Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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Os crimes de Auschwitz: O que significa elaborar o passado?, por Michel Aires de Souza Dias

Em 1963 aconteceu o julgamento de Auschwitz, que levou ao tribunal vinte dois homens. Esse julgamento só ocorreu por obra do acaso.

Os crimes de Auschwitz: O que significa elaborar o passado?

por Michel Aires de Souza Dias[1]

A Alemanha não foi capaz de elaborar seu passado, refletindo sobre as causas que levaram seis milhões de judeus ao holocausto (Shoa). Quando analisamos aqueles anos do pós-guerra (1945), o que se viu foi uma tentativa de encerrar o passado, apagando-o da memória. O que os alemães buscavam era esquecer a barbárie. O lema em toda a Alemanha era: “O passado deve descansar em paz”. Assim pensava toda a administração do primeiro chanceler Adenauer (1949-1963). Aquela época foi marcada pela desnazificação, onde se tornou tabu falar sobre o passado. O que o Estado e os “cidadãos de bem” queriam era apagar os fantasmas de sua memória, ou seja, todos aqueles mortos em câmeras de gás, que os assombravam todos os dias. Esse esquecimento tinha uma razão de ser. Por trás havia uma má-consciência, um sentimento de culpa que deveria desaparecer. Como bem apontou o filósofo Theodor Adorno (1995, p. 29): “O gesto de tudo esquecer e perdoar, privativo de quem sofreu a injustiça acaba advindo dos partidários daqueles que praticaram a injustiça”. Devemos lembrar que, com a criação da República Federal da Alemanha (RFA), em 1949, muitos funcionários do regime nazista foram incorporados à nova República.  Como relatou a filósofa Hanna Arendt (1999), em seus escritos sobre o julgamento de Eichmann, Adenauer foi forçado a fazer uma limpeza no judiciário, expulsando mais de 140 juízes e promotores, além de vários oficiais da polícia que tiveram participação direta na barbárie nazista. O caso mais emblemático foi o do promotor chefe da Suprema Corte Federal, Wolfgang Immerwahr Fränkel, que tentou esconder seu passado trocando seu sobrenome. Estima-se que dos 11.500 juízes da Alemanha naquela época, 500 estavam ativos no regime de Hitler.

Outro estudo surgiu em 2012 e durou quatro anos, denominado Dossiê Rosenburg. Esse estudo juntou uma comissão de historiadores independentes para investigar os arquivos do Ministério Alemão de Justiça. A equipe teve acesso a todos os arquivos confidenciais de funcionários da instituição entre 1949 e 1973. A pesquisa constatou a participação inequívoca do pessoal que trabalhou na justiça nazista, no novo órgão de justiça da RFA, criado em 1949. Os historiadores descobriram que, dos 170 juristas em posições de liderança no ministério, após a guerra, 90 haviam sido formalmente associados ao partido Nazista, 34 deles foram integrantes das tropas de assalto paramilitar da AS (Sturmabteilung). Esses antigos juristas usaram de todos os meios para impedir a perseguição dos assassinos. O que é mais irônico em toda essa história, foi a descoberta de que a justiça concedeu anistia coletiva aos criminosos. Existia até mesmo um departamento denominado Central de Proteção Legal que avisava nazistas no exterior sobre as ameaças de perseguição criminal (FUCHS, 2016).  

A Agência Central de Investigação de Crimes Nazistas somente surgiu em 1958, ou seja, 13 anos depois do fim do regime totalitário. Essa criação tardia já demonstrava o total desinteresse das autoridades em esclarecer os fatos. O promotor Erwin Schüle, que dirigia a agência naquela época, teve uma enorme dificuldade em começar as investigações, primeiro porque as testemunhas alemãs não estavam dispostas a cooperar; segundo, porque havia pouca disposição das cortes locais em abrir processos com base no material enviado pela Agência Central (ARENDT, 1999).

Segundo Arendt (1999), foi somente com a notícia da sensacional captura de Eichmann, na Argentina, pela Mossad (Serviço Secreto Israelense), e seu iminente julgamento, que houve um impacto suficiente para superar a relutância das cortes locais e levar em consideração as descobertas do promotor Schüle. O resultado foi imediato. Alguns meses antes do julgamento de Eichmann, Richard Baer, o sucessor de Rudolf Höss no comando de Auschwitz, foi preso. Foram presos também vários membros ligados a Eichmann. Foi relativamente fácil capturá-los, pois, além de haver provas contundentes publicados em revistas e jornais sobre os criminosos na época, nenhum deles achou necessário adotar um nome falso, tal era a liberdade que desfrutavam.

Outro fato importante foi o de que somente os criminosos do alto escalão poderiam ser julgados. Todos os outros crimes prescreviam conforme a lei vigente, que era de vinte anos para assassinato. Por esta razão, a maioria dos assassinos, como os membros das tropas móveis dos Einsatzgruppen, não foi julgada. Como observa Wojak (2015, p. 306): “[…] nos julgamentos contra as tropas de assalto (Einsatzgruppen) e os assassinos dos campos de concentração, tendiam a aplicar o princípio de ‘ajudantes’, que transformava os assassinos em massa em meros executores de ordens superiores, como se fossem marionetes facilmente manipuláveis ​​de um regime criminoso, como se não houvesse nazistas, e pior, com uma completa falta de empatia pelas vítimas e sobreviventes”.

Além dos assassinos da linha de frente não serem julgados, os que foram julgados tiveram penas muito brandas; não havia um sentimento nacional de justiça ou revolta. Como relata a própria Hanna Arendt (1999, p. 27): “A atitude do povo alemão quanto ao seu próprio passado, sobre a qual os especialistas na questão alemã haviam se debruçado durante quinze anos, não poderia ter sido demonstrada com mais clareza: as pessoas não se importavam com o rumo dos acontecimentos e não se incomodavam com a presença de assassinos à solta no país, uma vez que nenhuma delas iria cometer assassinato por sua própria vontade, no entanto, se a opinião pública mundial – ou melhor, aquilo que os alemães chamavam de Ausland, reunindo todos os países estrangeiros num único substantivo – teimava e exigia que aqueles indivíduos fossem punidos, estavam inteiramente dispostas a agir, pelo menos até certo ponto.”

Em 1963 aconteceu o julgamento de Auschwitz, que levou ao tribunal vinte dois homens. Esse julgamento só ocorreu por obra do acaso. O fato é que nunca houve esforços das autoridades para investigar e condenar os criminosos. Foi por acaso que um jornalista, Thomas Gnielka, em um trabalho rotineiro de pesquisa, em 1959, conheceu um antigo prisioneiro de Auschwitz, chamado Emil Wulkan, que lhe entregou um pequeno pacote de documentos cuidadosamente amarrado com uma fita vermelha. Este pacote havia sido resgatado em Breslau (antiga Wroclaw), nos últimos meses de guerra, nos escombros de um antigo prédio da polícia da SS (Schutzstaffel), que tinha pegado fogo. Nos documentos havia os registros das execuções em Auschwitz. Havia tanto os nomes dos mortos, como o nome de seus assassinos, assim como o motivo das execuções. Havia ali também a assinatura do comandante do campo: Hudolf Höss e a assinatura de seu ajudante, Robert Mulka, que se tornou um dos principais réus do julgamento. Os documentos foram entregues ao jornalista que, por sua vez, contatou o então procurador-geral de Hessen, Fritz Bauer, que viu ali provas contundentes para condenar os assassinos (FRITZ BAUER INSTITUT).  Esses fatos foram retratados no filme Im Labyrinth des Schweigens (Labirinto de mentiras) de Giulio Ricciarelli. O filme mostra bem como vinte anos depois do regime nazista, uma nova geração de indivíduos ignorava os crimes. Eles ignoravam que seus pais, professores e velhos conhecidos fizessem parte de algo monstruoso. Esses assassinos viviam pacificamente como cidadãos respeitáveis, em profissões como médicos, advogados, padeiros, empresários e em tantas outras ocupações.

Foi graças aos esforços do procurador-geral Fritz Bauer que o julgamento de Auschwitz foi possível. Bauer era proveniente de uma família judia e foi expulso do poder judiciário pelos nazistas em sua juventude, encarcerado em um campo de concentração. Mas, por sorte do destino, no final de 1935, aos 32 anos, conseguiu escapar e fugir para Copenhague. Foi somente em 1949, com a fundação da República Federal Alemã (RFA), que ele retornou a Alemanha. Ao retornar, Bauer se dedicou de forma obstinada a investigar e levar a julgamento os criminosos de Auschwitz (WOJAK, 2015). A sua história foi contada no premiado filme Der Staat Gegen Fritz Bauer (O Estado contra Fritz Bauer), de Lars Kraume, que buscou resgatar a vida de um herói quase esquecido. O filme conta a história de um procurador-geral judeu e homossexual, funcionário do Estado, que desafiou as instituições para julgar criminosos de guerra. Ao regressar do seu exílio, Bauer afirmou: “Regressei porque creio poder trazer comigo algo de otimismo e a fé dos jovens democratas da República de Weimar, contribuindo com o espírito e a vontade de resistência da emigração para lutar contra a injustiça do Estado. Quero ser um jurista que não apenas serve o direito e a justiça, mas que defende até os dentes a humanidade e a paz” (Bauer apud Wojac, 2015, p. 304-5).

A grande dificuldade de Fritz Bauer foi enfrentar os antigos nazistas incorporados na Nova República. Eles tinham uma rede de influências na política, na justiça, no serviço secreto e na economia. Durante suas investigações, Bauer recebeu várias ameaças de morte. Mas, não se intimidou e lutou contra as instituições para levar a julgamento os assassinos de Auschwitz. Segundo o relato de Wojac (2015), que o conheceu em vida, Fritz Bauer era um radical que procurou esclarecer os crimes nazistas, ao mesmo tempo em que dava advertências desconfortáveis aos seus inimigos. Ele era considerado um pária que mantinha permanentemente um espelho na frente de seus contemporâneos, um espelho no qual eles não queriam olhar. Era um homem obstinado que não deixaria o passado em paz, e que foi capaz de provocar a má consciência daqueles que fizeram parte do regime nazista, confrontando-os com todos os detalhes dos crimes da chamada “Solução Final”. O mérito de Bauer foi também o de ser capaz de localizar na Argentina uma das maiores mentes da Solução Final, Adolf Eichmann, responsável pela logística de transportes que levou milhões de judeus para os campos de concentração. Incapaz de confiar nas instituições alemãs, Bauer confiou suas investigações sobre o nazista ao Estado de Israel, que o capturou, levando-o a julgamento em 1962 (WOJACK, 2015).

O filósofo Theodor Adorno (2008), em uma de suas aulas na Universidade de Frankfurt, chegou a fazer uma homenagem a Fritz Bauer, na época de sua morte. Para ele, Bauer foi um homem extraordinário, com uma grande força moral, que se esforçou para que os alemães prestassem contas de seu passado: “Sei de muitas poucas pessoas que se esforçaram de maneira tão apaixonada e enérgica para que realmente o mal não se repita na Alemanha e que o fascismo seja combatido em todas as suas ameaçadoras formas. Ele perseguiu isso de um modo extraordinariamente coerente e dotado de uma coragem moral sem paralelos” (ADORNO, 2008, p. 275).

Para Adorno (2008), a morte prematura de Bauer, por infarto, foi devido ao desespero decorrente de que tudo aquilo em que ele depositava sua esperança, tudo aquilo que pretendia mudar e melhorar na Alemanha parecia lhe estar ameaçado. A anistia de criminosos pelo Estado, a recusa das instituições em criminalizar os assassinos, a adoção de leis que impediam as investigações e as perseguições políticas podem ter contribuído para o esgotamento psicológico do promotor: “Sou forçado a dizer que existem desenvolvimentos na Alemanha, como a adoção de leis de emergência[2] e toda uma série de outras coisas, que fazem que se torne concebível para mim que Bauer, vitimado por um problema cardíaco, sofreu tanto por causa dessas coisas que elas acabaram interrompendo sua vida” (ADORNO, 2008, p. 276).

Em seu artigo, O que significa elaborar o passado, Adorno procurou compreender os motivos da incapacidade dos alemães para julgar os criminosos nazistas. Ele viu nessa recusa uma incapacidade neurótica de enfrentar o passado: “Todos conhecemos a disposição atual em negar ou minimizar o ocorrido — por mais difícil que seja compreender que existem pessoas que não se envergonham de usar um argumento como o de que teriam sido assassinados apenas cinco milhões de judeus, e não seis” (ADORNO, 1995, p. 31). Essas racionalizações e eufemismos usados para minimizar os fatos passados, como, por exemplo, “noite dos cristais”, eram, para Adorno, sintomas de algo que não foi trabalhado psiquicamente. O fato é que os alemães não conseguiram se olhar no espelho. Como bons realistas, eles preferiram se preocupar com o presente e com seus afazeres cotidianos. Para o filósofo, esse fenômeno decorria das próprias condições objetivas da sociedade capitalista. Na produção, circulação, e intercâmbio material entre os homens, não existe o momento temporal.  O tempo e a memória são liquidados na sociedade capitalista. O homem realista e sadio se ocupa do presente e de suas metas práticas (ADORNO, 1995). Com o milagre econômico no governo do chanceler Adenauer, as instituições não estavam preocupadas com o seu passado de barbárie. Elas estavam mais interessadas em preservar a imagem da Alemanha no exterior. Como o próprio Adorno avaliou (1995, p. 33): “O esquecimento do nazismo pode ser explicado muito mais a partir da situação social geral do que a partir da psicopatologia. Até mesmo os mecanismos psicológicos que operam na recusa de lembranças desagradáveis e inescrupulosas servem a objetivos extremamente realistas. Os próprios agentes da recusa acabam revelando os mesmos, quando, munidos de sentido prático, afirmam que a lembrança demasiadamente concreta e incisiva do passado poderia prejudicar a imagem da Alemanha no exterior”.

Os estudos de Adorno mostraram que uma das razões para que a população apoiasse o regime nazista era a falta de consciência histórica. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer já haviam diagnosticado a fraqueza social do eu. O desaparecimento da consciência histórica na Alemanha seria um sintoma dessa fraqueza. Em sua alienação, o povo alemão não percebeu que o crescimento econômico na época nazista decorria dos investimentos no poderio bélico, que levaria a Alemanha a uma época de violência e catástrofes (ADORNO, 1995). Essa falta de memória impediu o alemão médio de enxergar de forma objetiva a realidade, tornando-se incapaz de perceber a barbárie que estava por vir. A falta de compreensão histórica deturpou “obstinadamente a época nazista, em que se realizam as fantasias coletivas de poder daqueles que, como indivíduos, eram impotentes e só se imaginavam sendo alguma coisa enquanto constituíam um tal poder coletivo” (ADORNO, 1995, p. 39).

Como bem observa Zamora (2018), é fato que perante alguns crimes, principalmente aqueles cometidos contra a humanidade, nada se mostra tão natural como o desejo de esquecimento, de mudar o rumo das coisas. Já que o passado não pode ser desfeito, nada mais inteligente do que não deixar rastro algum dos crimes praticados. Não se trata apenas da eliminação física, mas da eliminação do povo judeu da cultura e da história da Europa. Nesse sentido, há uma relação intrínseca entre o extermínio, o esquecimento e a aniquilação física. O esquecimento, portanto, é uma segunda injustiça cometida contra os judeus e que trouxe mais tristeza e dor. 

A recusa dos alemães em enfrentar o passado tem também para Adorno um componente de narcisismo coletivo. Com a derrota da Alemanha, na Primeira Guerra Mundial, o orgulho nacional dos alemães foi abalado. O Tratado de Versalhes impôs grandes perdas territoriais, assim como grandes multas em dinheiro para indenizar os danos. Foi uma época de fome, miséria e instabilidade econômica. Com a subida de Hitler ao poder, os nazistas foram capazes de conseguir o florescimento econômico e de recuperar o orgulho nacional.  Foi essa satisfação narcísica que sobreviveu na consciência do povo alemão. Foi ela que colaborou para que houvesse certa resistência em condenar os criminosos nazistas: “Nenhuma análise, por mais evidente que seja, pode eliminar a realidade dessa satisfação, bem como a energia de impulsos instintivos que foi investido nela” (ADORNO, 1995, p. 39). O fato é que existia uma simpatia do povo alemão pelo regime hitlerista: “o nazismo insuflou desmesuradamente o narcisismo coletivo, ou, para falar simplesmente: o orgulho nacional” (ADORNO, 1995, p. 39).  

Foi devido a esse orgulho nacional, a esse sentimento de nostalgia, que os alemães não foram capazes de elaborar o passado, não foram capazes de trabalhar psiquicamente a barbárie nazista. Em outras palavras, eles não foram capazes de se livrar de suas identificações com Hitler e do seu orgulho nacional. Ao se atentar a teoria das identificações coletivas freudiana, em Psicologia de massas e análise do eu, Adorno concluiu que “aquelas identificações e o narcisismo coletivo não chegaram a ser destruídos, mas permanecem existindo” (ADORNO, 1995, p. 40).

Com o fim do regime nazista, seria uma obrigação dos alemães não somente julgar os criminosos, mas esclarecer e conscientizar as novas gerações sobre a barbárie do holocausto (Shoa). Seria necessário elaborar o passado para que o nazismo nunca mais se repetisse. Para Adorno, elaborar o passado não significa criar datas comemorativas sobre o ocorrido, relembrando a barbárie. Também não se trata de relembrar os fatos através de dramatizações, filmes ou cultos religiosos. Muito menos se trata de rememorar as perseguições históricas ao povo judeu. Como afirma Gagnebin (2006, p. 100-1): “Adorno não afirma que devemos nos lembrar sempre de Auschwitz; ou seja, ele não defende incessantes comemorações. Não considero nuance irrisória de vocabulário o fato de que Adorno, em outros artigos já citados, fale muito mais de uma luta contra o esquecimento que de atividades comemorativas, solenes, restauradoras, de “resgate”, como se fala tanto hoje. Se essa luta é necessária, é porque não só a tendência a esquecer é forte, mas também a vontade, o desejo de esquecer”.  

   Para Adorno, a elaboração do passado significa, antes de tudo, o processo pedagógico de esclarecimento, entendimento e de conscientização da barbárie que foi perpetrado de forma cruel e sem sentido. As causas da barbárie nazista deveriam ser discutidas em todos os estabelecimentos de ensino alemão. A elaboração do passado é a tomada de consciência e o esforço para entender por que os homens perderam sua humanidade. Trata-se de compreender de forma nítida o processo que levou pessoas comuns, muitas cristãs, a eliminar outros indivíduos de forma gratuita, sem sentido e por mero preconceito racial. Quais as condições históricas e sociais que fomentaram os regimes autoritários?  Quais as condições políticas e econômicas que foram necessárias para produzir a barbárie? Quais os mecanismos psicológicos que levaram os indivíduos a cometerem atos de atrocidade? Quais os processos inconscientes por trás da violência? São essas perguntas que deveriam ser respondidas pelo sistema educacional alemão, mas que não foram.

Ao comentar o ensaio “O que siginifica elaborar o passado” Gagnebin (2006, p.101) nos explica o que Adorno entende por isso: “Mesmo quando Adorno fala nesse ensaio da ‘destruição da lembrança’ (Zerstõrung der Erinnerung) e da necessária resistência a essa destruição, devemos ressaltar novamente que, aqui, a palavra-chave não é memória ou lembrança, mas Aufklärung, esclarecimento. Lembro que essa palavra também é usada no sentido cotidiano, comum de explicação, explicitação, clarificação ou atividade pedagógica racional de colocar claramente um problema […]. Enfim, Aufklärung designa o que fala com clareza à consciência racional, o que ajuda a compreensão clara e racional – contra a magia, a superstição, a denegação, a repressão, a violência. Em outras palavras: não há, da parte de Adorno, nenhuma sacralização da memória, mas uma insistência no esclarecimento racional”.

Se o nazifascismo ainda está presente em nossa atualidade, isso ocorre porque a educação falhou em seu objetivo primordial, ela não foi capaz de elaborar o passado, não foi capaz de cumprir sua missão, que é o de esclarecer e conscientizar. Como o próprio Adorno (1995, p. 123) nos ensina: “Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permita tal repetição, portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes”.

Referências

ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

ADORNO, Theodor. Educação    e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1985.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

FRITZ BAUER INSTITUT: Geschichte und Wirkung des Holocaust. Tonbandmitschnitte des Auschwitz-Prozesses (1963–1965). Frankfurt, 1964. Disponível em < https://www-auschwitz–prozess-de.translate.goog/?_x_tr_sl=de&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-BR&_x_tr_pto=sc>

FUCHS, Richard. Dossiê expõe presença de nazistas na justiça alemã pós-1945. DW Brasil, 2016. Disponível < https://www.dw.com/pt-br/dossi%C3%AA-exp%C3%B5e-presen%C3%A7a-de-nazistas-na-justi%C3%A7a-alem%C3%A3-do-p%C3%B3s-guerra/a-36015630>

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O que significa elaborar o passado. In: Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

WOJAC, Irmtrud. Fritz Bauer (1903-1968). Jurista por el sentido de la liberta. Cadernos Judaicos. Chile,nº 32, Deciembro, 2015, p. 302-318. Disponível em <https://doi.org/10.5354/0718-8749.2015.38101

ZAMORA, José Antônio. Memória e história frente a Auschwitz. Revista Insurgência. Brasilia, ano 4, v.4, nº1, 2018, p. 109-143.


[1] Doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP).

[2] Lei aprovada em 30 de maio de 1968, que em casos de emergência interna ou externa, de força maior, o governo poderia restringir temporariamente ou anular completamente os direitos básicos dos cidadãos.

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