Ontem e hoje, golpes no Brasil: a aparentemente insuportável igualdade, por Flávia Schilling

 

do Psicanalistas pela Democracia

Ontem e hoje, golpes no Brasil: a aparentemente insuportável igualdade

por Flávia Schilling

Sem nenhuma pretensão de esgotar ou apresentar uma reflexão profunda sobre a questão proposta, envio algumas ideias, a partir de uma certa perspectiva, sobre a situação atual que vivemos no país.

Qual é essa perspectiva? É a de alguém que viveu o golpe de 64 (tinha 10 anos na época) no Rio de Janeiro, naquele então o epicentro do golpe. É, assim, a perspectiva de alguém comprometida com a questão, que foi vítima da situação, por conta da família ter sido exilada durante 15 anos. Não é uma fala isenta, mas uma fala comprometida. Essa é a primeira condição de honestidade em qualquer depoimento sobre o que hoje vivemos.

Tento pensar sobre semelhanças e diferenças entre o golpe de 64 e o que vivemos hoje, pois considero que já vivemos o golpe. Justifico essa afirmação pois a agenda que está sendo imposta – de direita, contra direitos, apontando para novos rearranjos econômicos e núcleos de poder, está definida.

Tanto ontem como hoje há um protagonista muito visível: a imprensa. Assim como o golpe de 64 começou em 61 (ou até antes, no governo Kubitschek) com uma intensa campanha pela imprensa, assistimos no país, há pelo menos três anos, manchetes negativas constantes contra os governos do PT. Há sites que se dedicam a essa verificação. É o chamado “discurso da devastação” que criou o clima de insegurança e falta de confiança que é a base da atual crise que vivemos. Creio que é um comum acordo pensar que as crises econômicas não são crises naturais, são criadas e manipuladas. Assim, temos um primeiro elemento comum, o papel central da chamada grande imprensa, respondendo a interesses econômicos. Isso não deve ser desprezado. Antes do golpe de 64, após o golpe de 64, a imprensa teve um papel central. Após o início da tentativa de construção de uma democracia no país, pareceria que toda a imprensa teve um papel de resistência, o que está longe da verdade.

Há, a partir da campanha sistemática de devastação da imprensa, a mobilização de setores da população. Mistura-se, novamente, religião, preconceitos, inflação. Naquele então, era a igreja católica a protagonista: o sentimento mobilizado, o medo. Esta é uma grande diferença com hoje. O sentimento que hoje aparece é o ódio. Em 64, era o medo do comunismo, que aniquilaria a família, que destruiria a propriedade. Que criaria uma igualdade (Oh! a igualdade, palavra nefasta neste país da desigualdade!). O medo foi o motor. Na lembrança que guardo do Comício da Central do Brasil, em 13 de Março de 64, todos, ricos e pobres, acenderam velas e rezaram nas ruas contra a ameaça comunista. Hoje, o medo não se faz presente, é um ódio contra coisas tão divergentes e diversas como: união civil de homossexuais, direitos das empregadas domésticas, aeroportos lotados, todos compram carros e as cidades estão paradas pelo trânsito, o aumento do salário mínimo… A vida se faz insuportável no Brasil, país da desigualdade?

Tanto ontem, em 64, como hoje, o elemento mobilizador é a luta contra a corrupção. Nos dois casos a denúncia de casos de corrupção (que acontece nas democracias pois há a liberdade e a possibilidade da denúncia) e a democracia (que possibilita tais denúncias) andam juntas, aparentemente ambas precisam ser aniquiladas. Lembremos que o Brasil, segundo o Latinobarômetro, é um dos países da AL com menor adesão à democracia. Estudei a corrupção em meu doutorado [1]  e claramente a corrupção é vista como uma das armas nos jogos de governo. Contra quem, quando, como, porque? Arma de governo, contra governos. Mas é um poderoso mobilizador pois aparece como uma questão moral. Assim, usa-se, novamente a corrupção por seu caráter mobilizador. Mas esta questão vem com algo dito anteriormente: trata-se de novos grupos econômicos, novos interesses econômicos em jogo. A escolha dos alvos de denúncia não é nunca neutra.

Aparentemente haveria algo diferente entre os dois golpes: no primeiro havia a disposição dos militares em assumir o protagonismo. Agora, isso não estaria dado. Talvez por não ser necessário: enfraquecer os governos centrais, fortalecer um congresso conservador e reacionário, seria suficiente para que a agenda da direita – contra direitos estivesse presente (diminuição da idade penal, ensino religioso nas escolas, estatuto da família, desarmamento) assim como a garantia de novos interesses econômicos nacionais e internacionais no país.

Mas não sabemos se será um golpe branco.

Uma última observação: foi chocante, para quem vive em São Paulo, ver a imprensa elogiando massivamente as manifestações por serem pacíficas. Para quem viveu o golpe de 64, os gritos, os insultos, os cartazes, o ódio manifesto foi de extrema violência. Foi uma das situações de maior violência que vi e vivi no país desde minha volta, em 1980. Há sim, violência, nessas manifestações.

Aproveito para recordar que, para vítimas de violência segundo o direito internacional, o que realmente restaura, repara o dano sofrido, é a garantia da não repetição do mal feito, do dano, da violência. Para que as coisas não se repitam é que lutamos todos esses anos. Para isso se fazem mudanças, políticas públicas. Daí o horror de viver novamente a repetição do dano, do mal feito, da violência.

Flávia Schilling – Professora Associada da Faculdade de Educação da USP

[1] Corrupção: ilegalidade intolerável? CPIs e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1991). São Paulo, Editora do IBCCrim, 1999.


Redação

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  1. Os nomes que o Pasquim não deixou que esquecêssemos

    Não tinha edição em que o Pasquim não publicasse, uma nota que fosse, lembrando que no Uruguai havia uma brasileira de apenas 20 anos presa, Flávia Schilling, filha do Paulo Schilling, assessor do Brizola. Até a sua libertação, em abril de 1980 (ficou mais de 7 anos presa), o Pasquim moveu campanha incessante em favor dos presos políticos estrangeiros no Uruguai. Assim como a dupla de militantes uruguaios sequestrada em Porto Alegre e levada para o Uruguai, Lilian Celiberti e Universindo Diaz (falecido em 2012). Toda semana o semanário de Ipanema lembrava esses casos, para não cairem no esquecimento.O Pasquim, na sua condição de nanico e de imprensa alternativa da época, prestou um belo serviço à causa democrática. A aparentemente insuportável igualdade de situações. 

  2. Schilling, Aí Tem História

    Flavia faz jus ao pai, Paulo Schilling, personagem política das mais intensas na história política do Rio Grande do sul, injustamente “esquecido” em São Paulo após a volta do exílio e que nos deixou em 2012, aos 87 anos. Se os petistas responsáveis pelo partido nos últimos vinte anos e pelo governo, de 2002 a 2014, tivessem lido e compreendido a obra principal desse grande brasileiro, “Como Se Coloca a Direita no Poder”, certamente nesse momento, a filha não estaria escrevendo isso e nós não estaríamos no meio dessa crise irresponsável, tropega e lamentável, em que os golpistas mergulharam o país, graças, muito, ao vácuo de poder deixado pela presidente, reeleita por nós a duras penas, em 2014.

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