Arcabouço Fiscal e Demanda Efetiva, por Nathan Caixeta

A saída oferecida pelos economistas de mercado, de via única e estreita, é a destruição do gasto, responsável por colocar a renda em movimento

Arcabouço Fiscal e Demanda Efetiva

por Nathan Caixeta*

Qualquer que seja, um exame criterioso da política fiscal prometida no Arcabouço de Haddad exige levar em conta dois aspectos que parecem subtraídos do debate econômico: 1) a articulação entre as políticas fiscal e monetária não se dá pela sujeição da primeira aos movimentos da segunda, mas pela orientação conjunta do horizonte de oferta e demanda, crias do ambiente decisório fixado pela demanda efetiva; 2) a relação entre o resultado primário e a elevação da dívida pública vai além do jogo de soma que os modelistas estão se servindo, ao contrário, trata-se de reorientar a receita e o gasto para gerar crescimento com distribuição de renda.

Em relação à primeira questão, talvez seja conveniente lembrar que o fenômeno inflacionário nasce da difícil composição entre a oferta e demanda dos mais variados bens e serviços, tal como os fatores que influenciam o custo de sua produção e a capacidade aquisitiva dos compradores. Em geral, associa-se a inflação ao excesso de demanda desatado por um superficial aumento do poder aquisitivo das pessoas, vindo de um Estado gastão ou frouxo no controle no crédito. A admissão de uma insuficiência de oferta, o que se sucedeu à pandemia, é tomada como ato corretivo das decisões privadas que se resolve no aumento da inflação.

A saída oferecida pelos economistas de mercado, de via única e estreita, é a destruição do gasto, responsável por colocar a renda em movimento, performando a demanda. Isso se faz com a taxa de juros, apertando o crédito e o investimento. Sem o devido compromisso com o equilíbrio do orçamento, garantiu o FMI em seu último relatório: trazer a taxa de juros de mercado ao seu instinto natural de equilibrar poupança e investimento, é um exercício dispendioso que penaliza o crescimento.

Vale dizer, quantas vezes a consciência nos exigir, que oferta e demanda corrente são resultados posteriores de determinadas decisões “ex-ante” que movimentam ou contraem o gasto privado. É a avaliação sobre o futuro que cria, no presente, o bilhete de passagem entre a riqueza criada pelo gasto e sua efetivação como renda monetária.

Essa é a demanda efetiva, de Keynes e Kalecki: ao vislumbrar um horizonte positivo para o investimento, imaginando que a produção decorrente será consumida, as empresas ampliam, ou criam, capacidade adicional de produção (oferta) e fazem isso adiantando salário para os trabalhadores, além de estimularem a produção do maquinário necessário para o exercício produtivo, garantindo horizonte positivo para outras empresas (demanda). Portanto, é a iniciativa do gasto que, ao surpreender, a estrutura fixada pelas decisões de produção, acaba por expandir essa mesma estrutura**.

Empalada pela evidência da demanda efetiva, a ideia da igualdade entre poupança e investimento que naturaliza a taxa de juros, vira peso de papel: se é o gasto que cria a renda e não o inverso, temos que admitir uma força que rompe o circuito entre quem necessita de recursos para gastar e aquele que dispõe de recursos ociosos para serem aplicados mediante uma taxa de juros.

Isto, nos instrui o professor Schumpeter, é papel do crédito, a forma criadora de capacidade aquisitiva para a qual se lança uma promessa futura de pagamento, confiando que, no futuro, o gasto gerará renda. Mais precisamente: o gasto com investimento, na contratação de trabalhadores e maquinaria, que se reverterá em lucros para as empresas, isto é, a poupança que pagará pelo crédito contratado.

Insisto, novamente, no futuro, pois é nele que convém, também, a determinação da política econômica ao direcionar as expectativas, criando o horizonte de decisões no presente. Como se sabe, o gasto e o crédito público operam em complementaridade, mas sobretudo como iniciadores do processo que levará ao gasto privado. Igualmente, a gestão das condições de crédito, pelo Banco Central, altera a disposição dos agentes privados diante da incerteza do futuro. Altera no sentido de que essa disposição está vinculada à transformação do desejo pela riqueza imediata em desejo pela riqueza criada pelo gasto e pelo crédito sob pena da renúncia ao conforto imediatista da liquidez.

A contraditória tensão entre o imediato e a criação futura de riqueza está na propriedade do dinheiro como potência: a posse da riqueza na forma dinheiro impõe, imediatamente, a potência do gasto, bem como, a possibilidade de sua abstenção. A criação de riqueza impõe renúncia à abstenção e disposição ao gasto. Pela mesma propriedade, a moeda é capaz de mover, desde o andar superior das decisões capitalistas, a economia ao declínio ou ao crescimento.

Aí que devemos pensar o Arcabouço Fiscal. As vozes ecoam dos mercados e acabam no Banco Central: para reduzir os juros, é necessário cortar gastos, ou aprisionar sua expansão à evolução da dívida pública. Ocorre que a taxa de juros, como argumentamos, regula o desejo pela abstenção dos agentes privados. No patamar em que se encontra a taxa de juros no Brasil, a abstenção é quase uma compulsória concessão da razão. Cortar ou limitar a ação fiscal, no momento atual, equivale a queimar a ponte entre o presente e o futuro, ao limitar a demanda efetiva que o Estado oferece ao setor privado através do gasto. Conclusão: a Economia capota de um lado e de outro.

A proposta enviada para o Congresso pelo Ministério da Fazenda se não atende ao volume necessário de gasto para fortalecer o crescimento, preserva o investimento no momento do “capote”. Entretanto, nem a política monetária do BC tem sido eficiente para abater a demanda de modo que a inflação ceda, nem suas pressões sobre a política fiscal permitem que o gasto empreenda seu papel: elevar a oferta pelo aumento da demanda por investimento, o que efetivamente reduz a inflação, que tem resistido à terapia administrada pelo BC.

De então, nos batemos com a segunda questão. A dívida pública opera no financiamento dos gastos do Estado e da política monetária. Duas são as razões para sua elevação, salvo operações especiais de composição patrimonial: déficit do governo, quando gasta mais do que arrecada; e as operações do Banco Central para regular a liquidez no setor bancário.

Elevar a dívida não é um problema se esse ato cria as condições para sua própria resolução, isto é, desde que gere receita para cobrir os recursos adiantados. No caso do déficit do governo, ao elevar a demanda efetiva para o setor privado, incentivando o investimento, a criação de empregos e renda, gera também o aumento de suas receitas. A dívida pública contraída como déficit pode ser paga com a receita adicional, quando – novamente – no futuro, o déficit se transforma em superávit. Quando o governo quer reduzir a dívida gerando superávit pelo corte de gastos, ocorre o inverso: a demanda capota, o desemprego se eleva, a renda cai e as receitas do governo também. A tentativa de gerar superávit e reduzir a dívida sai pela culatra: se transforma em déficit e mais dívida.

Ao manter elevadas as taxas de juros, o BC além de estimular a abstenção do gasto privado, eleva a dívida pública ao destruir a capacidade de crédito do setor bancário, vendendo títulos de dívida. Sem crédito, o gasto morre na véspera. A renda cai, as receitas do governo vão junto. Com a elevação da dívida, contratada mediante juros elevados, o BC destina aos operadores da política fiscal maiores despesas com juros. A conta não fecha: a receita cai, a despesa com juros aumenta. Logo, a dívida volta a se elevar para pagar a anterior e assim por diante.

Essa tem sido a dinâmica entre a política monetária e fiscal desde o Plano Real. Foram poucos os momentos nos quais a dívida se elevou porque o governo gastou demais. Na verdade, tem se dado o inverso: a política monetária obsessivamente conservadora, que mantém juros mais altos do que o necessário, tem provocado a explosão da dívida pública.

Não sinto discordar do presidente do BC quando diz: “é uma questão técnica e não política”. Parece que a técnica da política atropela a política da técnica quando os mercados financeiros definem o prêmio pela abstenção do gasto (taxa de juros) e o BC assina embaixo, deixando como justificativa o descontrole fiscal, encomendando a morte do mecanismo de criação da demanda efetiva.

O Arcabouço é técnico, atende aos anseios políticos do Banco Central. Também é político: atende à técnica de governar. O futuro nos apontará o estado da arte.

*Economista formado pela FACAMP e pós graduando pela Unicamp

**Uma explicação detalhada dessa discussão pode ser encontrada na obra “Dinheiro: o poder da abstração real”, de Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo (2021).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O parasitismo causado por essas incompreensões ao aplicar as ações nas políticas fiscal e monetária, produz esse capitalismo sem brilho verificado no País. Toda a falta de uma reclamada competitividade deriva do estímulo dado para a aposentadoria da criatividade, que acaba sendo desnecessária num ambiente em que guardar moeda paga mais do que investir. O País não possui um número razoável de empresas com faturamento nas casas das dezenas ou centenas dos bilhões de reais, demonstrando como essa política de ociosidade produtiva do capital fez e faz mal à toda a sociedade brasileira. A economia é um circuito que se retroalimenta, aumentando condições e oportunidades. Se isso não acontece, ela não tem dinâmica. Sem dinâmica ela é pouco interessante para os investimentos transformadores, que impulsionam o presente e o futuro. O País está sendo sufocado por essa limitação auto imposta e precisa agir mais para resultantes econômicas condizentes com o potencial do Brasil.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador