Sambas e afins – para ouvir na quarentena (II), por Walnice Nogueira Galvão 

Tipicamente masculinas,  uma contradição é colocada entre o lar e a vida na boemia, mostrando posições muito conservadoras – aliás, a nota dominante nestes sambas em que a “dor-de-cotovelo” brada mais alto.

Foto Patricia Voss

Sambas e afins – para ouvir na quarentena (II)

por Walnice Nogueira Galvão 

Tensões entre a intimidade e o vasto mundo: lar x boemia

Brasa (Lupicínio Rodrigues)

A volta do boêmio (Adelino Moreira)

Quem há de dizer (Lupicínio Rodrigues)

A dama do cabaré (Noel Rosa)

A mulher que ficou na taça (Orestes Barbosa e Francisco Alves)

Se você jurar (Ismael Silva)

Ronda (Paulo Vanzolini)

Trem das onze (Adoniran Barbosa)

Com açúcar, com afeto (Chico Buarque)

Tipicamente masculinas,  uma contradição é colocada entre o lar e a vida na boemia, mostrando posições muito conservadoras – aliás, a nota dominante nestes sambas em que a “dor-de-cotovelo” brada mais alto. Dos mais explícitos é Brasa, de Lupicínio Rodrigues, que atribui toda a culpa à esposa briguenta e desagradável. O marido lhe diz sem rodeios que se ela amansasse ele nem sequer sairia de casa. E a compara às “mulheres da rua”, que sabem melhor agradar – razão suficiente para justificar as noites passadas na farra.

Não menos machista é A volta do boêmio, de Adelino Moreira, que sabe lidar com as sutilezas do tema da “volta”.  Pois há mais de uma nesse samba, e com sentidos diferentes. O boêmio abandonou a boemia e escolheu o lar. Mas hoje voltou à boemia porque a mulher lhe deu permissão. E aí vem a chave de ouro: ela declara com orgulho que é a segunda em seus afetos, logo depois da boemia, e por isso está segura de sua volta.

Em Quem há de dizer, outra composição do mestre desse gênero, Lupicínio Rodrigues, o narrador olha de cima para o passado em que era apaixonado pela mulher que ora circula pelos bares da noite, evidentemente na pior decadência. Sem explicitar,  o samba exala superioridade,  ressentimento  e vingança mal sopitada. Serve para apaziguar o ego ferido.
…..

A dama do cabaré – O inigualável Noel Rosa era chegado às damas da noite em sua vida de boêmio, pois quase todo o seu trabalho era noturno, tocando violão e cantando nos bares e nos cabarés. Dizem que esta “dama do cabaré” não era uma generalização, mas uma muito concreta Ceci, de um cabaré da Lapa, com quem ele manteve uma turbulenta relação de vários anos. Não falta o toque de humor típico do autor.

A mulher que ficou na taça descreve uma visão do homem que na bebida busca consolo pela rejeição que sofreu. Embora cercado por outras mulheres, ele só quer aquela, que ele “vê” quando se materializa dentro da taça de bebida e que o faz beber ainda mais. O grande letrista parnasiano Orestes Barbosa faz das suas mais uma vez.

 Se você jurar apimenta com uma muito necessária nota de humor todo esse dramalhão machista da “dor de cotovelo”. Só com muitas garantias da amada, e ainda assim no modo dubidativo (Se…), o narrador poderia se regenerar, porque, do contrário, “a orgia assim não vou deixar”.

 Ronda inverte inesperadamente o ângulo de visão, fazendo da mulher traída a narradora. Não mais um macho ferido em sua vaidade buscando retaliação, mas uma mulher procurando na boemia  seu homem, com a intenção, que só fica clara no último verso, de lavar sua honra com sangue. Uma notável inversão do lugar-comum.

 Trem das onze mostra que subjaz ao casal um surpreendente triângulo, introduzindo um elemento edipiano na relação. O narrador, morador do subúrbio, desculpa-se por ser obrigado a alcançar o último trem, pois sua mãe não dorme enquanto ele não chega – ele, o filho único.

A exemplo de Ronda, Com açúcar, com afeto opera uma inversão e oferece o ponto de vista da mulher que fica em casa, enquanto o cabeça do casal se diverte na boemia. Mas com resultados pacíficos, não sanguinários. Ela vai imaginariamente compartilhando as situações que ele vive de fato, com pertinência e graça – a conversa de botequim, a bebida que jorra, os amigos de ocasião – e conclui pelo perdão, quando ele volta para casa.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador