Contra a constituição: neoconstitucionalismo, juízes e a democracia anódina, por Eliseu Raphael Venturi e Marcelo Paulo Wacheleski

A baixa sintonia com o estado da arte dos temas em discussão nos julgados, somados à falta de responsabilidade científica e filosófica com conceitos estruturados e os grandes estandartes do pânico moral do nosso tempo são brechas e mais brechas de um Direito que, mesmo em sua total potência, ainda é poroso demais

Max Ernst. Colagem para “Uma Semana de Bondade”, 1934. (1)

Contra a constituição: neoconstitucionalismo, juízes e a democracia anódina

por Eliseu Raphael Venturi* e Marcelo Paulo Wacheleski**

A Constituição Federal de 1988 é um marco normativo de grandes transformações na realidade social, jurídica, moral e política do país. A sua aplicação, na própria atribuição de conteúdo aos seus preceitos, e na técnica própria do Positivismo Jurídico, implica em grande conquista de direitos sociais e de liberdade, além da visão conjunta de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, políticos, ambientais, da democracia, da paz e da tecnologia.

Trata-se de um documento que colocou na dianteira o dever de “todos” perante “todos”, algo muito desagradável às elites e às classes que ideologicamente defendem os interesses das elites, a despeito de sua evidente subordinação. A Constituição de 1988, assim, alcançou o préstimo histórico de, se não agradar a todas as linhagens da esquerda ou da direita, inserir em seu cerne a tensão e o conflito, e esta é sua maior vitória: ela colocou o problema no plano da normatividade indelével, dada a sua rigidez.

Todavia, não se entendendo como suficiente o escopo do texto nu da Constituição, construiu-se e adotou-se a teoria que, ao fazer críticas ao Positivismo em seus moldes mais subsuntivos e modernos, passou a exigir uma nova postura frente à Constituição. Nesse novo modelo, dito Pós-Positivista, tentou-se a coesão das bases do Positivismo e do Jusnaturalismo. Em suma: uma tentativa de juntar fios que só poderia resultar em curtos circuitos, e na sutil equação dos direitos fundamentais, por um lado, e das oligarquias do poder, de outro, pareceu claro quem saiu vitorioso.

Estabelecida uma necessidade forjada a fogo frio do Pós-Positivismo e suas panaceias como superação das aporias do Positivismo – como se houvesse apenas uma expressão universal deste – e agindo em sua principal acusação, qual seja, a forma estática de ordenar fatos complexos da realidade que exigem respostas atuais, a Constituição, em seu núcleo principiológico, ganhou um certo protagonismo anunciado a vários ventos, e com ela, a Jurisdição Constitucional se tornou objeto de grande ânimo aos juristas e simpatizantes.

A oligarquia se tornou a guardiã do dever de todos ante todos, a gestora dos direitos fundamentais. Não se poderia ter firmado de maior morte o sistema tensional da Constituição, ante a qual, então, se firmou o coro da “harmonia” em um tecido social de profundas contradições.

Poder interpretar o texto constitucional fora das amarras do Positivismo, tratado como seu grande vilão, permitiu a emergência e disseminação de um novo modelo, denominado Neoconstitucionalismo, pelo qual se pretendeu afastar a rigidez juspositivista de separação entre Direito e Moral. Não faltaram entusiastas em proporção inversa aos críticos.

A partir de então, a interpretação constitucional passou a ser, também, um exercício de atribuição de conteúdo moral ao texto vigente. Os juízes assumem, nesse momento, a posição de Hércules prescrita por Dworkin, colocando-se como autoridades reveladoras da moralidade social pretendida pelo ordenamento jurídico como uma totalidade de sentido interligado.

Mas os Hércules são figuras impossíveis e ficamos, então, à mercê de outras figuras mitológicas, geralmente menos felizes e menos bem-sucedidas em atos heroicos. A Constituição, assim, ficou não apenas exposta ou vulnerável, mas verdadeiramente entregue aos seus intérpretes: ela ficou, no final das contas, nas mãos de um estamento específico. Um estamento que, a despeito de sua pretensa qualidade técnica pretensamente assegurada por um concurso público pretensamente objetivo, ainda assim é um estamento oligárquico. Nada mais antidemocrático, portanto, de modo que qualquer “acerto” só pode ser entendido como desvio-padrão.

Seriam eles, os Juízes, que traduziriam os anseios de uma sociedade pouco participativa e afastada dos espaços institucionais de exercício da democracia. Um liame muito sutil, com demanda muito intensa de diversas técnicas de mediações semânticas, que, na ansiedade do dia-dia e na vontade de poder quase generalizada, produziu mais aberrações do que promessas de emancipação.

E estas promessas, ademais, se efetivaram pelos caminhos tortos: maquiaram deveres do Congresso, permitindo-lhe se acovardar dentro da sua inatividade e incapacidade de firmar agendas dignas de juridicidade e relevância social. Retiraram-se discussões da sociedade e as comunidades de interesse pagaram na pele o preço caro dos efeitos de backlash das decisões. Os atalhos cobraram preços muito caros e aumentaram em poder quem não deveria ter palavra sobre as temáticas.

De repente, todos se tornariam obsessivos pela interpretação dos juízes, deixando às calendas as múltiplas e plurais interpretações diversas que uma democracia demanda e das quais se depende de modo decisivo – a despeito de contribuições relevantes como a “constituição aberta” de Haberle, por exemplo, muitas vezes relegada a leitura complementar.

Tornamo-nos progressivamente preguiçosos com a rede de amarras interpretativas para se garantir uma democracia, que vai desde o mais inocente cidadão até o guardião constitucional mais sabido, e, com isso, inflamos de poder uma categoria de agentes que, no mais, se mostrou sedenta de poder como qualquer outro ser humano temeroso e atormentado.

Entregamos o que de mais valioso poderia haver em uma democracia: a boca da Lei do juiz se tornou a boca do Direito do juiz. Entregou-se “o Direito”, e não apenas “a Lei”, a um estamento oligárquico. Entregou-se a linha de resistência (direitos fundamentais) na tensão ao oposto ponto, o que só poderia determinar seu sufocamento. É preciso insistir no valor da entrega, por um lado, e no preço da entrega, por outro. Podem os juízes irresponsáveis indenizar as coletividades que lesam, a sociedade que violam, o ordenamento que distorcem, a democracia que assaltam? São questões pelas quais qualquer escrutínio democrático severo deve passar.

O que  não se construiu nos veios do Neoconstitucionalismo, de forma efetiva, foram regras claras de controle da liberdade dos juízes na atribuição de conteúdo material as normas constitucionais, a despeito do tracejamento de diversas metodologias, metódicas, métodos e posturas amplamente difundidos e fragmentariamente incorporados na prática judiciária, na medida em que se abriam janelas ao exercício do poder arbitrário.

Controle de “liberdade”, vale dizer, que na ordenação jurídica de condutas, já significa um exercício cercado pelo princípio da legalidade, pela vigilância da ética profissional, pelo comprometimento indelével com o Direito Internacional dos Direitos Humanos – infelizmente, preceitos estes todos cotidianamente violados explícita e deliberadamente.

Os esforços acadêmicos em torno desta pretensão de controle, ademais, talvez não tenham chegado – ou enfrentado devidamente – aquele conhecido e polêmico limiar do Direito e da Política, da técnica e do voluntarismo, aquele drama destrinchado por Hesse, nódulo do domínio artístico do Direito, e que até hoje espanta juristas por todo o mundo quando se deparam com a estilhaçada queda da vidraça do Direito ante o projétil da vontade de quem esteja num campo de forças a si propício.

Nesse ponto, especialmente naqueles casos em que o debate público era mais apropriado do que a caneta do juiz, abriu-se uma janela para uso da “argumentação” não racional – vale dizer, muitas vezes cadeias de elocução emitidas por intérpretes legítimos, mas sem substância relevante –, e que tem, igualmente, proporcionado o esvaziamento absoluto do texto da Constituição e todas as parolices decorrentes.

O excesso de confiança nos juízes, assim, como um contraponto desequilibrado do excesso de desconfiança nos parlamentares, apagou (senão sequestrou) os mecanismos complexos que a democracia demanda, a despeito de consultas e audiências públicas, amicus curiae e outras armadilhas anódinas postas no caminho da supremacia da interpretação judicial.

É consideravelmente pouco problemático demonstrar o que se afirma.

Na ADI 4.439 a Procuradoria Geral da República defendia que o ensino religioso nas escolas públicas e privadas não poderia ter natureza confessional e nem professores com essa formação deveriam ser contratados, por uma norma básica de construção do Estado Democrático de Direito que deve ser laico. Ao contrário de toda tradição de construção de um Estado democrático e do próprio texto constitucional (artigo 19, I, e artigo 5o, VI, da CF), que proíbem a adoção de religião oficial, o STF atribuiu sentido diferente à norma autorizando o ensino confessional.

No HC 152.752, impetrado em favor do ex-Presidente Lula, o STF foi chamado a debater a possibilidade de início de cumprimento da pena em segunda instância. A literalidade do disposto no artigo 5o, LVII, da CF, nunca deixou dúvidas de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Por razão lógica, como pena é para culpado, prisão também deveria ser. Não foi o que entendeu o STF. Por maioria, firmou o entendimento de que é possível o início do cumprimento da pena depois da decisão em segunda instancia.

Em ambos os casos, os argumentos, claramente de natureza moral, e sem nenhuma obtemperação argumentativa e hermenêutica relevante que lançasse as discussões a um plano minimamente tolerável de fundamentação ética ou jurídica, colocaram os juízes contra a Constituição. Não os colocou em sentido diverso à literalidade anacrônica de um ou outro preceito, o que seria um movimento de atualização constitucional: foi um movimento Contra a Constituição. Não se trata de potencialização ou amplificação, mas sim de destruição.

Os impactos de uma análise moralista (e não moral) da Constituição (para além da necessidade de se reconhecer seu conteúdo moral), é bem compreendida quando se lê a contradição da passagem do voto do Ministro Barroso (2). No seu julgamento, primeiramente o Ministro deixa claro que não ignora que o habeas corpus em julgamento é de um ex-Presidente da República com alto índice de popularidade, e logo depois, afirma a oportunidade da Corte de mostrar que a Lei é para todos. Havia (ou deveria haver) alguma dúvida quanto a isso (uma obviedade gritante estridente) até àquele momento da enunciação? Não é esse o pressuposto evidente de um Judiciário independente e de um pacto republicano através de uma Constituição?

Embora a Psicanálise possa explicar a traição das palavras, e que aqui não se pretenda de modo algum realizar este tipo de desconfortável análise, o fato é que não raro se procede, no “mundo do Judiciário”, do modo apontado no exemplo: “eu sei que não devo fazer o que farei e dizendo que sei que o que farei é incorreto, eximir-me-ei, pois enunciarei meu discernimento” é espécie de regra de ouro da deslealdade constitucional, escorrendo uma lágrima reptiliana.

Mais recentemente, mais uma vez, os superjuízes se colocaram, em projeção nacional (nem se pensem o que ocorre nas micropolíticas a todo tempo), Contra a Constituição, novamente, e desta vez não só as liberdades individuais foram atingidas, mas o próprio projeto constitucional de superação das históricas desigualdades sociais.

Ao julgar a ADI 5766 proposta contra a Lei Federal n. 13.467, de 13 de julho de 2017, o STF novamente utilizou de diversos “argumentos” externos à Constituição – cadeias de elocução emitidas por intérpretes legítimos, mas sem substância relevante – para garantir a legitimidade da norma, mesmo que esta se fizesse em frontais prejuízos aos valores de igualdade e dos valores sociais do trabalho, do texto constitucional.

Em uma das passagens de seu voto o Relator afirmou que “[…] é preciso desideologizar determinados debates e identificar onde está verdadeiramente o interesse público”. Parece, mais uma vez, que se utiliza a noção vulgar e do senso comum do termo “ideologia”, justamente para elidir sua função de denúncia da inversão de valores em uma sociedade em conflito e, com isso, realizar a finalidade do dispositivo ideológico mesmo, armadilha clássica por excelência e que um intérprete minimamente qualificado deveria evitar: apagar o conflito para prevalecer o valor dominante da subjugação.

Cabe perguntar, então, como seria possível julgar um processo, que trata do cerne da organização social para garantia de sobrevivência com dignidade do povo de um país com altos índices de desigualdade, sem considerar a luta de classes que perfaz toda a sua história, seu passado e seu presente? E porque é permitido tomar esse caminho no julgamento e, logo após, utilizar da análise econômica do direito para legitimar a reforma que restringe direitos dos trabalhadores tanto nas suas relações laborais como de acesso ao judiciário?

Pergunta-se mais: a quem o resultado final da interpretação beneficia? Contra quem ele se afirma? E a que custo (constitucional) ele se baseia? Enfim: Contra a Constituição!

O Ministro seguiu argumentando que sua análise não é um debate entre esquerda e direita, mas o que será melhor para os trabalhadores, a sociedade e o país e que conduziu sua decisão pela proporcionalidade e adequação. Um apagamento ideológico, por excelência, acaso se compreenda o significado de ideologia dentro dos quadrantes teóricos de sua construção – e não na esteira do senso comum que se beneficia da vulgarização do termo.

É nesse ponto que mora um dos grandes fetiches do Neoconstitucionalismo: uma possibilidade infindável de abrir jogos, jogos arbitrários, jogos voluntaristas, jogos decisionistas, jogos falaciosos de autoridade do poder, imprecisão conceitual, vulgaridade das palavras, descompromisso com vetores interpretativos. Mesmo no manejo das metódicas, das metodologias, das receitas, dos mapas. Afinal, quem não quer seguir estradas, não terá pudores em renegar mapas, quem o dirá em construir ruas.

O Neoconstitucionalismo posto em xeque por antigos expoentes da libertação neoconstitucionalista. Os princípios abertos e de baixo controle de racionalidade como proporcionalidade e adequação, e os diferentes regimes de valoração e aceitação dos seus usos, têm permitido a volatilidade das decisões judiciais e comprometido a estrutura constitucional. A baixa sintonia com o estado da arte dos temas em discussão nos julgados, somados à falta de responsabilidade científica e filosófica com conceitos estruturados e os grandes estandartes do pânico moral do nosso tempo são brechas e mais brechas de um Direito que, mesmo em sua total potência, ainda é poroso demais.

“Contra a Constituição” é apenas o ataque a um meio, que esconde um corpo por detrás de si. Corpos. Contra os Corpos. São estes cadáveres que devemos fitar: pelas mãos dos guardiões fomos jogados ao poço sem fundo; uma violação do dever de cuidar.

***

*Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná. Advogado.

**Marcelo Paulo Wacheleski é doutor em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí. Especialista em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Advogado.

***

(1) Disponível em: <http://www.coneysloft.com/magazine/2016/10/27/on-collage>. Acesso em: 15 jun. 2019.

(2)   “Eu gostaria de dizer, logo de início, como disse na sessão passada, que não me é indiferente o  fato  de se tratar aqui  de um habeas corpus impetrado por um ex-Presidente da República – por Luiz Inácio Lula da Silva   –   e,   mais   do   que   isso,   por   um   político   que   deixou   o   cargo   com elevados   índices   de   aprovação popular   e que presidiu o país em um período de relevante crescimento econômico e   de   expressiva   inclusão social. Não é, no entanto, o legado político do Presidente que está aqui em discussão.   O   que   se   vai   decidir   é   se   se   aplica   a   ele, ou não, a jurisprudência que este Tribunal fixou e que, em tese, deve se aplicar a todas as pessoas. Portanto, eu acho que este julgamento é, na verdade, um   teste importante para o sentimento republicano, para a democracia brasileira e para o amadurecimento institucional, que é a capacidade de assegurar que todas as pessoas   sejam   tratadas   com   respeito, consideração   e igualdade. O nosso papel aqui, árduo como possa ser e muito acima de sentimentos pessoais, é o de assegurar a razão – a razão pública e a razão da Constituição – por sobre as paixões políticas.” Min. Luis Roberto Barroso no julgamento do HC 152.752

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador