Despojos de papel
por Walnice Nogueira Galvão
Ante a amplitude descomunal do roubo perpetrado pelos nazistas, entende-se melhor a operação de resgate que os americanos fizeram para recolher papeis (London Review of Books, 2.7.2020). Bibliotecários e scholars, acolitados por militares, varreram a Europa e levaram tudo o que de longe pudesse parecer documentação, sendo de primeiro interesse os próprios arquivos nazistas, que eram numerosos, e documentos de Estado
A coleta – se o eufemismo for adequado, pois se tratava mais de saque e pilhagem, ilícitos e ilegais – feita pelos americanos já começara às vésperas da guerra, antecipando a destruição. Livros e periódicos eram comprados e mandados para os Estados Unidos em trens e navios abarrotados. O que não dava para comprar era copiado em microfilme, uma recente invenção.
Mas também, o que já era menos justificável e relevava do roubo puro e simples, gradualmente passaram a recolher patentes e tecnologia industrial, para beneficiar os negócios americanos em casa.
A operação no seu conjunto resultou de uma parceria entre a Biblioteca do Congresso e os serviços de espionagem. Se você nunca se perguntou, ante seu gigantismo, como é que esta veio a ser a maior biblioteca do mundo, especialista em materiais para assessorar os parlamentares, eis aí a resposta. A maior parte do material recolhido foi para lá. E, na embriaguez da vitória, os conquistadores passaram a assaltar as bibliotecas públicas e as universidades.
Isso foi no passado, mas no presente a questão continua fervendo. Agora os franceses fizeram mais um filme, intitulado Restituer l`art africain – Les fantômes de la colonisation, que traz um histórico das relações entre França e África, analisando as várias metamorfoses que assumiram conforme os tempos foram mudando. Assim, o documentário passa pela Partilha da África, pela guerra colonial, pela ocupação do Daomé (atual Benin) e países circunvizinhos como Mali, Senegal, Nigéria, Congo. Depois, examina as exposições coloniais e a criação de instituições como o Musée de l`Homme no Trocadéro, quando surge o interesse pela Etnografia. Esse museu atraiu os pintores modernistas que lá iam contemplar as esculturas africanas e valorizaram esteticamente o que antes era visto pelo prisma do exotismo.
Outra fase começa após o fim da Segunda Guerra, com a liberação das colônias e o pan-africanismo. É então que o deus Gu é “promovido” do Trocadéro para o Louvre, ao ser reconhecido como obra-de-arte. Escultura de metal em tamanho natural, parte dos famosos Bronzes do Benin, representa o deus da metalurgia e da guerra. Embora se saiba que residia no palácio real em Abomei, sua etiqueta no Louvre é muda a respeito de proveniência e condições de expropriação… para abusarmos de mais um eufemismo.
O documentário fala longamente da notável iniciativa do Musée de l`Homme que foi a expedição à África para coletar artefatos e estudar as populações, com duração de 2 anos a partir de 1931. Atribui todo o mérito a Michel Leiris, futuro autor de L`Afrique fantôme, e nem sequer menciona o nome do chefe da expedição, da qual ele era secretário. O chefe era Michel Griaule, distinto etnólogo que estava em meio à constituição de uma notável folha de serviços, vindo a ser o maior especialista nos dogon do Mali, assim como futuramente na Etiópia. Griaule fez carreira como professor de Etnologia na Sorbonne. A expedição se chamava Travessia Leste-Oeste ou Missão Dakar–Djibouti. Ao fim, chegaram a desconfiar de seus próprios métodos, pois acabavam por copiar os colonialistas, intimidando os nativos, profanando objetos sagrados de culto e confiscando estátuas de deuses.
No momento, a África está providenciando abrigo para a repatriação das 90 mil peças que a França levou ao longo da História. Já estão funcionando três novos museus de artes africanas em Dakar, Joanesburgo e Gizé – todos moderníssimos, na arquitetura e na museologia. O palácio do rei Beanzim na capital do Daomé, Abomei, arrasado pelo invasor francês, foi reconstruído e aguarda o retorno de seus conteúdos, entre eles o deus Gu. Em tempo: os recentes conflitos armados não são alheios à exploração pela França das riquezas da região
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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