Na saúde, quem educa quem?

Por Aracy Balbani

            É digna de aplausos a proposta do Deputado Estadual Dr. Carlos Neder (PT-SP) de que pelo menos 25% das verbas usadas em propaganda por governadores, prefeitos e presidente sejam destinadas à educação em saúde. Em entrevista ao Jornal GGN (aqui), o parlamentar apontou que municípios, estados e União precisam ter “uma política integrada e não circunstancial para frear epidemias” como a da dengue.

Entretanto falta combinar isso com “os russos”, ou seja, o povo, os profissionais de saúde e comunicação, demais parlamentares e os administradores públicos nos três níveis de governo.

            De um lado, quem se pretende educar? Nossa gente inclui dezenas de milhões de vítimas das décadas de (des)governos ditatoriais ou neoliberais, os quais desmantelaram a estrutura sociopolítica e o ensino público nacionais. Vítimas exploradas também pelos financiadores e puxa-sacos de mandatários lesas-pátrias.

Desde a geração de seus avós e pais, as famílias de muitas Wykttoryas das favelas, de Uólaces Maicons das palafitas e de Khleyvissons dos morros foram privadas de cidadania, condenadas a uma ignorância atroz e bombardeadas pela imprensa comercial com mensagens para adotarem o padrão de comportamento e consumo pontificado pelos gurus e musas da telinha.

Excetuando louváveis programas educativos, usualmente com baixo custo de produção e veiculados por emissoras estatais, desde os anos 1970 a TV tornou-se um tubo e, mais recentemente, uma tela de até 60 polegadas a despejar nos lares brasileiros um fluxo copioso e incessante de esgoto in natura, agora em alta definição.

Várias concessões públicas (públicas!) de radioteledifusão, afinadas com grupos da imprensa escrita e portais de notícias da Internet, traduziram com perfeição a doutrina capitalista. Engazoparam grande parte do povo e fizeram-na acreditar que sem copiar o corte de cabelo ou a tatuagem do jogador de futebol, sem imitar a dieta para emagrecer, a maquiagem, a cirurgia plástica estética e o figurino da artista famosa, sem colocar tal piercing, sem consumir qual marca de tequila ou ter o smartphone da hora você não é ninguém. Obviamente, para não contrariarem os patrocinadores, essas empresas de comunicação omitiram que certas dietas e comportamentos (se embriagar, comer sal em excesso, colocar piercing ou realizar tatuagens sem condições de higiene adequadas) podem ser nocivos à saúde.

O brasileiro médio de hoje come e consome o que está na moda na medida do seu bolso e do seu sofrimento. Sim, pois quem trabalha humilhado pelos patrões, se desloca num transporte público indecente e habita uma periferia poluída, desprovida de saneamento básico e de áreas verdes para lazer e convívio social civilizado é um sofredor. Se tem predisposição genética a doenças, o indivíduo sedentário tende a ficar obeso, hipertenso, diabético, ansioso, dependente de remédios ou drogas e, para completar, acaba endividado – o que produz culpa, angústia, frustração e mais doença física.

            A manipulação midiática diuturna não é exclusividade brasileira, mas encontrou solo fértil no esgarçamento do nosso tecido social. Há 15 anos, um garoto de cinco anos que estava num estabelecimento de saúde apontou o dedo para mim e ameaçou: “Vou mandar matar você, sua vagabunda!”. Diante desta agressão verbal, a mãe não esboçou nenhuma reação educativa da criança.

            Em 2015, quando perguntamos como é a família de muitas crianças de cinco anos descobrimos que elas foram abandonadas pela mãe com poucos meses de idade e não conhecem o pai, pois este já estava preso por roubo ou tráfico de drogas quando o bebê nasceu. São criadas por uma tia ou avó analfabeta que tem sérias dificuldades para cuidar das próprias doenças, de outro sobrinho ou neto dependente químico e também desta criança.

            Essa realidade selvagem é explorada e amplificada pela virulência neofascista de vários âncoras, comentaristas, articulistas, fundamentalistas religiosos e outros oportunistas da mídia comercial, perpetuando um estado doentio da coletividade. É impossível assistir a um programa repórter policial da TV que exiba, ao vivo, cenas explícitas de tiroteio, gritos e violência sanguinolenta no horário da refeição sem ter inquietação ou um sintoma estomacal.

Dentre os brasileiros, onze milhões padecem de depressão e 40% de outras doenças crônicas não transmissíveis (aqui). Isso sem contar os dependentes (ou autistas) digitais, pessoas que mantêm os olhos, polegares e indicadores grudados na tela do celular na maior parte do tempo, capazes de consumir alimentos com uma das mãos enquanto a outra se ocupa do smartphone.

Apesar das campanhas governamentais e do maior acesso às informações de saúde pela Internet – segundo a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), mais de 40% dos cidadãos usam a Internet como meio de comunicação, atrás apenas da TV e do rádio (aqui)- é rotina atender, no SUS e no setor privado, pessoas da classe A à E que abusam do álcool misturado a outras drogas, usadas por todas as vias possíveis, praticam sexo sem preservativo e estão entre os 40% de brasileiros que não sabem usar medicamentos de forma correta (aqui).

            A informação de saúde circula, mas não é colocada em prática porque falta o clique decisivo: o despertar da consciência dos indivíduos. E a quem cabe tentar conscientizar nosso povo sobre saúde?

            Os profissionais de saúde, via de regra, dedicam-se apenas às atividades assistenciais e não se interessam em empreender educação dos leigos. Aliás, sem oferecer gratificação em dinheiro ou compensação através de folgas na escala de trabalho quase não se consegue adesão dos profissionais às palestras para o aprimoramento técnico da própria equipe de saúde.

            Os políticos profissionais, salvo honrosas exceções, estão mais preocupados com os interesses da bancada BBB (bala, boi e Bíblia) e dos planos de saúde privados que financiam suas campanhas do que com ações preventivas de saúde para o povão. A julgar pela composição do legislativo federal e estadual eleito pelos brasileiros em 2014, podemos prever nova tragédia no pleito municipal de 2016.

O Governo Federal tem jornalistas produtores e apresentadores, equipe técnica e pesquisadores competentes que atuam no Canal Saúde da Fiocruz (aqui), assim como há outras TVs digitais e podcasts universitários com programação de saúde de altíssima qualidade (TV Unesp, Rádio e TV Unicamp, UFPR TV, etc.). Mas, dada a ínfima audiência, aferida pelas exibições nos sites e curtidas/compartilhamentos nas redes sociais, são talentos desperdiçados pela falta de divulgação desse trabalho junto à sociedade.

Devemos jogar a toalha e desistir de competir com a poderosa mídia comercial que desinforma e desrespeita a população?

Claro que não. Durante anos o radialista Corifeu de Azevedo Marques (1907-1965) repetiu em seu programa na Rádio Tupi AM (SP) que colocar teia de aranha no coto umbilical do bebê era prejudicial. Num tempo em que a tecnologia da informação era precária, com sua persistência ele provavelmente contribuiu para esclarecer muitos ouvintes e evitar casos de tétano neonatal. Outros apresentadores de rádio e TV fizeram e fazem a mesma prestação de serviço de utilidade pública.

Porém, para isso prosperar, falta aos cabeças do partido do Deputado Carlos Neder em Brasília e a muitos outros políticos – de direita, esquerda e extremo-centro, pois a saúde pública deve prevalecer sobre as disputas partidárias e o ego dos parlamentares – o ingrediente essencial: a coragem de efetivar, o quanto antes, a regulação econômica da mídia brasileira. Sem ela, as concessões públicas de radioteledifusão jamais cumprirão fielmente seu papel constitucional de comunicação social para a educação, em saúde ou em qualquer outra área do conhecimento.

Só os corajosos, que assumem e cumprem o compromisso com o povo mais necessitado, têm seus nomes gravados na História. Os covardes até são citados aqui e acolá vez ou outra, mas podemos tirar, se achar melhor.

Aracy P. S. Balbani, otorrinolaringologista. CRM-SP 81.725.

Colaborou José Amaro Balbani, radialista aposentado.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Epidemia

    Confesso que não sou da área, sou só um observador empírico. Me preocupa a epidemia de obesidade que ataca o povo brasileiro. A TV, principal escola do pais, dá importância na luta para a inclusão dos gordos, (o que é correto), mas nada faz quanto à prevenção da obesidade. Vê-se inclusive muitíssimas crianças enormes que, já na primeira infância, comprometem a saúde de toda a sua vida. Não há uma campanha de educação alimentar e de hábitos de saúde destinadas às famílias.

    Penso que a educação para a saúde deveria ser uma política de estado, porque  trará grandes implicações econômicas com o tratamento das doenças advindas da obesidade. 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador