A corrupção como instrumento de extorsão do mundo do trabalho, por Mário Tomé

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Enviado por Almeida

Óleos e lubrificantes

Por Mário Tomé, no Esquerda.net

A corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação capitalista, da extorsão sem peias feita ao mundo do trabalho

“A corrupção é o lubrificante da democracia”, dizia Espinoza, o deus ex-machina da cooperação da Máfia com o Estado, ao esforçado Corrado Catani, o polícia que não desistia de desmantelar essa poderosa máquina de uso da corrupção estruturante do sistema capitalista, no seu grau menos sofisticado e mais directo mas não menos eficaz, a Máfia italiana.

Corrado foi assassinado a mando do dito Espinoza que antes lhe mostrara as fichas que detinha, correspondentes às altas figuras do Estado, da Igreja e do Exército.

Estávamos a ver La Piovra (o Polvo) essa série italiana que marcou o panorama televisivo entre 1984 e 2001.

A Máfia – e ninguém se esquece das três partes de “O Padrinho” de Francis Ford Copolla – tem no centro os valores familiares – respeito,fidelidade,hierarquia moralmente sustentada, o poder absoluto do pater familia – que transpôs para a sua própria organização criminosa. E tem, ainda, um código de conduta, um código moral irrepreensível cuja violação era paga com a morte.

As sociedades democráticas, quase que já aboliram na sua organização a pena de morte legal, mas foram mais lestas a abolir a moral nas relações sociais determinadas pelo mercado (onde ela, aliás, nunca existiu realmente).

A nostalgia mítica dos tempos em que havia moral esconde a essência da sociedade burguesa, capitalista portanto, desde os primórdios: o domínio e hegemonia da burguesia,exercem-se através do cinismo, da hipocrisia, da falsidade, da traição, do segredo, da mentira, da corrupção: as apólices de seguro da propriedade.

Os “pais fundadores” saídos da primeira revolução burguesa em nome do povo, a revolução americana, sabiam que a corrupção estava no âmago da sociedade nova que nascia. A lei que aboliu a escravatura nos EUA, um dos passos fundamentais para o progresso da humanidade, foi conseguida por Abraham Lincoln corrompendo activamente dezenas de congressistas para conseguir os votos necessários.

O combate à corrupção – legiferação, justiça, polícias, serviços de informações, transparência, monitorização, regulação (oh! a regulação!) etc. – é, também ele, um instrumento ao serviço da corrupção sistémica do capitalismo, uma espécie do velho “agarra que é ladrão”.

A corrupção, na época do imperialismo e do neoliberalismo já não é mais o lubrificante da democracia, como justamente dizia o nosso Espinoza duas décadas atrás.

É agora a democracia, adulterada completamente pela subordinação ao funcionamento do mercado financeiro, que passou a ser o lubrificante da corrupção, factor estruturante da actual sociedade burguesa.

Sem o lubrificante da corrupção o sistema democrático burguês emperra; sem democracia, a corrupção apareceria com a sua verdadeira face de facilitadora por excelência do saque organizado a favor dos “donos disto tudo” e não apenas como uma lamentável falha do sistema.

Assim, a esquerda tem como missão nuclear, na sua luta dentro e fora das instituições, desmascarar a conversa mole da luta contra a corrupção.

Ao mesmo tempo que exige, até ao limite, que as instituições formalmente democráticas que subordinam a vida organizada das nações, combatam a corrupção pelo menos nos termos da sua retórica demagógica, tem que, obrigatória e sistematicamente, fazer a denúncia e a demonstração cabal e oportuna do carácter essencialmente corrupto e corruptor do sistema.

A corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação capitalista, da extorção sem peias feita ao mundo do trabalho.

A luta contra a corrupção insere-se radicalmente na luta anti-capitalista. Fora desta, não passa de encanar a perna à rã ao mesmo tempo que contribui para naturalizar a própria corrupção enquanto mero comportamento desviante.

Os tempos estão a mudar lentamente, os movimentos sociais ganham fôlego, apresentando-se como único contra-poder confiável e os partidos que querem ter papel são cada vez mais solicitados a ser parte desse movimento de características globalizantes que ameaça a ordem instituída e construída ao abrigo da corrupção sistémica.

O próprio papa Francisco denuncia com coragem, e à margem sua própria congregação, o capitalismo como criminoso e assassino, como provocador da imensa desgraça que flagela povos e trabalhadores, que provoca a marginalização da imensidão de pobres e excluídos saídos das fileiras do trabalho, o negócio do armamento, mais ainda que a disputa geoestratégica,como fomentador das guerras contra os povos. À corrupção classifica, como uma “cultura de subtracção” denunciando que a corrupção dos ricos – os “donos disto tudo” – acaba sendo paga pelos pobres.

Como ele disse na recente reunião que teve com representantes dos movimentos sociais, entre os quais o exemplar Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do Brasil:

“Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo”.

E numa crítica subtil não só à sua igreja como aos adeptos da misericórdia e da regulação: “Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos”. Um apelo, pois, à luta concreta e à ousadia da recusa das soluções “social-democratas” e “democratas-cristãs”

A esquerda quer contribuir para mudar este sistema que “não se aguenta mais”e “levar a dignidade humana para o centro” para construir as “estruturas sociais alternativas de que precisamos”.

Não pode, na clareza e veemência da denúncia e na coragem da acção, ficar atrás deste simpático e inesperado aliado.

* Coronel na reforma. Militar de Abril

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Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

10 Comentários

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  1. Parei de ler quando vi

    Parei de ler quando vi “sistema capitalista”. A URSS tinha um dos governos mais corruptos do MUNDO, ou será que só quando envolve $$$ é que se é corrupto?!?!

    1. Pois é por ler pouco e ter conceitos pobres que opina mal…

      Acha que no comunismo soviético (ou qualquer outro) não existia capital, só trabalho.

      Pensa que rublos eram “envergonhados de lingua plesa”.

      Eu também não acredito no comunismo como solução sistêmica.

      Mas não tenho problemas em avaliá-lo. Não é doença, nem devora bebês.

      O problema de quem só torce, contra ou a favor de qualquer coisa, é que só torce.

      Aí não pensa.

    2. Você tem razão.

      No desenrolar da história, ela foi se tornando corrupta, ficando tão corrupta, cada vez mais corrupta, até que se tornou… capitalista.

      Reestabelecer o capitalismo foi a forma da burocracia corrupta justificar e exibir sua prosperidade. O capitalismo renasceu lá embalado na corrupção, pois é com ela que ele se revitaliza e prospera.

      1. Concordo. A única ressalva é

        Concordo. A única ressalva é que a Rússia de hoje é um dos poucos países suficientemente fortes, organizados e lúcidos capazes de manisfestar publicamente a verdade e  enfrentar a pretensão Ocidental de impor a todos um imperialismo global.

  2. depois de se admitir que a

    depois de se admitir que a urss era um simulacro capitalista,

    não é exagero dizer que a corrupção faz arte do dna do capitalismo.

  3. Refletindo…

    Engels escreveu “A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado” (Der Ursprung der Familie, des Privatugentums und des Staats), com sua primeira edição em 1884.Trata-se de uma publicação de leitura obrigatória para os estudantes (iniciantes) das áreas de humanidades. Nesta obra, entre outras coisas, faz um paralelo entre o surgimento da família monogâmica, patriarcal, com a prostituição e a traição marital. Afirma serem faces da mesma moeda, ou seja, estas duas últimas coisas surgiram como consequencia das primeiras. São inerentes, inseparáveis. O artigo acima chama a atenção para o fato de que o modo de produção capitalista também carrega suas contradições: sua moral aponta também para sua imoralidade, sendo um de seus elementos constitutivos a corrupção. O texto poderia ser, com outro formato e outro desenvolvimento, um artigo publicável em qualquer revista da área de humanas. Merece uma reflexão profunda de todos nós.

    As comparações envolvendo a URSS, Cuba, Coréia do Norte (ou outros falecidos) são decorrência da própria ignorância da literatura (já antiga) que trata dos problemas do socialismo real. Trotsky, por exemplo, afirmava que o estancamento da revolução em um único país (e aí estabelecia um embate com o Stalinismo) teria (ou teve) como consequencia a deformação do socialismo e propunha que a a revolução teria que manter-se como “permanente e internacional”. Não pretendo avançar nesta linha de discussão, mas lembrar que o embate entre o socialismo real e seus teóricos trata-se de seara diferente da exposta no texto de Mário Tomé, o qual precisa ser considerado com seriedade e dentro do contexto.

    Abs generalizados

    1. Concordância.

      “O texto poderia ser, com outro formato e outro desenvolvimento, um artigo publicável em qualquer revista da área de humanas. Merece uma reflexão profunda de todos nós.”

       

      Concordo plenamente.

       

      Parabéns a todos:

       

      Ao Nassif, pelo blog; ao autor pela perspicácia, e a vocẽ pela percepção. É disso que se trata. E é bom saber que o Papa Francisco tem assumido posicionameto a meu ver suficientemente claro a respeito de “o diagnóstico”. Até porque, trata-se de um alerta valiosíssimo contra aquilo que pode ser ainda mais trágico. Sem posturas e posicionamentos do gênero, conforme sugirido pelo autor, e praticado pelo Papa, estaremos todos muito mais próximos e irremediavelmente perdidos ante o abismo de uma outra  guerra mundial.

    2. Concordância.

      “O texto poderia ser, com outro formato e outro desenvolvimento, um artigo publicável em qualquer revista da área de humanas. Merece uma reflexão profunda de todos nós.”

       

      Concordo plenamente.

       

      Parabéns a todos:

       

      Ao Nassif, pelo blog; ao autor pela perspicácia, e a vocẽ pela percepção. É disso que se trata. E é bom saber que o Papa Francisco tem assumido posicionameto a meu ver suficientemente claro a respeito de “o diagnóstico”. Até porque, trata-se de um alerta valiosíssimo contra aquilo que pode ser ainda mais trágico. Sem posturas e posicionamentos do gênero, conforme sugirido pelo autor, e praticado pelo Papa, estaremos todos muito mais próximos e irremediavelmente perdidos ante o abismo de uma outra  guerra mundial.

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