Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
[email protected]

Arando o mar, por Daniel Afonso da Silva

“Resto” foi a designação de Samuel Huntington para tudo que não era o Ocidente nem ocidentalizado tampouco passível de ocidentalização.

Arando o mar

por Daniel Afonso da Silva

Foram lúgubres aquelas audiências intermináveis no Conselho de Segurança das Nações Unidas em fevereiro de 2003. Diplomatas dos cinco países membros permanentes da entidade – Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra e França – se desdobravam para fazer imperar o interesse nacional, regional, multilateral ou transcendental de sua nação originária. Aquele esforço – disperso, mas coletivo – ia ao encontro da decisão mais importante em toda a história daquele Conselho criado no chão de ruínas da Segunda Guerra Mundial. A deliberação que, mais dia menos dia, teria ali lugar selaria o destino de muita gente no mundo inteiro e ninguém mais atento seguiu indiferente. Tratava-se, efetivamente, da vida ou morte do “Resto”.

Resto” foi a designação de Samuel Huntington para tudo que não era o Ocidente nem ocidentalizado tampouco passível de ocidentalização. Era o caso, naquele momento, de todos aqueles países e regiões que o presidente norte-americano, George W. Bush, do alto de sua compreensão texana do mundo, inseriu na sua étrange cartografia vermelha de “ingratos” e “ressentidos” inimigos da American dominance.

O inimigo imediato do momento era o Iraque de Saddan Hussein. Os inimigos difusos eram todos aqueles – países e regiões; cidadãos e cidadãs – que acreditavam que a história não era bem assim, que estava mal contada, que era, quem sabe, maldita.

Vivia-se a guerra ao terror norte-americana. E quem não se rendia cegamente aos seus ideários era entendido como persona non grata.

Algum ponto de referência mais potente remetia ao trauma do 11 de setembro de 2001.

Mesmo antes da dobra do último sino daquele dramaticamente espetacular dia 11 de setembro de 2001, entrou em marcha a tentativa coletiva de compreensão do ocorrido. A perplexidade tomou conta. As imagens e os grunhidos da vulnerabilidade do império, emitidos real time, just in time, full time pelos media, aumentaram o fosso do tempo. A experiência e a esperança perderam o sentido. O presentismo atordoou a consciência dos viventes. Em Nova Iorque, nos Estados Unidos e algures. Passado e futuro perderam a evidência. O presente – com seu êxtase e dor – virou contínuo e interminável e perpétuo e eterno. A excepcionalidade do evento foi o diagnóstico implacável. Diversos headlines das horas, dias, semanas e meses seguintes informaram algo próximo de “EUA sofrem maior ataque da história”. Ataque de comparação longínqua a Pearl Harbor em 1941 ou ao incêndio da White House em 1812; mesmo que alguns o considerem mais apropriado estender sua similitude às consequências do assassinato de Sarajevo de 1914.

Ao mesmo momento, ia ganhando discussão o seu impacto sobre o sistema internacional ou sobre a ordem mundial ou sobre, pura e simplesmente, o mundo. Chancelarias de países aliados ou não aos Estados Unidos ficam de sobreaviso. Órgãos de imprensa e demais formadores de opinião alimentam o interesse geral com informações, proposições e teorias. Muitos indiferentes à concretude de sua própria presença no mundo passam a perceber a força e a inconveniência da integralidade da civilização material em escala planetária. Ou, ao menos, a grandiosidade da presença dos Estados Unidos nesse mundo.

A New Yorker do dia 24 de setembro de 2001 sintetizou tudo. Sua capa trouxe o luto. Veio inteira escura. Como o desolamento do país frente a si. Sentimento sem nome. Comoção sem fim. Sofrimento e dor.

Ao menos desde o desaparecimento da realidade do bloco socialista, a sensação de triunfo reacendia a chama do American dream. Da excepcionalidade do povo. Da predestinação da nação. Da unicidade da civilização. Da ubiquidade do bem.

Depois que o American Airlines Flight 11 e o United Airlines Flight 175 singraram sequestrados pelos céus de Nova Iorque e deformaram o cartão-postal do mundo livre e o American Airlines Flight 77 e o United Airlines Flight 93 ameaçaram símbolos de segurança e poder do império, a América se viu, a contragosto, bem-vinda ao deserto do real, como previram subliminarmente os irmãos Wachowski em sua Matrix (1999).

Ainda no 11 de setembro de 2001, gerou-se unanimidade no interior do Conselho de Segurança para a promoção de uma intervenção no Afeganistão, morada presumida dos terroristas. Em horas e dias, a partir dessa decisão, o Oriente Médio estava quase todo neutralizado ou mobilizado.

Entre na viragem de 2001 para 2002, os frequentadores da White House perceberam que molestar o Afeganistão era pouco. Queriam mais. A dor norte-americana seguia muita. Seu ódio e ímpeto também.

Nas idas e vindas indiscretas de reuniões obscuras com gente muitíssimo excêntrica, o presidente Bush decidiu inserir, oficialmente, o Iraque de Saddan Hussein, antigo aliado dos norte-americanos, na cartografia de inimigos a serem abatidos.

Como justificar essa intervenção preencheu a intenção da presidência Bush ao longo de 2002. A tese da existência de armas de destruição massiva foi explorada à exaustão. Altos funcionários, jornalistas, diplomatas, empresários, políticos foram mobilizados para dar tônus moral à tese. Não se faria, em tese, uma operação de regime chance no Iraque – ou em qualquer parte – sem o aval do Conselho de Segurança.

Em fevereiro de 2003, a discussão ganhou novos rumos. Os “andarilhos do bem” queriam resolver logo a situação. O secretário de estado, Colin Powell, da sua condição de militar reputado prestou-se ao serviço de justificar o injustificável. Informou, ao mundo inteiro, possuir provas irrefutáveis da produção de armas químicas e biológicas em território iraquiano sendo que diplomatas e técnicos das principais agências internacionais de aferição de armas químicas e biológicas acabavam de retornar de inspeções no Iraque e nada daquilo tinha notado.

Os franceses não se deixaram seduzir pelos informes norte-americanos e vetaram a intervenção no 14 de fevereiro de 2003.

Pelo regimento do Conselho de Segurança, intervenções internacionais daquele tipo – que os falcões queriam – dependiam de unanimidade entre os países-membros. Ou seja, nenhum “não”. Apenas “sim” e, eventuais, “abstenção”.

A França disse “não”.

Mas de nada adiantou. Os norte-americanos da guerra decidiram tocar o terror a qualquer custa.

E o custo veio.

Desde lá que o “Resto” se revigora, dia após dia, e todo o “Ocidente”, minuto após minuto, como dizia Quevedo, segue “arando o mar”.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador