Hemocentros privados ou usinas de sangue, por Luiz Alberto Melchert

O valor do litro vendido será a soma dos valores de seus coprodutos, resguardando-se sua incidência sobre a matéria-prima

Rodrigo Nunes – Ministério da Saúde

Hemocentros privados ou usinas de sangue

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Na matéria anterior, discutimos a privatização da coleta de sangue como atividade econômica fadada às imperfeições de mercado mais frequentemente estudadas pela microeconomia. Nesta matéria, veremos o assunto pelo lado negocial, como um empresário planeja o faturamento de um novo plano de negócio.

Existem atividades econômicas que só subsistem graças ao valor de seus coprodutos. Para entender isso, é preciso discriminar entre subprodutos e coprodutos. Os subprodutos são os cujo valor é adicional, mas sua importância não é capaz de comprometer a atividade  principal. Já os coprodutos são essenciais para manter viável uma dada atividade econômica.

A história da cana de açúcar no Brasil é um exemplo espetacular de como subprodutos tornam-se coprodutos ao longo do tempo. Durante o período colonial, até mesmo no início da atividade açucareira industrial, o bagaço de cana nem era considerado. Simplesmente não tinha valor. As fornalhas queimavam madeira, incentivando o desmatamento para abrir mais áreas para novos canaviais. Ao mesmo tempo, o processo de cozimento da garapa, visando a evaporação da água para concentrar o açúcar não era eficiente. A fervura formava uma espuma, que se chamava escumalha que não cristalizava e não tinha valor comercial. Dela começou-se a fazer a gerivita, que foi o primeiro nome da bebida alcoólica que originou a nossa cachaça. Ela não tinha valor comercial direto, mas servia para pagar pelos seres humanos escravizados na África. Isso se chamou de “comércio triangular”. E o açúcar ia para a Europa em troca de produtos mais elaborados, enquanto a gerivita ia para a África em troca de mão de obra para a lavoura da cana.

Na medida em que se criou um mercado firme para ela, passou-se a fermentar  e destilar diretamente o caldo da cana, havendo quem se especializasse na sua produção, passando a ser um produto para uns e continuando a ser um subproduto para outros. Foi a partir da constituição dos primeiros engenhos centrais, que se transformaram em usinas, que o bagaço começou a ser queimado nas caldeiras das locomotivas que levavam a cana da lavoura à planta de transformação. Hoje, o bagaço é um verdadeiro coproduto, seja por servir para alimentar o gado, seja para ser queimado nas próprias usinas fornecendo-lhes calor para o refino do açúcar e eletricidade que, inclusive, pode ser vendida à rede elétrica do país.

Outros exemplos de coprodutos são o óleo e o farelo de soja. É a soma de seus valores que viabiliza o cultivo extensivo da soja. O mesmo se pode dizer da mandioca, do leite, do milho e até do petróleo que, sem as refinarias que o dividem em inúmeros coprodutos, teria seu uso extremamente restrito.

Se o sangue humano não fosse um órgão seria possível chamar os hemocentros de refinarias de sangue porque o número de derivados que se podem subtrair é enorme, indo do plasma, alvo da PEC 50, até a albumina e inúmeras outras proteínas e enzimas essenciais à Medicina. Como discutido na matéria anterior, é impossível extrair somente o plasma de um ser vivo. É preciso retirar o sangue e processá-lo, a começar da centrifugação, para separar a parte líquida, o plasma, da parte não líquida, também chamada de hematócrito. Daí, obtêm-se se o concentrado de plaquetas e de hemácias, ou seja, é um processo industrial como outro qualquer. Dá até para chamar de refinarias ou usinas  de sangue. O valor do litro vendido será a soma dos valores de seus coprodutos, resguardando-se sua incidência sobre a matéria-prima exatamente como se faz com a soja, o milho ou o petróleo. Daí para transformar o sangue humano em commodity é só mais um passo, atribuindo-lhe valor consoante os interesses do comprador. Resta saber se é a meros fornecedores de matéria-prima que o país quer transformar seus cidadãos.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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