Hofstader (“Gödel, Escher, Bach”) aplica a tais séries e imagem do uróboro, a cobra que morde o próprio rabo, e Thomas Kuhn (“A estrutura das revoluções científicas”) as projeta na história da evolução do conhecimento acadêmico.

O mais-valia e a obsolescência programada explicam o consumo cada vez maior de matérias primas e energia — mais atividade, mais CO2, mais NH4 na atmosfera e maior avanço sobre recursos não renováveis da Terra.

Outro fator atuante é a decisão de retardar os saltos tecnológicos — as “mudanças de paradigma” — para se explorar até o fundo do tacho tecnologias consolidadas. Foi assim que a digitalização e sua associação às telecomunicações foi retida por décadas enquanto se completava o ciclo acumulativo dos registros analógicos (discos de vinil, filmes fotográficos) e do modelo centro-periferia em que se fundava o modelo de dominação ideológica descrito no relatório McBride, da Unesco, em meados dos anos 1970, “Um mundo e litas vozes”.

A insistência em utilizar como fonte energética os combustíveis fósseis é uma das mais óbvias motivações — embora não a única — da elevação do acúmulo de CO2 e CH4 na atmosfera observada nos últimos dois séculos. A adoção de medidas corretivas, como a eletrificação dos transportes (logo, a substituição dos motores de combustão interna) e a obtenção de energia a partir de fontes hidráulicas ou nucleares) vem sendo combatida por poderosos interesses. A geração eólia e fotoelétrica, que se tolera melhor, será necessariamente subsidiária, porque descontinua: seu efeito, conforme o caso, é aumentar a durabilidade dos reservatórios hídricos ou economizar combustível dos geradores.

É sintomático que a crise desse modelo se evidencie justamente quando o advento da inteligência artificial tende a desvalorizar o trabalho humano como fonte do lucro, fazendo-nos retornar à competição frenética da Era Mercantil e à concentração de investimentos na especulação dos lucros futuros, novas e sucessivas “febres das tulipas” (como descobriram os empolgados pequenos burgueses da Holanda do Século XVII, a corrida pela tulipa negra é um jogo especulativo que termina em ganho zero).

Entre a revolução e a fraude

A revolução que se julga necessária para o desafio de preservar meio ambiente habitável (sendo esse o caso) não é, certamente, o que se propõe nas campanhas de escolas básicas e nos veículos de mídia. Aqui, o discurso apocalíptico convive com boas intenções, soluções individuais e remédios de conveniência: banhos rápidos, luz discreta, caminhadas e bicicletas, ar puro, legumes frescos. Guardar florestas ou proibir sacolas de plástico são paliativos mais ou menos relevantes.

Repete-se a prática de sempre das estruturas de poder que utilizam o medo do castigo divino e sugerem ao povo soluções pífias. Dá-se ainda bronca moralizante nos povos bárbaros de países luminosos, de água abundante e campos fartos do Sul do Equador, em que não existe pecado nem medida para o exagero.

Nos anos 1970, com a inclusão da questão ambiental entre as “causas edificantes” que, excluída a luta de classes, deveriam ser incentivadas por fundações financiadas por empresas e partidos políticos graças a renúncia fiscal dos países ricos, a militância ambientalista, herdeira do naturalismo romântico, passou a dispor de recursos antes escassos.

Das três consequências negativas, a primeira foi o estímulo à despolitização ou à distorção política, (que se equivalem): a segunda, a apropriação das campanhas por interesses particulares — como o de petroleiras contra hidrelétricas ou de potências nucleares pela preservação de seus privilégios além da perspectiva estritamente militar.

O caso da floresta amazônica é exemplar: a região, quente e úmida, tem ecologia sensível, que o desmatamento ameaça: há risco de desequilíbrio, alagamento e desertificação. No entanto, o que se exalta não é esse efeito previsível, mas ameaça menos evidente ao clima global. Em um debate livre, isso seria esclarecido: há dados concretas a considerar e métodos racionais que assegurariam o aproveitamento e conservação da biodiversidade.

Mas o debate deixou de ser livre em centros de pesquisa subsidiados e na mídia comercial de que suprimiram a fonte honesta de recursos: a discussão, que deveria se situar no âmbito das ciências da natureza, transfere-se para uma área de discursos difusos, em que as versões dominam os fatos. Predomina, então, o confronto exclusivo entre os depredadores e os cultores de uma natureza ideal e sacralizada.

Alguns desses vivem uma forma de alienação de matriz religiosa: acreditam que o homem é estranho à natureza, embora criado, como tudo mais, acreditam, por Deus. É como se preservassem um afago de Deus só para os homens.

A terceira consequência da globalização decorre dessa retomada do misticismo: é o uso abundante da informação de fonte indefinida, que dá espaço à suspeita desinformada e à mentira expressa. Trata-se de traço essencial da pós-modernidade Como ditou Heidegger, o filósofo do Século XX, a verdade não é o discurso que se adéqua à realidade mas a realidade que se adéqua ao discurso de “alguns homens”, cardeais e bispos da “religião sem Deus”.

As pessoas são levadas a aceitar e reproduzir esse tipo de argumentação porque coincide com suas crenças, sobre as quais dificilmente cogitam. Acreditam que, para qualquer questão complicada haverá resposta simples — e é tranquilizador tê-la pronta e disponível.

Como as campanhas são conduzidas por gente leiga — ninguém mais leigo em ciências do que um sábio em humanidades criado na academia nas últimas dez ou doze décadas –. é fácil convencê-las de que um argumento com aparência científica é verdade e o outro, contrário, também parecido, deve-se a alguma conspiração — o que, de fato, tanto pode acontecer quanto não.

Quando alguém com esse perfil leu, há umas duas décadas, que a água represada nas barragens brasileiras atrasaria a rotação da Terra, ou que o lago de Tucuruí, no Pará, fermentaria matando os peixes e exalando gás sulfídrico, certamente foi levado a aceitar esses absurdos, similares aos que hoje se publicam na mídia, impunemente.

Se faltam meios subjetivos de checagem, também os objetivos são escassos. Na atual carência de dinheiro, não há na mídia quem sustente editores de ciências, os quais, na prática, funcionariam como desmancha-prazeres e sabotadores de tiragens e audiências.

Vivemos um tempo de angústia, que as pessoas precisam justificar com maus presságios. Há fortes suspeitas rondando as esperanças e as radicais medidas necessárias.

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