Sabem a diferença entre rescisória e recurso especial? Tragédia anunciada, por Lenio Luiz Streck

Crônica de uma tragédia anunciada.  Aí vem uma PEC lulocentrista, mas que tem jeito de terraplanismo jurídico. Vou explicar.

do ConJur

Sabem a diferença entre rescisória e recurso especial? Tragédia anunciada

por Lenio Luiz Streck

Crônica de uma tragédia anunciada.  Aí vem uma PEC lulocentrista, mas que tem jeito de terraplanismo jurídico. Vou explicar.

A PEC n. 199/2019 quer eliminar os recursos especiais e extraordinários.  No lugar deles, querem colocar ação rescisória. Qual é o busílis?

Hoje, para interpor REsp, tem de haver algum destes requisitos: contrariedade de tratado ou lei federal ou negativa de vigência desses, julgar valido ato de governo local contestado em face de lei federal e controvérsia jurisprudencial, tudo conforme a CF, artigo 105.

Para um RE, tem de haver algum destes requisitos: quando a decisão contraria a CF, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei de governo local contestado em face da CF e julgar valida lei local contestada em face de lei federal.

E o que é rescisória? Vê-se, de pronto, que estamos em face de ovos e caixa de ovos. Coisas muito diferentes.  Enquanto no Resp ou RE se busca erros de interpretação, nulidades e inconstitucionalidades, na rescisória se busca, transitada em julgado a decisão, enfrentar-encontrar vícios, como prevaricação ou corrupção do juiz, impedimento ou incompetência desse, coação de quem venceu sobre quem perdeu, ofensa à coisa julgada, violação manifesta de norma jurídica, falsidade já declarada ou possibilidade de provar falsidade no bojo da própria rescisória (como isso seria feito em matéria criminal no STJ e STF?), prova nova de cuja existência o autor ignorava e que por si só possibilitava decisão em contrário (essa é fácil, não?)… Também cabe rescisória se a decisão rescindenda for fundada em erro de fato (mole também, não?) e quando a decisão estiver baseada em sumula ou acordão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado um distinguishing. Achou longa a lista de requisitos? Pois é. Alguém já tentou fazer uma rescisória? Vejam a jurisprudência.

Difícil, não? Como passar de um sistema para outro? Mais: a PEC que extermina o REsp e RE será abrangente para os demais ramos, como tributário, cível e quejandos? Ou será só para penal? O patrimônio — do poder público — vale mais que a liberdade — do cidadão? Ora, ora: “liberais” (sic) que não gostam da Constituição e, entre Estado e indivíduo, ficam com o Estado… Mais uma jabuticaba. Liberais fanqueiros. Liberais de fritar bolinhos. Bem, onde se acha que REsp pode virar rescisória, isso é “fichinha”.

Bom, se for para todas as áreas, ficará bem interessante uma decisão de segundo grau terminativa em matéria tributária, que só poderá ser modificada por rescisória (vejam os requisitos para uma rescisória acima elencados…!). E em matéria trabalhista? Paga logo? O governo pagará? Ou não vale para os governos?

E se for só para a área criminal?  Condenação e, pronto: prisão na segunda instância. Assim, direto? Como funcionará a rescisória? Só fatos novos e ainda por cima aqueles que o réu não conhecia? Ministério público poderá fazer rescisória? De novo: Leiam, por favor, os requisitos para uma rescisória e me digam: como isso será possível?

A admissibilidade será feita pelo Tribunal a quo. OK. E caberá agravo para o STJ ou STF? Ou o exame da admissibilidade será por colegiado no Tribunal? Se for só do vice-presidente, será terminativo? E se caber agravo, no STJ ou STF esse será examinado monocraticamente como no caso do REsp e RE, hoje? Imagino o leque de “precedentes” defensivos que serão opostos pelos Tribunais Superiores. (“Precedentes”, leia-se, teses abstratas e prospectivas.)

No caso da matéria cível, o valor decidido no acordão em favor de uma parte já terá que ser pago logo? Haverá caução?

De que modo essas rescisórias serão julgadas nos tribunais superiores? Vejam, de novo, os requisitos (que apenas resumi) da rescisória…!

Ou junto com a PEC será criado um tipo de rescisória “especial”? Uma rescisória diferente? Um REsp que não é mais REsp e agora é rescisória só que a rescisória não é bem rescisória. É uma quase rescisória que era REsp que virou rescisória que já não é mais rescisória.

É a crônica de um caos anunciado. Vão atirar for a água suja com a criança junto. Tudo por uma narrativa. Uma legal fake news. Venderam a ideia de que a decisão nas ADCs proibiu a prisão que eles tanto desejam: a decorrente de decisão de segunda instância.

Já falei aqui e aqui e aqui e aqui e aqui (ufa!) que isso não é assim. Mas não adianta. Para quem acredita que a terra é plana não adianta mostrar a fotografia da terra. As sombras são sombras, denunciava Platão à plebe ignara que estava imersa na caverna.

Hoje a caverna é a rede social. Enfim, a terra é plana. E, pelas fake news, está assentado que o STF proibiu a prisão em segunda instância. Eles acreditam tanto nisso que querem trocar REsp e RE por ação rescisória. Quero ver como vai ficar. Aposto que os parlamentares nunca examinaram os requisitos de um e de outro. E nenhum deles se imagina como réu ou parte perdedora. O inferno sempre são os outros.

Aliás: qual será a opinião da senadora Selma Arruda — chamada de o “Moro de saia” — sobre a possibilidade de recorrer? Acaba de ser cassada pelo TSE por 6 a 1. Mas vai recorrer…ao STF. Não é bom ter recursos? Deltan tentou fazer prescrever seu processo no CNMP usando de todos os recursos possíveis e imagináveis. Pau que lanha as espaldas de Chico, lanhará as espaldas de Francisco?

Aguardemos. Senadores histriônicos e deputados gritões não sabem o que estão fazendo. Mas, será que serão perdoados? Porque o ponto é: dá para perdoar minha tia que manda notícias falsas no whatsapp e não entende nada sobre nada e xinga tudo sobre tudo. Mas dá para perdoar juristas e juízes, e representantes do povo, parlamentares, legisladores, que cedem ao punitivismo e rasgam a CF, rasgam conceitos que a lei e a boa dogmática já sacralizaram na autêntica tradição do Direito? Alô senadora Selma, diz aí! Alô dono das Lojas Havan, quem conhece melhor do que ninguém o valor da presunção da inocência depois de ser condenado a uma pena de mais de 10 anos no TRF4, por lavagem de dinheiro e evasão de divisas (ler aqui.)? Todos sabem o modo como o dono da Havan fala das Instituições, o “apreço” que tem pelo STF, etc. E, graças a muitos recursos (desses recursos tão criticados por senadores como Lasier, Telma, Major Olimpio, etc,) a ação penal contra Hang prescreveu no STJ.  C’est la vie! Ou: “ “Fouet qui frappe le dos de Chico, frappe le dos de Francisco” — versão tupiniquim-francesa do fator “costas lanhadas”.

Sempre disse e repito o que Dworkin já dizia em seus escritos sobre desobediência civil. É um disparate a ideia de que o Direito é o que o Judiciário diz que é. O ponto é que legisladores também não podem dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Ora, o Direito não é um amontoado de leis e precedentes aleatórios. O Direito é um todo coerente. Há um ordenamento, há uma tradição, há princípios que sustentam tudo isso. Tudo isso deve ser respeitado. O legislador tem um importante papel a cumprir; mas não pode dizer que ovos são caixas de ovos.

Última forma: Afora a PEC da qual falei acima, surgiu o projeto aprovado no senado dia 11.12.2019 no Senado — Várias violações! Vejamos.

Nem passou pelo plenário. Drible da vaca na CF e no STF. Porque vejam: o STF decidiu que o artigo 283 é constitucional (ADC 44). À luz da presunção da inocência. Essa decisão vincula. Vincula o Judiciário e vincula o Parlamento, porque a CF e suas cláusulas pétreas são a autoridade a quem respondemos todos que compomos a prática jurídica. Esse é o ponto.

Rasga-se a tradição, rasga-se a CF, rasga-se os conceitos da tradição do Direito, tudo isso a toque de caixa porque “tem que prender o Lula”. Uau. Com inimigos que lhe dão toda essa grandeza de presente, o ex-Presidente nem precisa de muitos amigos.

É incrível isso. Todo esse drible da vaca na CF corre o risco de não passar porque podem não querer mexer no patrimônio. Genial. Para prender o Lula (e a patuleia), vale tudo. Até essa trampa epistêmica. Agora, num país em que “liberais” não gostam de limitação do poder do Estado, é mesmo de se esperar que o patrimônio tenha mais valor que a liberdade.

Como isso vai ser? A ver. Mas que saibam bem o que estão fazendo. E que não se esqueçam:

– O STF nunca proibiu a prisão sequer em primeiro grau (prisões cautelares eram, são, serão possíveis).

– A declaração de constitucionalidade do art. 283 à luz da presunção de inocência vincula.

– Se a CF vincula, e se ela diz o que diz, qualquer tentativa de burlar o sistema tem de ser assim chamada.

Simples assim. By the way: Desculpem-me a insistência garantista: O que pensará a senadora Selma sobre o valor dos recursos? Atenção: Sou a favor da presunção da inocência da ilustre senadora. Presunção para todos. Quem me conhece — e não são poucos — sabe que estou sendo absolutamente sincero (ver aqui minha posição sobre aplicação de garantias)!

Resta saber se o fator “costas lanhadas” de Chicos e Francisco vai servir de lição.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).

Redação

2 Comentários

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  1. Bom dia, Doutor. Eis os “liberais”. Sim, eles que defenderam a escravidão no século XIX; clamaram por e se acumpliciaram com ditaduras no século XX; e em pleno século XXI não dão uma palavra sequer contra violações dos DHs, a não ser quando a boçalidade chega perto do lombo deles, caso contrário, não estão nem aí.

    Eis os “liberais”…

  2. Esse Cabra é bom. Tô pensando em nomeá-lo Ministro da Justiça da parte Leste da Via-Láctea. Estou partindo em viagem temporal para efetivá-lo no posto.

    Vão ter que respeitar a liberdade não por amor à liberdade, mas por amor ao patrimônio.

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