Terra das palmeiras, quem diria, acabou nisso, por Edson Machado Monteiro

A esperança está na força dos povos originários que nos antecederam, que acampam e protestam em frente ao centro do poder, e na liderança combinada da energia dos jovens com a experiência dos que têm cabelos grisalhos

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por Edson Machado Monteiro

Existia um paraíso abaixo do Equador, habitado por nativos, que viviam felizes e em paz com a natureza, até serem descobertos por aventureiros caçadores de riquezas. Com a chegada dos invasores poderosos, a cultura dos habitantes nativos foi vilipendiada e a mudança de hábitos para uma vida mundana, cheia de subterfúgios e desavenças, foi só uma questão de tempo.

O paraíso foi sendo transformado ao longo do tempo em um clone do sistema feudal do Velho Mundo, explorado pelos imperialistas, onde historicamente prevaleceram desigualdades sociais e injustiça, com a elite  dominadora escravizando trabalhadores, derrubando florestas , dizimando povos originários e transferindo riquezas para a metrópole do Império Colonial, para cobrir suas dívidas com os banqueiros ingleses.

No século XIX, o clone europeu ruiu e metamorfoseou-se na Velha República, dominada por uma classe política forjada por filhos de senhores de engenho, que, formados em berços universitários europeus, retornavam à Velha República e, como seus pais, continuaram a se comportar como senhores feudais. Ainda hoje exploram trabalhadores e trabalhadoras, muitos em regime de trabalho escravo, mesmo este tendo sido abolido por lei ainda no mesmo século XIX.

Esses neo-senhores de engenho republicanos formaram grupos poderosos,  mantendo-se no poder por meio dos “votos de cabresto”, escandaloso sistema que hoje faria corar de vergonha qualquer processo de urna eletrônica,  para obter resultados  eleitorais, com missões e incumbências favorecedoras, deixando de lado os interesses do povo e do Estado. Mesmo com alternância de poder, por golpes e contragolpes, a República ficou vulnerável  e nela  ainda não se firmou um sistema de poder,  seja presidencialista, parlamentarista ou misto.

Com essas instabilidades, a defesa da democracia se tornou  um fardo intelectualizante, cujos adeptos são  minorias, sem possibilitar amadurecimentos ou avanços,  presa fácil para qualquer aventureiro ou ilusionista. Mesmo assim, essas minorias lutam no dia a dia  para reverter a situação, na busca de melhores condições de vida para os que não foram nobres na monarquia nem doutores na República.

Entre conchavos e manobras, os  neo-senhores de engenho repaginados conseguiram apear do poder as lideranças que lutavam pela dignidade do povo e pela consolidação da jovem democracia, na certeza de que iriam, assim,  preservar as desigualdades e as discriminações, mantendo o povo cada vez mais oprimido por milicianos atuantes em todos os campos possíveis, valorizando cada vez mais  as práticas de locupletaçâo. Não importa muito a forma, mas sim o objetivo final de um desgoverno permanente, física, atávica e genéticamente cruel, em que a situação ideal é “quanto pior, melhor”.

Até mesmo os mecanismos democráticos que foram implantados em épocas de descuido dos neo-senhores de engenho, como os programas sociais, o sistema educacional, o voto eletrônico, o sistema de saúde, entre outros, vêm sendo duramente combatidos e destruídos, enquanto  tomam de assalto os cofres públicos para enriquecimento pessoal e familiar, agindo na periferia ou no núcleo do poder e ignorando a ciência e as boas práticas de governar.

Ludibriando eleitores com propostas mentirosas e apostando em teses como a da Terra plana, esses neo-senhores de engenho  se apoderaram  da República como se fossem proprietários de uma grande fazenda, distribuindo quinhões de terras, capitanias, cargos e poderes aos mais gananciosos cidadãos, continuando a queimar florestas e arquivos estratégicos e organizando rachadinhas para flertarem com o autofavorecimento. Mas o povo não lhes outorgou tais poderes. Apenas os elegeu, equivocadamente é claro, para governar, votando segundo suas próprias circunstâncias.  Só que governar para eles é abrigar a corja de familiares e amigos nos postos mais cobiçados da Republica e ameaçar os demais podres poderes institucionais que ainda restam estabelecidos, inclusive a Suprema Corte, quando seus interesses são contrariados.

Agora vociferam contra as urnas eletrônicas, ameaçando o pleito de sucessão, colocando em dúvida até mesmo o processo pelo qual foram eleitos, na certeza de que, de novo, o golpismo os possa manter no poder. As vertentes autoritárias se alastram, com dizeres que envergonham líderes e liderados, usando palavras de baixo calão e afirmando que comprar armas é melhor do que comprar feijão! E, no aniversário da Independência, certamente promoverão outros atos que ferem o povo, o estado de direito e as instituições democráticas.

Lembrando Ortega y Gasset, o povo não tem compromissos com seus erros do passado: vota segundo suas circunstâncias atuais. Então, nas atuais circunstâncias, o povo buscará caminhos outros. Não se enganem os marqueteiros, os produtores de fake news, os prestidigitadores, os ladrões do patrimônio público e os demagogos. O povo não está em cercadinhos ou motociatas, nem nos sites de fake news. O povo é negro, é branco, é ruivo, é amarelo, é filho de mães solo ganhando medalha de ouro ao som de “Baile de Favela”, o povo é skate, é surfe, é LGBTQIA+, é fome, é desemprego, é Sônia Guajajara, é Gil do Vigor, é Padre Lancelotti, é gente como eu, como você, que viemos de longe, dos anos difíceis em que sonhávamos com democracia e liberdade e que hoje sonhamos com mais feijão e menos fuzis. Mais uma vez o amor vai vencer o ódio e as flores irão prevalecer sobre os fuzis e pistolas Glock, afastando os rituais imperialistas e ditatoriais, para dar início a mais uma tentativa de restabelecimento da ordem democrática, com o propósito de fazer valerem os princípios de igualdade e diversidade, sem qualquer discriminação, em todos os segmentos e estratos sociais. A esperança está na força dos povos originários que nos antecederam, que acampam e protestam em frente ao centro do poder, e na liderança combinada da energia dos jovens com a experiência dos que têm cabelos grisalhos, como os meus. Vamos à luta!

Edson Machado Monteiro, mineiro, economista, ex-vice-presidente do Banco do Brasil.

Redação

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