A Argentina e a invenção que mudou sua história, por Luiz Alberto Melchert

Há quem diga que a Argentina estava entre os dez países mais ricos do mundo na virada do século XIX para o XX, o que carece de consistência

A Argentina e a invenção que mudou sua história

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Nos anos 1960, dizia-se que um argentino era um italiano que falava espanhol e pensava que era inglês. Isso demonstra o total desconhecimento de como nossos irmãos do sul se tornaram uma potência econômica na metade do século XX. Também não se entendeu bem o que se passou com eles para chafurdarem num atoleiro chamado peronismo, que não passa da eterna busca dos anos dourados. Eram tempos em que os carros tinham o volante à direita e trafegava-se à mão esquerda como os britânicos.

É um país que tem muito de que se orgulhar, desde a abertura de sua primeira universidade em 1674, cem anos depois da fundação da Universidade São Marcos em Lima, mas duzentos e cinquenta anos antes da primeira em solo brasileiro. Sim, criou-se uma aura de cultura e educação generalizada que causava ojeriza aos nossos governantes. Era uma civilização que presenteou o mundo com a caneta esferográfica e a datiloscopia, inventos que poucos sabem ter vindo dos pampas.

Há quem diga que a Argentina estava entre os dez países mais ricos do mundo na virada do século XIX para o XX, o que carece de consistência, visto que nem mesmo a medição do PIB tinha sido instituída. Naquele tempo, mediam-se as economias pelo volume físico de mercadorias comerciada. A quantidade de grãos que os argentinos destinavam à Europa era realmente significativa, mas isso não garantia que a distribuição de renda pudesse criar mercado interno consistente.

Foi então que uma invenção deixou o mundo menor no que tange aos alimentos frescos, o frigorífico, que deu uma vantagem comparativa momentânea ao Cone Sul. Nos Estados Unidos, Chicago tornou-se o centro distribuidor de carne bovina, graças à rede ferroviária que era capaz de transportar animais vivos para serem abatidos industrialmente à beira dos Grandes Lagos. No Brasil, que só tinha o Rio Grande do Sul como exportador de carne salgada, a criação e o abate distanciaram-se dos grandes centros consumidores, dando início ao mercado especulativo de terras. Sobre isso, sugiro a leitura de “Uma ferrovia entre Dois Mundos” de José Roberto Simões Queiroz.

A Argentina e o Uruguai viveram verdadeiro boom econômico, pois a carne in natura valia dez vezes mais do que a salgada. Isso ajudou a transformar Buenos Aires num centro de atração de imigração, a ponto de, no início da I Guerra, mais da metade de sua população ser estrangeira. Proporcionalmente, a Argentina recebeu mais imigrantes que o Brasil, sendo que muitos dos que ficaram aqui pretendiam ir para lá, mas não tinham a noção de onde ficava.

Ocorre que o acúmulo de divisas foi relativo e a renda concentrou-se nas mãos dos estancieros e, principalmente, dos grupos exportadores, graças à comoditização da carne. Apesar do branqueamento da população ocorrido pela guerra do Chaco entre outras, quando grande parte dos soldados eram negros, a Argentina não fugiu das mazelas que afligiam o restante da América Latina. Mesmo que de forma velada, a distância entre classes sociais não diminuiu e, mais cedo ou mais tarde, haveria de cobrar seu preço, no que se chamou de peronismo. A leitura dos diários de Evita, assim como o restante da documentação oficial de sua atuação na gestão de seu marido, até mesmo o apelo do termo “descamisado”, cunhado por ela em 1949, são prova de que o populismo argentino tenha suas origens na miséria.

Interessante é observar que a aura de riqueza e desenvolvimento, assim como a proximidade étnica com os europeus atraíram investimentos a ponto de a Argentina ser eleita como cabeça de ponte para a industrialização da América do Sul. Isso se verificou ser uma ilusão com a industrialização do Brasil, cujo mercado potencial haveria de ser muito maior, no mínimo, pela diferença de área e população. Some-se a isso a drenagem, via fixidez de câmbio imposta por Bretton Woods das reservas internacionais amealhadas na II Guerra e o fracasso do peronismo tornou-se inexorável.

A indústria do frio, que dera à Argentina uma vantagem comparativa na virada do século XIX para o XX, espalhou-se por toda a face da Terra, criando concorrentes à distâncias inimagináveis, como a Austrália. O Brasil abate mais bois por ano do que o plantel total do país vizinho, além de produzir mais grãos do que aquele país jamais imaginou, por mais férteis que suas terras sejam. Seu mercado interno não é suficiente para sustentar uma indústria permanentemente pujante, o que torna sua economia significativamente dependente da de seu vizinho maior. É numa lembrança distorcida em que se baseia o peronismo, que não se podendo classificar como de esquerda, pois tem suas raízes no fascismo, nem na direita estrito senso, visto que prima pelo intervencionismo. Resumindo, trata-se de um vício de que nossos vizinhos não se conseguem livrar e, como todo o vício, vai consumindo pouco a pouco suas energias. Resta esperar que o país se desintoxique o quanto antes.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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