A retórica da “segurança” sem segurança pública, por Izabela Corrêa

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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A retórica da “segurança” sem segurança pública

Por Izabela Corrêa

Os jornais – e vários representantes do Congresso Nacional – têm nos lembrado recentemente que mais de 80% dos brasileiros são a favor da maioridade penal. A pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência no segundo semestre de 2014 comprovou que 83% da população são a favor da redução da maioridade penal. Um ano antes, pesquisa da CNT (Confederação Nacional dos Transportes) com o Instituto MDA havia revelado que 92,7% dos brasileiros eram a favor da redução da maioridade penal. O que nenhuma dessas pesquisas revelou foi o poder da retórica de parte da elite política e econômica brasileira sobre o assunto.

Em 23 de outubro de 2005 o poder dessa elite foi testado pela primeira vez. Naquele dia, a população brasileira foi às urnas responder o referendo com a pergunta “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. 63,94% da população brasileira votou pelo não e 36,06% votou pelo sim. Com isso, não entrou em vigor o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, que proibia a comercialização de armas de fogo e munição em território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º do Estatuto do Desarmamento. Entretanto, aproximadamente três meses antes do referendo, em julho de 2005, o Instituto Datafolha havia realizado uma pesquisa com 2.110 brasileiros, para a qual 80% dos entrevistados havia respondido que achava que o comércio de armas de fogo e munição deveria ser proibido no Brasil. Essas estatísticas confirmavam uma pesquisa de opinião realizada pelo Ibope dois anos antes, em 2013, quando 80% dos brasileiros afirmaram que votariam em favor da proibição da comercialização de armas de fogo e munição, caso houvesse uma consulta popular.

O que levou a população brasileira a mudar seu posicionamento naqueles três meses em 2005? E o que isso nos diz sobre o atual debate acerca da redução da maioridade penal no Brasil?

Em 2005, à frente da campanha pelo desarmamento da sociedade civil estava o Executivo Federal. A matéria era tão importante para o Presidente Lula que foi definida como prioritária na primeira vez que convocou o Congresso Nacional extraordinariamente, no primeiro ano de seu mandato. Frente aos desejos da maioria dos cidadãos pelo desarmamento e ao protagonismo e centralidade do Executivo na política brasileira, o custo eleitoral de deputados federais e senadores de votarem contra o desarmamento no âmbito do Congresso Nacional tornou-se consideravelmente alto.

O referendo ganhava, assim, força como solução para o imbróglio. A campanha a favor do desarmamento (campanha do “Sim”) acreditava que seria bem sucedida nas urnas e que o referendo ajudaria a fortalecer a coesão social pró desarmamento. A campanha do “Não” (pela manutenção do comércio de armas de fogo e munições) ganharia a oportunidade de utilizar seus recursos para reverter o cenário de proibição de comercialização de armas de fogo e munições. Aprovou-se, assim, a realização do referendo. O que a campanha do “Sim” não havia antecipado era como a elite favorável ao “Não” alteraria a retórica para reverter preferências em seu favor e o quanto a indústria de armas e munições estava disposta a contribuir para manter seu mercado em funcionamento.

Enquanto a campanha do “Sim” defendia o desarmamento como política de segurança pública, a campanha do “Não” abandonou o cenário de debate sobre armas e adentrou a dimensão dos direitos, passando a advogar em prol da “legítima defesa”. A nova retórica pareceu mais legítima à sociedade. E além de uma nova retórica, a campanha pelo “Não” contava com recursos financeiros para divulgação. A Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), fábricas brasileiras de armas e munições, financiaram quase integralmente a campanha do “Não”, que custou R$5,7 milhões. Os mais de R$2,3 milhões doados apenas pela CBC foram equivalentes a todo o valor gasto na campanha pelo “Sim”, financiada majoritariamente por doações de pequeno valor (R$400 mil foi a maior doação, pela Ambev).

Como em 2005 na campanha do “Não”, a retórica da elite política favorável à redução da maioridade penal no Brasil privilegia a defesa em contraposição ao direito difuso de segurança pública. Essa elite passa a repetir as hipóteses de como criminosos adultos usam menores para cometer crimes. Ganha força a argumentação dos crimes que um menor poderia cometer. Além disso, num discurso muito similar ao criado em 2005, argumenta-se que a sociedade está se sentindo desamparada e que o debate não é realizado da perspectiva das vítimas. Invés de centrada em torno da “legítima defesa”, a nova retórica enfatiza a “defesa” e a “repressão”. Invés de falar-se em posse de armas, fala-se em prisão. Mais uma vez, perde-se a visão do debate sobre segurança pública e passa-se ao debate centrado nos incetivos pós-crime.

Ao contrário de 2005, em 2015 a retórica do direito do indivíduo também está nas mãos daqueles que são contra a redução da maioridade penal. Mas ela se apresenta com muito menos força que a retórica da “legítima defesa” em 2005. Primeiro, porque os indivíduos que podem perder seus direitos em 2015 terão muito menos chances de vocalizá-los, o que dirá de reverter a retórica conservadora que hoje se respalda em pesquisas de opinião em outros momentos consideradas insuficientes para a tomada de decisão. Segundo, porque não há grupos econômicos que se beneficiariam explicitamente da manutenção da idade criminal. Terceiro, porque o Executivo Federal está enfraquecido e tem saído pouco em defesa da manutenção da idade criminal no Brasil. Quarto, e mais importante, o Congresso Nacional de 2015 é extremamente conservador, e a redução da maioridade criminal é apenas o primeiro dos ataques planejados contra a segurança pública no Brasil.

Em uma sociedade em que desigualdades são tão acentuadas e o acesso a direitos é tão heterogêneo, é preciso estarmos atentos aos discursos que vocalizamos e aos propósitos a que servem, sob pena de uma mudança na retórica mudar nossa visão de mundo. É preciso, sim, discutir segurança pública, e não apenas parte dela.

Izabela Corrêa é doutoranda em ciência política pela London School of Economics and Political Science (LSE), Mestre em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais, e co-Fundadora do Projeto Brasil.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

7 Comentários

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  1. Três questões diferentes

    Há três questões diferentes envolvidas aqui.

    (1) A diminuição da maoridade penal contribui para melhorar o problema da segurança pública no país? Creio que não, e creio que pouquíssimas pessoas que são favoráveis à redução da maioridade penal acreditam nisso. Querem vingança, reparação por crimes hediondos que, muitas vezes, são cometidos por menores de 18 ou mesmo de 16 anos. Na raiz da situação caótica que vivemos está a absurda política de proibição das drogas, que cria um comércio ilegal e milionário no seio de comunidades carentes, dando origem à formação de máfias violentíssimas, cujas vítimas são, antes de mais nada, os moradores dessas comunidades. Se queremos falar de SOLUÇÕES, é aí que elas devem ser procuradas, e não no encarceramente de pessoas com 12, 14, 16, ou 50 anos de idade.

    (2) É legítimo o desejo de vingança da sociedade diante de um crime hediondo cometido por uma pessoa com 12, 14, 16 ou 50 anos de idade? É legítimo, na minha opinião. Mais do que legítimo, é humano. A punição ritualizada substitui o linchamento. A família da vítima exige e tem direito a essa vingança, e é isso que a cadeia faz: pune para intimidar os que pensarem em fazer a mesma coisa e também para vingar a violência cometida. 

    (3) É justo que essa vingança legítima da sociedade se exerça contra uma pessoa com menos de 18 anos? Na minha opinião, a única linha divisória capaz de arbitrar essa questão não é a idade de quem cometeu o crime, mas a natureza do mesmo. Fazemos o que com o Champinha? Mandamos para o manicômio, pois sabemos que de lá a passoa só sai morta? Ou prevemos em lei o castigo a ser dado a uma criança capaz de fazer o que ele fez?

     

  2. Sobre a redução da maioridade penal

    Não há como tocar no assunto sem falar no sistema carcerário precário que temos. A justiça brasileira, em teoria, tem um viés sempre recuperatório da passoa que é presa, mas na prática sabemos que a única função das nossas prisões é punir o presidiário.

    No meu ver não há sentido em prender a pessoa apenas para puní-la, o período em que o indivíduo está com sua liberdade suspensa deve servir para que o mesmo tenha oportunidade de recuperação e devolva à sociedade, de alguma forma, algo em troca do crime que cometeu, seja efetuando um trabalho na prisão, seja estudando, ou algo do tipo.

    Enquanto o sistema carcerário dos adultos tiver apenas a função punitiva, prefiro que os menores ainda sejam encaminhados às casas de medidas sócio-educativas, que também não cumprem sua função, mas são menos piores do que as masmorras dos presídios.

  3. Mantenham a menoridade penal.

    Mantenham a menoridade penal. Só apliquem as mesmas penas do CPB às infrações análogas do ECA, menor de idade tem o direito de ser protegido e obrigação de ser punido.

  4. Quem vive em condominio, tem

    Quem vive em condominio, tem carro blindado, segurança privada não sabe mesmo o que é a realidade do nosso país.

    Na prática NÂO È UM DIREITO do cidadão ter PORTE de arma.

    “1.O art. 6o. da Lei 10.826/03 dispõe que o porte de arma de fogo é proibido em todo o território nacional, salvo em casos excepcionais. Portanto, excepcionalmente a Polícia Federal poderá conceder porte de arma de fogo desde que o requerente demonstre a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física, além de atender as demais exigências do art. 10 da Lei 10.826/03.

    2.O porte de arma de fogo tem natureza jurídica de autorização, sendo unilateral, precário e discricionário. Assim, não basta a apresentação dos documentos previstos em lei se o requerente não demonstrar sua necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física.”

    E muito menos ter POSSE de uma arma dado que o estado na prática não assegura o direito a posse de uma arma em sua residencia.

    O numero de assasinatos no país só tem aumentado, o estatudo do desarmamento é um fracasso.

     

     

     

     

  5. Sim e o que isso ajuda no problema? Nada

    Ok, então vamos cruzar os braços e aguardar que o problema se resolva por si só. Ora, se um jovem não cometer assassinato, sequestro ou esturpo não será punido pelo Estado, simples assim. Se são só 023% dos crimes cometidos por jovens, o que é um argumento estatístico que isoladamente, além de duvidoso é no mínimo nulo, porque não considera o fato de que a população entre 16  e 18 anos é muito menor que a de 18 anos ou mais, então o impacto será mínimo. 

    Afinal, são pouquíssimos jovens que cometem crimes hediondos não é? Então para quê essa retórica longa e cansativa? O impacto será mínimo. Ou será que algum imbecil acha que os moradores de comunidades, como Planaltina, Estância IV, aqui no Distrito Federal, não gostariam de ver um jovem de 16 anos, cujo apelido é vovozão, e toca o terror na rua, ameaçando, traficando e matando, atràs das grades???

    Vamos parar de hipocrisia e trabalhar pra cuidar da juventude sim, mas deixem o Legislativo fazer o que lhe compete! O Executivo deve é fazer o que não está fazendo, que é cuidar do sistema prisional!

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