Robert Wilson, encenador extraordinário
por Walnice Nogueira Galvão
Óbvio candidato ao posto de maior encenador teatral do mundo, Robert Wilson é difícil de apreender, devido ao cunho prolífico de sua obra e à multiplicidade de seus talentos: diretor, cenógrafo, coreógrafo, escultor, pintor, escritor, performer… Num dia está no Alasca e no outro em Xangai; ora dirige uma ópera com mil figurantes, ora um monólogo em palco vazio; ou então faz um espetáculo com os sonetos de Shakespeare e mais um com a grandiosa música clássica do oratório Messias, de Haendel. Neste último, cuja estreia se deu no Festival Mozart de Salzburg em 2020, em meio à montagem tão original que quase ficou profana, evoluía uma menina tendo no braço uma ararinha azul, ave brasileira à beira da extinção.
Em rápida resenha, trataremos de algumas de suas façanhas, pálida amostra de uma obra monumental, ímpar pela criatividade e pela riqueza da invenção,
Pede destaque o Orlando inaugurado no Teatro Odeon, de Paris. Uma combinação imbatível de três gênios: Virginia Woolf, autora do romance homônimo, Robert Wilson, Isabelle Huppert – esta, a maior atriz da cena francesa. Orlando é um(a) aristocrata que vive 400 anos da história da Inglaterra, às vezes como mulher, às vezes como homem. A protagonista declamava trechos em estilos diferentes, sozinha em cena – ou aos brados, ou rindo, ou sussurrando, ou com pausas aleatórias.
Vale a pena registrar igualmente as Fábulas de La Fontaine na Comédie Française em estreia mundial. Os animais eram divertidíssimos, além de lindos. A cigarra esvoaçava esfregando as mãos, como de fato o inseto faz com os élitros para produzir sua zoada típica. Os sapos ficavam rentes ao chão, e de vez em quando saltitavam e emitiam um “Croac!”, coaxando como quem zomba. Manifestação muda de anti-racismo era o leão, vivido por um belo negro bem alto e espadaúdo, elegantíssimo em trajes de gala (fraque), com a cabeça revestida não por uma juba mas por um toucado de trancinhas, um dreadlock – misto de Black Power com rastafári.
Ou então uma ópera no Municipal de São Paulo, o Macbeth, de Verdi, com a Companhia de Ópera de Bolonha, no qual o que importava era o trabalho com a luz, em que Robert Wilson é perito, dominando a encenação. As personagens integravam um grupo compacto com suas túnicas pretas, tendendo a Père Ubu, imóveis no palco. Ali recebíamos toda a vertigem do horror trazido à tona pela perquirição do sangue derramado, obra do casal Macbeth..
E houve uma Madame Buterfly na Ópera de Paris – Bastilha. A performance musical é de somenos e apenas mediana, mas a encenação é inesquecível. Robert Wilson confessa sua inclinação pelo teatro oriental, e aqui ele dá largas à preferência. E veste todo mundo em roupagens de samurai, devidamente estilizadas, é claro, enquanto comanda gestos hirtos e hieráticos ao estilo do Kabuki e do teatro Nô.
No Brasil, consta que a estreia de Robert Wilson deu-se no Festival Internacional de Teatro organizado por Ruth Escobar, em 1974, com The life and times of Joseph Stalin. Só em 2009 veríamos uma exposição de suas intrigantes vídeo-instalações, no Sesc, intitulada Voom Portraits. A parceria com o Sesc se revelaria frutífera, cobrindo os anos a seguir com vários trabalhos.
Para começar, houve Quartett, de Heine Müller, releitura de As ligações perigosas que correu mundo. Depois, seguiram-se A última gravação de Krapp, de Beckett. A Ópera de três vinténs, de Brecht, em parceria com o Berliner Ensemble. Lulu, de Wedekind, com trilha sonora de Lou Reed. A dama do mar, de Ibsen, em adaptação feita especialmente para Robert Wilson por Susan Sontag. A velha, do autor russo Daniil Kharms, que mostra afinidades com o teatro do absurdo. Nesta última, em cena só dois atores, mas que atores! – o bailarino russo Baryshnikov e Willem Dafoe, freguês de teatro e cinema vanguardistas. O rol de peças privilegia os clássicos, até aqui.
E chegamos a Garrincha – Uma ópera das ruas, musical inteiramente brasileiro, com a prata da casa, uma superprodução envolvendo 56 profissionais, com tema relevante e popular. Para quem tiver interesse, o Sesc, sempre democrático, providenciou uma versão para TV, que pode ser vista no YouTube.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP
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