Senado e princípio federativo

Quando o Senador Cyro Miranda (PSDB) apresentou a PEC da gratuidade do mandato de vereador em municípios com até 50.000 habitantes, foi resposto, inclusive como reação, o debate sobre a extinção do Senado.

Tenho interesse nesse último tema, porque ele envolve uma preciosa discussão sobre o princípio federativo.

Talvez a medida mais adequada para altercar  a reflexão sobre o princípio federativo seja a investigação da origem do Senado. Pois a “segunda casa” – assim como a idéia de federalismo – foi gestada pela experiência norte-americana, na Convenção de Filadélfia, em 1787 (EUA).

A partir dessa Convenção, integrada por cinqüenta e cinco delegados, representando doze Estados norte-americanos (até então organizados sob o modelo de uma Confederação de Estados soberanos), surgiu a Constituição dos Estados Unidos da América, agora reunidos num único Estado federado, detentor da soberania nacional, integrado – de forma indissolúvel – por entes federados com autonomia financeira, administrativa e política.

O Senado federal – assim como a Federação – foi obra da engenhosidade dos convencionais da Filadélfia. Ocorre que a elaboração do texto constitucional foi tarefa árdua, visto que pelo menos duas posições políticas estavam em drástica disputa, exigindo que o conflito fosse resolvido mediante a criação de um consenso, sob pena de frustrar todo o esforço de transformação da Confederação em Federação. A divergência era travada entre os federalistas e os antifederalistas.

Os federalistas, formados por representantes das regiões mais ricas e cosmopolitas, desejavam a ratificação do pacto federativo-constitucional, a fim de se livrarem da instabilidade política da antiga forma de Confederação – impeditiva de uma ordem econômica estável e de uma unidade mais efetiva entre os Estados norte-americanos.

Por sua vez, os antifederalistas, constituídos por representantes de interesses rurais e provincianos, julgavam que o sistema presidencialista – inerente à proposta dos federalistas – continha o germe da tirania (não estariam certos, pelo menos nesse particular aspecto?) e que o federalismo iria limitar as liberdades dos Estados.

As diferenças foram genialmente removidas pelos chamados  Compromises, forma pela qual foram denominadas as avenças costuradas entre os lados em conflito. Um dos acordos foi o The Great Compromise e superava o seguinte dissentimento: os Estados maiores pleiteavam representação proporcional no Congresso, enquanto os menores desejavam igual número de representantes estaduais, com o propósito de manter o equilíbrio entre os entes da Federação que nascia.

A dissensão foi superada pela criação de um Congresso bicameral, com a Câmara dos Representantes representando proporcionalmente a população e o Senado, que, por sua vez, deteria uma representação estadual igualitária.

Assim, na dogmática federalista,  o Senado federal é a casa de representação dos Estados-membros da Federação e tem por finalidade a defesa dos interesses dos entes federados e do princípio federativo, sempre coibindo com rigor as tensões centralizadoras do Governo federal.

Na Federação, pelo pacto federativo-constitucional, os Estados-membros sedem sua soberania à União e, em troca, recebem autonomia política, financeira e administrativa. Com efeito, cumpre ao Senado federal, segundo a teoria federalista, apreciar toda a matéria legislativa que diga respeito à confirmação ou à mutação do sistema de autonomia, sempre buscando preservar os interesses autonomistas estaduais.

As competências “naturais” do Senado federal centram-se idealmente naqueles aspectos concernentes à existência e ao funcionamento da Federação. E os senadores, segundo esse entendimento, obrigam-se a ser, naquela Casa, vozes fortes dos interesses legítimos dos Estados-membros. Promessas não resgatadas na Federação brasileira, por certo.

Ora, no Brasil o Senado federal realiza o papel de órgão revisor da Câmara dos Deputados, desviando-se de seu fim justificador. Faz o que não deve e deixa de fazer o que deveria.

Se é fato notório que o federalismo, a partir da experiência norte-americana, evoluiu, chegando ao estágio de federalismo de cooperação – forma de organização do Estado Democrático de Direito que aposta na descentralização política como motor de sua auto-realização -, também é verdade que a figura do Senado federal aqui no Brasil desgastou-se, a ponto de muitos solicitarem sua extinção. E esse sentimento resulta exatamente da omissão dessa Casa na busca do equilíbrio das relações federativas sempre que esse é ferozmente agredido por políticas centralistas ou pela completa falta de um debate acerca da adequada repartição de competências (e de recursos financeiros) em sede de novo pacto federativo-constitucional.

Aliás, nessa última questão, vale dizer que a Constituição de 88, embora trazendo avanços revolucionários para a consolidação do princípio federativo, como, v.g., a definição dos Municípios como entes federados, falhou no que tange à definição de uma repartição de competências que garantisse equilíbrio à Federação; acabou por consagrar excessivos poderes para a União em detrimento dos demais entes federados. Os Municípios até que receberam muitas atribuições novas, mas não foram dotados dos respectivos poderes para deliberar sobre as políticas públicas a serem implementadas, tampouco foram premiados com fontes de recursos capazes de financiar a despesa pública que se apresentou.

Levando-se em conta que o Senado federal tornou-se em mero revisor dos projetos da Câmara dos Deputados e que, via de regra, é formado por políticos conservadores, estudiosos, como Dinorá Grotti, defendem sua substituição por um Conselho Federativo, que cuidaria apenas – e com a profundidade necessária – de matérias legislativas ligadas à Federação brasileira.

Outra abordagem que me parece digna de consideração é a representação dos Municípios seja no Senado federal, seja no seu sucedâneo, o Conselho Federativo.  Os Municípios, mesmo se tratando de entes federados, ainda estão sem representação na Federação, sofrendo múltiplos infortúnios em razão disso. 

Redação

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