8 de janeiro: um ano depois, uma análise do fato mais estarrecedor da história política recente do Brasil

O 8 de Janeiro não é fato isolado. Ele é o marco inicial que reflete o nível de organização e disposição à violência da extrema-direita

Janela do Palácio do Planalto quebrada após tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Foto: Ricardo Stuckert
Janela do Palácio do Planalto quebrada após tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Foto: Ricardo Stuckert

Por Jefferson Barbosa

Em The Conversation

No dia 8 de janeiro de 2023, um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiu os prédios dos três poderes em Brasília: o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Palácio do Planalto, a sede do governo e o Supremo Tribunal Federal. Sem dúvida, o acontecimento político mais estarrecedor de 2023 no Brasil foi essa tentativa de golpe de Estado, ocorrida uma semana após a posse presidencial, que deixou um rastro de destruição.

Não há possibilidade de fazer uma retrospectiva no âmbito da política brasileira sem dar a necessária atenção a esse fato. A data será lembrada e estudada como uma tentativa frustrada de ruptura institucional, onde os manifestantes golpistas se empenharam para gerar uma conjuntura de caos, que poderia ser instrumentalizada para justificar uma intervenção militar, em um contexto de Estado de Exceção.

A contenção do intento golpista – com a denúncia, prisão e julgamento de uma parte dos seus artífices – não deixou de ser uma vitória da democracia brasileira. Por outro lado, infelizmente, a repercussão dos acontecimentos de janeiro passado vem sendo determinante para a conjuntura política do país nos últimos meses, e provavelmente continuará assim nos próximos anos.

Conexões

O 8 de janeiro não pode ser pensado como um fato isolado. Ele é o marco inicial que reflete o nível de organização e disposição à violência de uma militância que se rotula como “patriota” mas que representa, na verdade, o ativismo de extrema direita no Brasil. Um movimento que vem crescendo nos últimos anos, e que usa o conceito do “bolsonarismo”, isto é, o pensamento conservador alinhado com o que seriam os valores políticos e morais do ex-presidente Jair Bolsonaro, um importante fator aglutinador e de propaganda.

A invasão de Brasília e os seus preparativos foram também um espelho de acontecimentos internacionais, como a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos. Esta conjuntura, estimulada pelo trumpismo e outras manifestações extremistas em diferentes países europeus, vem propagando pautas da extrema-direita em toda a América do Sul.

Tudo isso favorece o fortalecimento do pensamento político antidemocrático na América Latina, que tem nas vitórias de Javier Milei na Argentina e José António Kast no Chile dois dos seus exemplos mais recentes.

Manipulação

Mas aqui no Brasil, outro fator importante a ser considerado é a ação de propaganda e persuasão de grupos políticos e empresariais de extrema direita. Eles exercem forte influência sobre uma parte considerável da população, propondo um claro revisionismo histórico ao disseminar, por exemplo, uma imagem positiva dos anos de ditadura militar que o país viveu entre 1964 e 1985, sustentar que os acontecimentos de 8 de janeiro são motivo de orgulho e que os presos por envolvimento na depredação dos prédios da Praças dos Três Poderes seriam heróis, “patriotas” e “perseguidos políticos”.

A intenção dessa narrativa é criar capital político, envolver e dar subsídio à continuidade da militância extremista, colocando em dúvida a legitimidade das instituições democráticas, demonizando o Poder Judiciário e revindicando reiteradamente algum tipo de intervenção militar, a partir de uma leitura deliberadamente equivocada do artigo 142 da Constituição, atribuindo às Forças Armadas uma espécie de poder moderador das instituições, o que não existe: a ideia da existência de um poder moderador faz parte da primeira Constituição do Brasil Imperial, na década de 20 do século XIX, e se referia ao Imperador. Hoje, é nada mais do que uma visão oportunista dos revisionistas históricos que entendem as Forças Armadas como uma instituição acima das instituições.

Parte dessa militância, pouco esclarecida histórica e politicamente, acaba sendo envolvida por esse tipo de retórica que reinterpreta leis e fatos de forma errada. Não se trata de um equívoco no sentido literal, mas sim de uma abordagem tendenciosa para a mobilização desta base de militantes.

Tradição golpista

Ao mesmo tempo em que a reação da sociedade aos atos criminosos do 8 de janeiro revelaram uma aspecto de maturidade das instituições civis, as manifestações em si também são reflexo da fragilidade histórica da nossa democracia. Quando olhamos as tentativas de golpes de Estado da nossa história política, constatamos por exemplo que o dispositivo de Estado de Sítio – um tipo de modalidade de Estado de Exceção – foi aplicado em momentos importantes do século XX no Brasil.

A primeira vez foi na década de 20 do século XX, no Governo Arthur Bernardes. Como sabemos, o golpe do Estado Novo, com Vargas e depois a ditadura civil-militar, foram momentos marcantes também de ruptura institucional, de aplicação de cerceamento constitucional de deflagração de Estado de Exceção.

A tentativa de golpe de Estado no país não é, portanto, algo novo. Tentativas anteriores, sob o clamor de um nacionalismo antidemocrático extremado, foram elementos constantes na história política brasileira contemporânea. Há uma herança cultural autocrática que vigora na história e na conjuntura nacional do século XX, e que, infelizmente, chega ao século XXI.

O cenário político atual é o resultado do acúmulo de forças e de mobilização dos movimentos e atuação de líderes políticos do extrema-direita, tema que venho estudando nos últimos quinze anos. No livro “Extremismos políticos e direitas: Bolsonaro, Trump e as crises das democracias” (Editora Cultura Acadêmica, Unesp), analisei os discursos de Jair Bolsonaro realizados entre 2019 e 2021, em que há uma retórica marcada pela constante conclamação às Forças Armadas para intervenção no processo político, muito comum desde 1964.

Persiste a defesa da visão da ditadura civil-militar como um processo positivo no Brasil, da necessidade de um retorno do Estado de Exceção e autoritário para evitar a corrupção e combater uma suposta esquerda que “vai dominar o Brasil”.

Toda essa retórica foi compilada para preparar a base eleitoral bolsonarista nos últimos anos, caso a tentativa de reeleição não fosse efetivada. Para a ala mais atuante dessa base, a derrota eleitoral de 2022 foi uma manipulação das urnas eletrônicas, engendrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Nitidamente, a base de apoiadores dos movimentos de extrema-direita no Brasil e no mundo apela para percepções simplistas, onde a sociedade é dividida entre “amigos e inimigos”, numa lógica maniqueísta do bem contra o mal.

Investigações e CPI

A pesquisa que conduzo sobre o bolsonarismo e a extrema direita brasileira exigiram a leitura de boa parte dos documentos produzidos pela CPI dos Atos Antidemocráticos do 8 de janeiro. O relatório da CPI foi lançado em outubro de 2023, ao final dos trabalhos da investigação e tem mais de mil páginas.

De acordo com as investigações da CPI, 2151 pessoas foram presas entre os dia 8 e 9 de janeiro, durante o ato e no dia seguinte, no acampamento de manifestantes em frente ao quartel-general do Exército. Dessas, 1390 foram denunciadas pela Procuradoria-Geral da República.

Até agora, o STF julgou 30 pessoas participantes dos atos golpistas, com penas que variam entre 3 a 17 anos de prisão e multas que somam R$ 30 milhões de reais.

Em 18 de dezembro passado, após decisão de Alexandre de Moraes, 46 investigados tiveram suas prisões preventivas revogadas. Eles usarão tornozeleiras eletrônicas, estão proibidos de sair à noite, usar redes sociais e não podem deixar o país.

Financiadores

Hoje, 66 pessoas ainda permanecem presas, entre elas 25 por serem financiadores ou incitadores dos ataques.

Em 14 de dezembro último, a Procuradoria Geral da República apresentou a primeira denúncia contra um dos financiadores dos atos golpistas: o empresário Pedro Luís Kurunczi, da cidade de Londrina (PR), que pagou o aluguel de seis ônibus rumo a Brasília, num valor de aproximadamente 60 mil reais.

Mais ações penais serão julgadas no início de fevereiro deste ano. Os crimes imputados são de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Em agosto de 2023, também foram presos integrantes da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal, entre eles comandantes, coronéis e tenente.

Segundo dados das investigações em andamento e provas já obtidas, houve conivência, participação e apoio de setores do Exército e da polícia da cidade de Brasília. A manifestação e invasão teriam sido planejadas para legitimar uma intervenção das Forças Armadas e a decretação de um Estado de Sítio, atos que pudesse provocar a anulação do processo eleitoral.

Orgulho

Uma conclusão assustadora da leitura dos documentos da CPI é a de que uma parcela expressiva dos denunciados do dia 8 de janeiro não reconhecem o erro que cometeram. Eles ostentam orgulhosamente as suas tornozeleiras eletrônicas como um símbolo de prestígio social.

As informações da CPI apontam ainda que uma parte da população apoia aqueles que participaram da tentativa de golpe de Estado. Segmentos importantes da sociedade brasileira, de lideranças políticas a ativistas de direita, glamourizam a violência dos atos antidemocráticos, transformando os criminosos em heróis.

O relatório destaca a necessidade de uma investigação dos mecanismos pelos quais a extrema direita vem regimentando os seus contingentes. Quando observamos as suas redes sociais e mídias, como o jornal Gazeta do Povo e o site Brasil Sem Medo, encontramos diversos depoimentos dos presos do 8 de janeiro que, agora em liberdade, se colocam na posição de mártires, de guerreiros.

Chamada a depor na CPI, uma ativista da cidade de Sinop, em Mato Grosso, disse em vídeo disponível no YouTube que a tornozeleira era um “símbolo de guerra”. Reflexo da mentalidade chauvinista dos envolvidos nos Atos.

Mártires

O Relatório da CPI dos ataques também traçou o perfil dos manifestantes. De acordo com o documento, dentre os 2151 detidos, a maioria era de pessoas comuns, de meia idade, de cidades do interior, sem antecedentes de violência, sem filiação partidária; apenas 20% tinham vínculos partidários, 40% mulheres, com média de 46 anos de idade.

Um deles era Clériston Pereira da Cunha, que morreu enquanto estava preso após a comprovação dos seus atos de depredação nos prédios públicos em Brasília. Os advogados dele haviam obtido parecer favorável à liberdade provisória do réu por problemas de saúde, mas o despacho do STF sobre a solicitação não foi liberado em tempo.

Nas mídias bolsonaristas, Clériston é o primeiro mártir do 8 de janeiro, vitimado pelo que chamam de perseguição política.

Diante da tentativa de golpe de Estado conclamando intervenção militar e anulação do resultado das eleições, os meios de comunicação favoráveis aos golpistas instrumentalizaram suas mídias numa perspectiva revisionista, retratando os manifestantes presos como heróis, atribuindo a violência e destruição do patrimônio público a iniciativa de “infiltrados no movimento” e responsabilizando por omissão as forças de segurança que contiveram os manifestantes. Assim vão sendo construídas imagens e discursos para colocar esses indivíduos como mártires.

No fim de abril de 2022, foi criada também a Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro (ASFAV), sob a liderança da advogada Gabriela Ritter. O pai dela, Miguel Ritter, foi detido por ter participado das ações do dia 8 de janeiro. Os advogados da associação criticam as denúncias afirmando que seria impossível identificar a contribuição de cada participante e denunciam condições nos presídios onde estão os detidos.

A tentativa de transformar os detidos em símbolos de perseguição política levou a iniciativas como a da Câmara Municipal de Porto Alegre, que tentou aprovar uma lei criando o “Dia Nacional do Patriota” a ser “comemorado no dia 8 de janeiro. A proposta foi revogada pelo Ministro Luiz Fux, do STF. Na mesma intenção, no dia 29 de agosto, o deputado Federal Adilson Barroso (PL-SP) protocolou proposta semelhante para o dia 21 de março, como “Dia Nacional do Patriota”.

Ao completar um ano da tentativa de golpe de Estado, os apoiadores das ações de 8 de janeiro continuam a defender a retórica da legitimidade das ações realizadas, buscando transformar em capital político e fator de mobilização para a base de militantes bolsonarista as notícias e desdobramentos das investigações e condenações dos envolvidos. Segundo o Relatório da CPI (página 15) afirma: “A máquina do ódio continua”.

Jefferson Barbosa é professor de Ciência Política, Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN.

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