Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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A emancipação feminina à luz do conceito de gênero, por Michel Aires

A discriminação da mulher surge na sociedade a partir da atribuição de qualidades e traços de temperamento, dados como naturais.

A emancipação feminina à luz do conceito de gênero.

por Michel Aires de Souza Dias

A natureza sempre serviu como um mecanismo poderoso para afirmar a verdade de algo. Muitas teorias e doutrinas sociais, políticas, filosóficas e religiosas foram usadas para impor esse ponto de vista. A natureza ora foi usada para justificar a agressividade e a maldades do homem; ora para sustentar sua vocação igualmente inata para a compaixão e a solidariedade (Simões, 2009). Foi a partir de certas características naturais, dadas como inatas, que mulher foi considerada o sexo frágil.  Foi pela imposição dessa falácia que a mulher sempre foi subjugada e ocupou lugares de subordinação em relação aos homens na história da civilização. Apesar de ter variado de época para época, de cultura para cultura, essa subordinação sempre foi pensada como universal. 

A discriminação da mulher surge na sociedade a partir da atribuição de qualidades e traços de temperamento, dados como naturais. A cultura ocidental patriarcal sempre acreditou que as qualidades femininas são determinadas pela capacidade de dar à luz, atribuindo às mulheres as atividades de educar os filhos e cuidar da casa. É como se a mulher já tivesse uma essência fixa e acabada, condicionada pelas suas características corporais reprodutivas: “Quando as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres são vistas como resultado das diferenças, tidas como naturais, que se atribuem a uns e outros, essas desigualdades também são naturalizadas” (Piscitelli, 2009, p. 119).

Os estudos de Engels (2021) sobre “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, mostraram que a subordinação da mulher na civilização ocidental é uma construção histórica, condicionada pelas relações materiais de existência. Em suas pesquisas, o filósofo argumentou que, desde os cinco livros de Moisés, a estrutura patriarcal da família foi consistentemente vista, pelas ciências históricas, como a forma mais ancestral de parentesco. Essa configuração foi comparada a família burguesa contemporânea, sugerindo uma suposta ausência de evolução ao longo da história familiar. Apesar de investigações antropológicas mostrarem o contrário, destacando a multiplicidade de formas na organização familiar, a família monogâmica emergiu como predominante e duradoura, adquirindo significado e relevância universal. Desse modo, Engels empenhou-se em evidenciar que a formação da família monogâmica surgiu como uma estrutura mediadora entre as classes sociais e o Estado. Em decorrência disso, ele desenvolveu uma teoria que fundamentava a opressão das mulheres no casamento por meio das relações econômicas de propriedade. Assim, a subordinação das mulheres foi concebida para ser examinada à luz das relações capitalistas de classe (Haraway, 2004).

O que Engels descobriu foi que a família não representa uma instituição natural, mas sim uma entidade historicamente vinculada às condições econômicas e políticas. Ele também evidenciou que, para além das influências biológicas, a opressão de gênero e as relações de dominação no casamento têm raízes culturais. Essas descobertas tiveram papel fundamental no início do século XX, proporcionando aos movimentos feministas subsídios para criticar tanto a estrutura da família patriarcal, quanto a opressão das mulheres.

Foi somente no final do século XIX que surgiram as lutas feministas e a mulher começou a se tornar sujeito pleno da história. A primeira onda feminista contra a opressão masculina teve origem com os movimentos sufragistas. Essa luta começou com as mulheres brancas de classe média nos Estados Unidos e depois na Inglaterra, se estendendo por toda a Europa, reivindicando direito ao voto e a participação política, assim como condições de igualdade no estudo e no trabalho. A luta surgiu em pleno época vitoriana, onde a imagem da mulher era retratada na imprensa, na literatura e nos tribunais como mãe acolhedora, dona de casa e esposa perfeita: “Quando a produção manufatureira se transferiu da casa para a fábrica, a ideologia da feminilidade começou a forjar a esposa e a mãe como modelos ideais” (Davis, 2016, p. 45).

A distinção entre masculino e feminino, como princípio universal de diferenciação e classificação, tem uma longa tradição, que remete ao pensamento de Aristóteles. Ele acreditava que as mulheres eram naturalmente inferiores aos homens.  As concepções provenientes da filosofia e da teoria social, que classificam as mulheres de um ponto de vista naturalista, têm impulsionado pesquisadores a evidenciar as características culturais, maleável e mutável da distinção de gênero. Ao embasar suas investigações em várias sociedades, os antropólogos têm evidenciado que, embora a divisão de tarefas seja comum, ela não é fixa. Em algumas sociedades indígenas, por exemplo, a prática do tear é considerada uma atividade masculina, enquanto em outras, é vista como feminina (Piscitelli, 2009).

Na década de 1930, as pesquisas da antropóloga Margareth Mead procuraram desmistificar as distinções entre masculino e feminino. O livro “Sexo e Temperamento” tornou-se um clássico sobre os estudos de gênero, que impulsionou as lutas feministas. Em uma pesquisa comparativa em três comunidades antigas da Nova Guiné, a antropóloga procurou demonstrar que as distinções de gênero são construções sociais, variando de cultura para cultura. Como relata a própria Margareth Mead (2000, p. 22): “Estudei essa questão nos plácidos montanheses Arapesh, nos ferozes canibais Mundugumor e nos elegantes caçadores de cabeça de Tchambuli. Cada uma dessas tribos dispunha, como toda sociedade humana, do ponto de diferença de sexo para empregar como tema na trama da vida social, que cada um desses três povos desenvolveu de forma diferente. Comparando como dramatizaram a diferença de sexo, é possível perceber melhor que elementos são construções sociais, originalmente irrelevantes aos fatos biológicos do gênero de sexo”.

As pesquisas de Mead mostraram que o povo Arapesh, que vivia nas montanhas cultivando a terra e cuidando de porcos, possuía um caráter maternal. Os homens e as mulheres eram sociáveis, cooperativos, carinhosos, possuindo características femininas, segundo os padrões ocidentais. Já os ferozes canibais Mundugumor eram violentos, agressivos e temerários. Não havia distinção entre homens e mulheres, ambos tinham temperamentos masculinos, segundo os padrões do ocidente. Por sua vez, os Tchambuli, que viviam da pesca, tinham caráter diametralmente opostos aos do mundo ocidental. Os homens eram sentimentais, menos responsáveis e dependentes emocionalmente das mulheres. Já as mulheres eram mais frias, agressivas, impessoais e dominadoras. Como podemos notar, os estudos de Mead procuraram mostrar que o caráter não está ligado as diferenças sexuais, mas é uma construção histórica e social, herdada pela cultura.

Na década de 1960, houve uma segunda onda dos movimentos feministas. Foi a época da descoberta dos contraceptivos. As mulheres ganharam mais autonomia e controle sobre seus corpos, também ganharam maior liberdade para o controle da natalidade. Os movimentos feministas começaram a dialogar com o movimento hippie e os movimentos trabalhistas. A partir desse diálogo surgiu uma maior preocupação com as questões sobre raça, classe e sexualidade. A principal reinvindicação das mulheres nesse período era conseguir maior igualdade entre homens e mulheres. Lutava-se contra o preconceito e contra o patriarcado, reivindicando maior igualdade de oportunidades (Alós; Andreta, 2017). 

Na época da segunda onda, o livro “Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir, se popularizou, abalando as estruturas do patriarcado, tornando-se a obra mais importante na luta contra o sexismo biológico. O livro derrubou a tese de que existiria uma identidade da mulher dado a priori, com uma natureza fixa e acabada. Para a pensadora francesa, o discurso naturalista serviu para legitimar a má-fé, uma vez que atribuiu uma essência à mulher, cujo destino já estaria determinado pela sua condição biológica. Nesse sentido, a mulher não poderia transcender a sua condição. Desconstruindo o argumento biológico, Simone de Beauvoir (1967, p. 9) procurou mostrar que: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”.

De acordo com Scott (1990), o conceito de gênero teve sua origem mais recente entre as feministas americanas, que buscavam destacar a natureza essencialmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra era empregada para rejeitar o determinismo biológico e uma definição normativa da feminilidade. Embora tenha surgido inicialmente com as feministas norte-americanas, foi somente com a obra de Simone de Beauvoir que o termo começou a ganhar mais visibilidade. Haraway (2004) avaliou que todos os significados modernos de gênero, mesmo em suas diversas manifestações, têm suas raízes na observação de Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher” e nas condições sociais do pós-guerra, que permitiram a construção das mulheres como um coletivo histórico, sujeito em processo. Assim, o conceito de gênero emerge como uma contestação à naturalização da diferença sexual em várias esferas de luta.

Outro estudo importante, que surgiu na década de 1960, foi apresentado pelo psicanalista Robert Stoller, no Congresso Internacional de Psicanálise, em Estocolmo.  Foi nesse congresso que ele formulou o conceito de identidade de gênero, ao distinguir a biologia da cultura. Para o psicanalista, a distinção entre sexo e gênero era clara: o primeiro relacionava-se à biologia, envolvendo aspectos fisiológicos como hormônios, genes, sistema nervoso e morfologia. Em contraste, o gênero estava atrelado à cultura, abrangendo dimensões psicológicas e sociológicas (Haraway, 2004). Os estudos de Stoller aliados à obra de Simone de Beauvoir desempenharam papel fundamental na crítica feminista ao determinismo biológico. Agora o desenvolvimento da mulher ganhava uma nova perspectiva social e histórica.  Ela não era mais compreendida a partir de uma essência biológica fixa, acabada, mas se tornava plenamente sujeito social da história.

O termo gênero surge no seio da teoria social rejeitando totalmente as explicações biológica sobre o papel da mulher. Nesse sentido, o gênero serve para referir-se as origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres (Tilly, 1994). O termo mostra que as noções de feminismo e masculino são construções culturais, são noções históricas e sociais sobre os papeis que homens e mulheres assumem na sociedade. Foi esse conceito, portanto, que se tornou fundamental para o engajamento das mulheres na luta contra sua opressão.

Referências

Davis, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016

Engels, F.  A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de janeiro: Bestbolso, 2021.

Haraway, D.  “Gênero” para um dicionário marxista: a política social de uma palavra. Cadernos Pagu, Campinas, n° 22, 2004. p. 201-246. https://www.scielo.br/j/cpa/a/cVkRgkCBftnpY7qgHmzYCgd/?format=pdf&lang=pt

Mead, M.  Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2000

Piscitelli, A. (2009). Gênero: a história de um conceito. In: Almeida, H. B.; Szwako, J. E. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. p. 118-146.

Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, 1990. jul./dez. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721

Simões, J. A. (2009). Sexualidade como questão social e política. In: Heloisa Buarque de Almeida; José Szwako. (Org.). Diferenças, igualdade (pp. 150-192). São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores.

Tilly, L. (1994). A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu (3), pp. 29-62. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1722


Michel Aires de Souza Dias – Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

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Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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