Crer e destruir – tentando entender um retrocesso histórico, por Marcos Dantas

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Obra de Salvador Dali

Crer e destruir – tentando entender um retrocesso histórico

por Marcos Dantas

Historiadores atuais, com obras publicadas na última década do século XX ou nos primeiros anos deste século, estão nos dando uma resposta que a muitos parecerá desconfortável, a uma velha pergunta de senso comum: “como pôde um tipo como Hitler convencer e conduzir para os caminhos que conduziu um povo tão culto e civilizado como o alemão?” A resposta: ele não precisou convencer ninguém. Pelo contrário, uma parcela expressiva daquela sociedade já estava predisposta a ser convencida. Hitler e seus sequazes foram um produto dela. Ele foi apenas o político mais competente dentre tantos que com ele competiam, nos anos 1920-1930, para levar a Alemanha ao caminho que levou. E esse caminho era desejado, mais ou menos conscientemente, mais ou menos inconscientemente, por uma grande parcela da população e por amplos segmentos de suas elites intelectuais, inclusive juristas, engenheiros, economistas, filósofos, artistas. Muitos podiam até expressar certo  mal estar diante dos métodos vulgares, tipicamente lúmpens, de Hitler e seus bandidos das SSAA, mas todos a ele acabariam aderindo depois que emergiu definitivamente vitorioso, em janeiro de 1933.

Obras como Crer e Destruir, de Christian Ingrao (Jorge Zahar Editor, 2015), Hitler (Companhia das Letras, 2010) ou O fim do Terceiro Reich (Companhia das Letras, 2015), ambas de Ian Kershaw, entre outras, são aterradoras. Ingrao, em especial, pesquisou a origem e formação dos oficiais da SS, especialmente de seu departamento conhecido pela sigla SD. Além dele, a leitura do extraordinário romance histórico <em>As Benevolentes</em>, de Jonathan Littel (Objetiva, 2007), já suscitara a espantosa constatação de ser a oficialidade SS constituída por homens (não havia mulheres) de elevada formação técnica e cultural. Entre si, conversavam nos encontros sociais, em tom coloquial, sobre filosofia, literatura, história, música clássica (até citariam tranquilamente Dostoievski, se não tivessem ojeriza aos eslavos). E, no trabalho, executavam tarefas bestiais com absoluta naturalidade e convicção.

Ingrao nos esclarece. Crianças, eram filhos de famílias e relações de amizade traumatizadas pela Primeira Guerra Mundial. Todos tiveram o pai, ou tios, ou irmãos, ou vizinhos, ou parentes de coleguinhas, mortos ou inválidos devido à Guerra. Adolescentes, testemunharam a humilhação da Alemanha vencida e seus pesados custos para a população. Jovens universitários vão militar política ou culturalmente a favor do ressurgimento da Alemanha. Como é normal nessa fase testosterônica da vida, essa militância é ativa, agressiva, não raro violenta. Começam aí a se formar os afetos e subjetividades dos homens que, anos depois, em 1940-1941, comandarão diretamente os massacres de milhões de russos e judeus na Frente Oriental.

Estudantes universitários, como é normal, se orientam por teorias e aprimoram teorias. Os futuros “intelectuais SS”, como os denomina Ingrao, identificavam-se com teorias racialistas oriundas do século XIX e, já nas suas monografias de fim de graduação, ou depois, nos projetos de mestrado e doutorado, avançarão pesquisas e teses que pretendiam confirmar, aprimorar, evoluir aquelas teorias. O racialismo – ontem, como hoje – pretendia-se ciência. Entre seus teóricos, encontravam-se o etnólogo Hans Günther ou o biólogo Heinz Weismann, fontes paradigmáticas, entre outras, de suas dissertações e teses. Com base no determinismo racial, fundamento de todo racialismo (ontem como hoje), explicavam a história, a geografia, os conflitos sociais, até mesmo a economia ou as ciências naturais.

Thomas Kuhn já explicou que toda teoria científica, por mais racional, lógica e empiricamente evidente que seja, se apóia em alguma estrutura profunda de crenças e valores culturais e sociais que conduzem subjetivamente, não raro inconscientemente, as escolhas do objeto e dos métodos de pesquisa dos cientistas e acadêmicos. O racialismo cientificizado vinha ao encontro de crenças introjetadas no subconsciente daqueles jovens que, daí, não apenas irão aprofundar seus estudos na mesma linha, como dedicarão suas vidas à reafirmação e comprovação de suas teses. A crença primária os conduzirá à destruição racionalmente consciente, cientificamente legitimada, de um mundo de “inimigos”, sustenta Ingrao.

É que num mundo formado por raças antagônicas embora, não raro, “mestiças”, a nórdica destacava-se como a mais “pura” e, ao mesmo tempo, a mais ameaçada pelo cerco das demais. O racialismo é sempre vitimista. Os nórdicos alemães travavam há mil anos uma dura luta de sobrevivência contra eslavos no Leste e os mediterrâneos no Sul e no Oeste. Para efeitos populares, Hitler (que lera Gunther) iria simplificar tais sofisticados argumentos (pretensamente) científicos, esbravejando que os alemães eram vítimas de traidores judeus e bolcheviques (também judeus…). E encontraria vastos ouvidos abertos à sua prédica, tal a difusão na Alemanha dos anos 1920-1930 de um generalizado senso comum volkish, palavra que significava identificação cultural com uma certa “germanidade”, seus mitos e símbolos. O NSDAP (Partido Nazista), no início, como nos mostra detalhadamente Ian Kershaw em Hitler, era apenas mais um de dezenas de outros grupelhos partidários, sociedades ou milícias volkish espalhados por toda a Alemanha. Acabou impondo-se aos demais nas urnas ou nas ruas.

A convergência da sofisticada Academia com o lumpensinato nazista se dará na SS, mais particularmente no SD. A tropa fora criada para ser um corpo de elite garantindo a segurança pessoal do Führer. Seu Chefe Heinrich Himmler e seu braço direito Reinhard Heydrich organizarão, em 1931, um departamento de inteligência, o Sicherheitsdienst (SD), renomeado, em 1939, RSHA (acrônimo alemão para Escritório Central de Segurança do Reich). Na estrutura do SD/RSHA encontravam-se os “escritórios” de informação, análise, inteligência, documentação, assim como também as temidas polícias política (Gestapo) e criminal (Kripo). O controle dos campos de extermínio, porém, ficaria a cargo de outro departamento, distinto do SD, criado já depois de iniciada a Segunda Guerra.

É para as atividades de informação e inteligência que Heindrich começará a recrutar os jovens universitários que mais se destacavam na formulação teórica do pensamento germanista e na ação prática de combate aos “inimigos” do povo alemão: os comunistas, os social-democratas, os liberais e, nas regiões de fronteira, os franceses, os poloneses, os tchecos. Além dos judeus. Ingrao estudou a trajetória de 80 desses homens que a Guerra encontrou entre os 30 a 40 e poucos anos de idade, com base nos processos judiciais aos quais quase todos foram submetidos depois da Guerra, também numa vasta documentação que veio sendo liberada pelos diferentes países aliados ao longo dos anos, além da enorme literatura histórica e muitos relatos biográficos produzidos por todo esse tempo, boa parte em alemão. No seu livro, a história do nazismo e da Guerra ultrapassa os limites das “grandes narrativas” centradas nas principais lideranças do NSDAP e da Wehrmacht, Hitler acima de todas, e inclui personagens raramente citados mas nem por isto menos decisivos, responsáveis diretos por tornar aquela tragédia possível pois foram os que a planejaram e conscientemente executaram: Walter Schellemberg (personagem também importante no romance histórico de Littel), Otto Ohlendorf (também personagem de Littel), Georg Mehlhorn, Hans Ehlich, Erich Ehrlinger, Werner Best, Hermann Behrends, Franz Six, Albert Rapp, Walter Blume e tantos outros.

Formaram-se em prestigiosas universidades: Heidelberg, Leipzig, Konigsberg, Bonn etc., com professores e orientadores que estimulavam e legitimavam suas visões racialistas. Eram, na maioria, advogados, mas também economistas, geógrafos, historiadores, linguistas, alguns médicos, engenheiros ou arquitetos. Uma vez à frente do SD/RSHA, tiveram em mãos não apenas recursos materiais e pessoais para avançar ainda mais investigações que “confirmavam” suas teses racialistas, como também meios para vigiar estritamente o conjunto da população alemã, perscrutar seus humores ao longo da guerra, vigiar e punir o que ainda restava de resistência na Alemanha à ditadura nazista. Um de seus feitos foi o planejamento e execução da “noite das facas longas”, o massacre, por tropas SS, da cúpula SA reunida num congresso orgiástico, em junho de 1934. Quando Hitler precisou se livrar da tropa de lúmpens que atrapalhava a sua aceitação pela burguesia alemã e pela alta oficialidade do Exército, os elitistas “intelectuais SS” souberam cumprir a tarefa. A Justiça aceitou como legais “na qualidade de defesa de emergência do Estado”, os mais de cem puro e simples assassinatos cometidos nesses dias. Um dos mais importantes juristas alemães, Carl Schmitt, teórico do Estado autoritário e da Justiça de exceção, publicou um artigo com o título “O Führer salvou o Direito” (citado por Kershaw em Hitler).

Já constituindo firmemente o alicerce estrutural do poder nazista na Alemanha, não só policial mas da própria elaboração e condução de políticas públicas, os “intelectuais da SS” iriam planejar criteriosamente o destino do Leste europeu a partir da invasão da Polônia, em 1939. Ehlich, Ohlendorf e seus comparsas elaboraram um “Generalplan Ost” (Plano Geral do Leste) que previa, em detalhes, a ocupação das vastas planícies polonesas e russas por cerca de 8,9 milhões de alemães. Escritórios de arquitetura planejaram e chegaram a desenhar as vilas que nucleariam o processo de ocupação. Eles viam no Leste, escreveu Ingrao, “a chance única de construir, partindo do zero, a sociedade ideal que decorre do determinismo racial”.

Só tinha um problema: por óbvio, o Leste já estava ocupado por grande população. Havia uma solução: esvaziá-lo. Cerca de 35 milhões de pessoas poderiam ser “realocadas” para além dos montes Urais. Outras 12,9 milhões precisariam ser fisicamente eliminadas. Sim, o genocídio não resultou de um paroxismo de guerra executado por indivíduos desumanos cumprindo ordens de um Führer ensandecido. Foi friamente planejado e calculado nos escritórios do SD/RSHA, em Berlim, e executado sob o comando direto dos mesmos homens que o planejaram, como que unindo a teoria à prática. Quase todos eles, de alguns meses a mais de um ano, cumpriram um “estágio”, por assim dizer, na Frente Oriental, seja para dar “exemplo” às tropas horripiladas, seja para acumular pontos na carreira que imaginavam poder seguir depois da Guerra. Quase todos eles, além de comandar os pelotões de fuzilamento ou enforcamento, executaram a tiros, com as próprias mãos, algumas das suas infelizes vítimas: pessoas comuns, não combatentes, comerciantes, operários, agricultores, homens, mulheres e crianças, colhidos no meio da barbárie. Na grande maioria, judeus. Eles tinham plena consciência do tamanho do crime. Himmler falou em alguma reunião que estavam “escrevendo uma página gloriosa de nossa história que jamais deverá ser escrita” (citado por Kershaw, em Hitler). Uma página a ser mantida em eterno segredo. À frente dos massacres, Walter Blume chegou a dizer para suas tropas: “Que Deus proteja aquele que eu pilhar lá sentindo prazer com a tarefa”. Era apenas um “terrível” trabalho que precisava ser feito mas que não deveria deixar ninguém feliz. No entanto, é verdade, alguns sentiam doentio prazer sádico à frente das matanças… Já vinham se preparando subconscientemente para isso desde os tempos escolares, ou mesmo desde a traumatizada infância.

Estamos no mesmo caminho?

O nazismo foi obra de uma geração nascida, criada, amadurecida num dado contexto histórico, com suas crenças, conceitos e preconceitos. Das entranhas dessa sociedade surgiram os homens (e também mulheres) que se imbuíram da tarefa e levar aquelas crenças, conceitos, preconceitos à prática, dentre eles, acima de todos, Hitler. Os contemporâneos dos fatos, as milhões e milhões de pessoas que com os fatos convivem e se ajustam aos seus efeitos em suas anônimas vidas cotidianas, normalmente atribuem esses efeitos, positivos ou negativos, aos atos dos indivíduos que parecem tê-los produzidos, muito dificilmente buscando entender os contextos maiores, não raro obscuros, em que se inserem. Esta, a rigor, pode ser a tarefa dos cientistas sociais mas mesmo estes, normalmente, também terão certa dificuldade para escapar ao círculo de giz das suas próprias crenças e valores conforme estas se manifestam conflitivamente na sociedade real em que vivem.

Ler autores que, pesquisando e escrevendo mais de meio século depois dos acontecimentos, distantes das paixões da época (mas nos termos dos julgamentos de hoje), e com acesso a uma documentação ainda não disponível até 20 ou 30 anos atrás, assim nos revelando relações sociais e culturais profundas que, nos anos 1920-1930, permitiram a ascensão do nazismo na Alemanha, lê-los faz-nos meditar sobre o que pode estar acontecendo no Brasil de hoje. Se, na superfície dos fatos, as realidades são muito distintas no tempo e no espaço, o que entenderíamos se pudéssemos mergulhar nas profundezas da cultura ou mesmo da alma brasileiras quase nada iluminadas aos olhos dos observadores coetâneos? Alguma resposta a esta pergunta somente será dada – se o for – pelos historiadores do futuro. Há que investigar elementos sequer perceptíveis por nós agora, testemunhas que somos, ou mesmo atores, menos ou mais proeminentes, dos fatos presentes, conforme produzidos pelos indivíduos que se põem, na política, na ciência, nas artes ou na indústria cultural, em condição de produzi-los. Podemos enxergar e reagir apenas àquilo que está ao nosso limitado alcance enxergar e reagir, e normalmente também pelos filtros de nossas próprias crenças, desejos, opções políticas, culturais, até mesmo epistemológicas.

A pergunta é: que sociedade é esta que produz tipos como Cristiane Brasil, Rosângela Moro, Daniela Kreling Lau, Marcelo Bretas, tantas outras e outros que frequentam o noticiário recente e estão, de um modo ou outro, influenciando os rumos do País? Certamente eles não chegaram ao proscênio da noite para o dia. A arrogância despudorada, a total desfaçatez e achincalhe como respondem a seus muito justamente perplexos críticos, a ausência completa de senso de medidas e de compostura, sem falar, claro, do desamor ao Brasil e a seu povo, tudo isso amplamente divulgado pela chamada “mídia” quase que como algo tão natural quanto o morro do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, exibem uma formação e uma educação que precisam ser explicadas nas condições vivenciadas pela sociedade brasileira nos últimos 30 ou 40 anos. Trata-se de uma geração formada depois da Constituição de 1988. Como uma sociedade que se pensava democrática, estatuída pela ordem do direito, deu origem a uma geração de magistrados e outras personalidades tão fascistóides, obscurantistas, atrabiliários, além do mais movidos por um profundo sentimento, talvez pouco consciente até para eles mesmos, de destruição de tudo o que sucessivas gerações de brasileiros e brasileiras construíram, não apenas nos últimos 13 ou mesmo 30 anos, mas nos últimos 50 a 70 anos de  nossa história?

Como se formaram esses personagens? Em que escolas e faculdades estudaram, com que professores e professoras? O quê se conversava em seus ambientes familiares? Que livros leram? Que filmes e programas de televisão costumavam assistir quando crianças e jovens? Que imagem de Brasil interiorizaram no inconsciente, se é que interiorizaram alguma? Que projeto de país formularam em suas mentes? Formularam? Obviamente, não será um artigo de jornal que poderá responder a essas perguntas, nem mesmo esta tarefa estaria à altura da competência deste escriba.

Deixemos no ar algumas hipóteses.

Observe-se as tão enaltecidas “redes sociais”. O povo que nelas se manifesta politicamente (o povo mesmo, não o pessoal politizado de esquerda) não é absolutamente capaz de formular algum raciocínio além de xingamentos em linguagem chula. É esse povo que dá suporte social aos Moro e Dallagnol. É esse povo que vota nos Crivella, nos Dória, nos Picciani, nos Russomanos, nos Marun, nos Magno Malta, nos Marco Feliciano (para citar metonimicamente alguns), agora tende também a Bolsonaro. A linguagem é lúmpem. Suas ocupações e empregos são precários. Expressam, na violência verbal, ante-sala da física, tão somente seus ressentimentos e recalques. “O inferno são os outros”, dizia Sartre. O “outro”, no Brasil, é a “esquerda” ou o “PT”. As próximas eleições, este ano, dirão se não estamos às vésperas de uma “noite dos cristais”, aquela, em novembro de 1938, quando residências, lojas, sinagogas judias, além claro das pessoas, foram pilhadas, destruídas, agredidas, até assassinadas nas ruas de toda a Alemanha por nazistas ensandecidos, sob aplausos ou indiferença da restante população.

Não contando (felizmente) com um demagogo genial como Hitler, essa nossa elite nada intelectual dos Kim Kataguiri, Rodrigo Constantino, Flavio Rocha et caterva, imagina a solução num indivíduo como Luciano Huck. Produto da Globo? Dialeticamente, não. Huck, Faustão, Ana Maria Braga, William Bonner, também Silvio Santos, Datena, outros tantos e tantas, não existiriam, assim como Hitler, Goebels ou os “intelectuais SS” na Alemanha dos anos 1920-1930, se não existisse um povo disposto a lhes dar ouvidos e a pensar indigentemente com eles. Como já explicou Martin-Barbero, os “intelectuais” da indústria cultural (aqui parodiando Ingrao) reproduzem em seus espetáculos, as experiências e vivências cotidianas de seus públicos, seus pequenos dramas, seus pequenos anseios, suas dificuldades ou eventuais sucessos individuais ou familiares no dia a dia da dura vida. Falam do mundo real, do mundo realmente sentido, como é sentido, pelo povo. Reproduzem no imaginário da telinha, a imagem do senso comum. Diga-se, aliás, que o sucesso de Lula deve muito a seu intuitivo discurso também estritamente relacionado à vivência do povão. Não por acaso, Lula muito apela para a sua experiência de vida: afinal identifica-se genuinamente à experiência vivida da grande maioria. Por isto também, seu inegável sucesso é quase solitário na Esquerda. É capaz de elegê-lo presidente mas não de lhe permitir formar uma bancada parlamentar pelo menos próxima a alguma sólida maioria com ele politicamente identificada. O povo (o povo mesmo) vota em Lula mas, junto com ele, elege a maioria chantagista corrupta que vai-lhe exigir cargos e “mensalões” em troca de apoio aos seus projetos.

Luciano Huck ou Marcelo Bretas ou ainda Anitta são produtos de grande parcela desta nossa sociedade e não da Globo. A Globo, claro (como o NSDAP no caso alemão), também é produto desta mesma sociedade – aqui, no caso, da sua dimensão capitalista e financeira. Mas diferentemente da sociedade alemã no Entre Guerras, a nossa é uma sociedade na qual a grande maioria da população é funcionalmente analfabeta e cerca de 40% aderiu, nos últimos 30 anos, às seitas evangélicas fundamentalistas. Começando a crescer nos anos 1970, essas seitas já manifestam um claro projeto político unificado de poder e, como confirmam tipos como Bretas, Dallagnol e outros jovens magistrados, lograram penetrar profundamente no Judiciário brasileiro, orientando suas decisões e comportamentos: a crença é a Bíblia, não a Constituição. Até onde, também, essas seitas já são determinantes nas orientações didáticas e pedagógicas das pobres escolas públicas brasileiras? Os discursos de nossos jovens jogadores de futebol, após qualquer partida,  delegando à “vontade de Deus” o que deveria ser apenas o resultado positivo ou negativo de suas decisões devido à própria inteligência, competência, treinamento, não estará dizendo nada a nós outros, sobre a (de)formação intelectual que vem recebendo o nosso povo? No Rio de Janeiro, em aliança com milícias e narcoterroristas, essas seitas elegeram Crivella prefeito. Alguém duvida que foram fundamentais, também, na eleição de Dória, em São Paulo? No Congresso nacional e nas casas legislativas estaduais ou municipais, já constituem bancadas fortíssimas que avançam o obscurantista programa “Escola sem partido”. Boa parte da compreensão do que é o Brasil hoje precisará começar entendendo (combativamente) o papel mais ou menos recente das seitas fundamentalistas evangélicas na formação cultural profunda de nossa sociedade. Elas fundamentam as inabaláveis <em>crenças</em> dos Moro e Dallagnol que já estão convictamente <em>destruindo</em> o Brasil.

Naturalmente, nem toda a sociedade está aceitando ou pode aceitar o projeto incivilizado, retrógrado, obscurantista, subalterno no mundo, que nos propõem essas elites nada intelectuais formadas nas últimas décadas (algum dia, historiadores nos dirão como), e que grande parte do lúmpen-precariado apóia. Mas se não quisermos caminhar para o desastre de Weimar, numa repetição da história que não será mera farsa, vai ser necessário preparar-nos para a luta além dos marcos institucionais e dos argumentos da razão. Quando os alemães decentes afinal perceberam o tamanho do tsunami gerado pela aliança (ainda que por um curto mas decisivo período) entre uma elite acadêmica crente num projeto genocida e o lumpensinato mobilizado pelos seus recalques e preconceitos, já era tarde. No Brasil, enquanto Temer cumpre o seu papel de velho Hindenburg, ainda teremos tempo?

Observou Kershaw que o Partido Social-Democrata, então o maior movimento trabalhista da Alemanha ou mesmo da Europa, “fora forçado a um acordo perverso após outro em sua tentativa de sustentar suas tradições legalistas, ao mesmo tempo que esperava evitar o pior. Quando o pior chegou, ele estava mal equipado”. Não se aplicará esta sentença também ao atual PT e outras forças democráticas, incapazes de enxergar as dimensões de uma radical crise social e cultural que se manifesta pelo Brasil a fora, de cima a baixo, de baixo a cima, desde os tiroteios diários nas favelas do Rio ou massacres em presídios até a dominação, por uma corja corrupta, dos Três Poderes em Brasília?  

Já está passando a hora de começar a se equipar para enfrentar e evitar o pior…

Prof. Dr. Marcos Dantas – Professor Titular – Escola de Comunicação da UFRJ

 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

17 Comentários

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  1. crer-e-destruir

    Ressalvados os tempos, já passou da hora. E, infelizmente, o PT não contribuiu para a “alfabetização” política do povo brasileiro, focando a sua prioridade em incluí-lo na sociedade de consumo. Tanto foi assim que uma pesquisa recente ouvindo pessoas que residem próximas à cidade de SP (periferia) afirmam que nunca foram “ouvidas” ou “procuradas” pelos governos federal e municipal do Partido dos Trabalhadores. Ou, se foram, os eventos ocorriam em períodos eleitorais. Onde está a “base” do PT? Onde estão os intelectuais, decisivos para a construção do próprio partido? Que toda Justiça seja feita a Lula, mas o futuro próximo, de médio e de longo prazos não podem se prender às hipotéticas eleições de 2018.

  2. Norbert Elias

    Norbert Elias já tinha dado todas as pistas em Os Alemães, finalizado em 1989.

    O romance As Benevolentes, de Jonathan Littell, é realmente extraordinário.

    Mas, não vejo a Globo cmo “produto dessa sociedade”[brasileira], não. A Globo é produto de arranjos de poder; nasceu, cresceu e se agigantou no ventre de uma ditadura miltar; está inextricavelmente ligada ao núcleo desse poder econômico e politico.

    As projeções de sucesso, inveja, medo, raiva e repulsa no fundo da caverna não são resultado de algo como uma “concorrência perfeita”, não.

  3. NO BRASIL NÃO EXISTE COMPARAÇÃO!

    Porque o próprio governo Dilma contribuiu com sua omissão. Tinha a obrigação de denunciar o golpe e defender-se na CADEIA NACIONAL DE TVS, mas ela optou por apanhar calada, fomentando o ódio e desprezo por parte significativa da população. Porque 97% do povo não acompanha conteúdo político independente na internet, e soube apenas o que a globo contou…

  4. A ERA DA GUERRA

    Brilhante artigo do prof.Marcos DantasAcrescento que Giorgio Agamben nos mostra que malgradas as diferenças,o Estado moderno,seja ele totalitário ou democrático-espetacular(o parlamento é a parte visível desse espetáculo) já estamos desde o Lager(campo de concentração) sob a égide do Estado de Emergência onde a vida nua do homo sacer é seu corolário.

    É o anel de Moebius;O Estado de Direito já pressupõe a sua própria suspensão,tornando-se assim Estado de Exceção,que no fundo é sua verdadeira identidade.

    Não há um só Estado que permita que seja desafiado.O nazi-fascismo foi a radicalização disso.cooptado pelo enorme aporte de capital generosamente dado à Hitler pelos EUA e Inglaterra.

    Os historiadores por vezes,e squecem-se de perguntar de onde veio o dinheiro para a Alemanha falida armar a maior máquina de guerra jamais vista até então.

    1. Os historiadores não esquecem
      Os historiadores não esquecem de se fazer essa pergunta, amigo.
      É que a resposta os obriga a mencionar alguns nomes que, digamos, incomoda muita gente, e fere muitas suscetibilidades.
      Afinal, alguns desses nomes frequentam panteons recheados de benfeitores da humanidade.
      Melhor aceitar que Hitler foi um adventício, o filho do diabo, uma encarnação do Mal, felizmente derrotado.
      E aqueles nomes incômodos podem permanecer em seu devido lugar, sem ser incomodados por pesquisadores abelhudos.

  5. Bravo!

    lumpensinato = lumpesinato

    O melhor texto que li nesse tempo sombrio. Se não é holístico, ou seja, não agrega todas a mazelas que nos trouxe a esse calvário (a geopolítica do império decadente); tampouco pode ser taxado de cartesiano, pois não reduz nossa questão a uma localização geográfica, antes, lança questões de natureza cultural, social e humana. Namaskaara!

  6. Então a solução imediata para

    Então a solução imediata para o Brasil é reconduzir um corrupt@ condenado em segunda instância ao poder? Esse texto é de uma can@lhice sem fim. 

    1. Não entendi, acho que li

      Não entendi, acho que li outro texto. No que li não há referencia a solução nenhuma. Apenas analisa o contexto do nazismo, e o compara levemente ao nosso contexto.

      Mas fazendo um contraponto ao que você diz, posso afirmar que a solução para o país não está na horda de corruptos que o dirigem atualmente, os quais nunca serão sequer investigados, quanto mais julgados.

  7. Essa onda conservadora foi
    Essa onda conservadora foi prevista por mim em 2006. Ela tem origem na desonestidade e na incompetência da esquerda. Certamente vai ficar muito pior pois essa e outras análises mostram que a esquerda continua no mesmo caminho de desonestidade e incompetência. Isso nos joga nos braços da direita.

  8. troll

    O sistema abduziu o meu comentário.

    Ao tentar recuperá-lo me deparei com comentários pagos/trollados.

    Isso só destaca o grande texto do Prof. Marcos Dantas. A presença desses comentários “fake” ou “robóticos” são a comprovação que o prof “pegou na veia”!

    Em outras palavras: Incomodou as SS.

  9. Excelente, mas se me permite…
    Há uma diferença crucial entre Brasil e Alemanha, lá existia uma nação no coração e na mente do seu povo, aqui podemos ver que não existe uma nação chamada Brasil. Aqui temos um atravessamento de interesses internacionais avassaladores, que sempre foram decisivos em nossa história ao longo destes 500 anos. Objetivamente falando, há uma parte da Nação que trabalha deliberadamente contra ela. Esta parte utiliza-se dos fenômenos sociais para concretizar suas intenções, após o que tentam desmobilizá-los. Ocorre que desta vez o fenômeno já escapou de seu controle há muito tempo.
    Jung descreveu como ninguém a tragédia alemã em seu aspecto inconsciente. Seguindo seus passos percebemos que temos sim motivos para muita preocupação em nosso país.

    1. É exatamente esse o ponto, na
      É exatamente esse o ponto, na minha modesta opinião de leigo. Uma nação, e, consequentemente, um Estado que a expresse, só existe em lugares onde a população autóctone, por força de sua própria condição, gerou uma coletividade com pontos mínimos de coesão, que com o tempo ganham robustez, e, eventualmente, unidade.
      Nosso “povo” é resultado de nacionalidades transplantadas para cá, da Europa e da África, sob a égide de uma instituição, a escravidão, que pode gerar tudo, menos um povo com senso de responsabilidade comum, para não falar de solidariedade. Ou começamos do zero, coisa que a chamada “esquerda”, mental e politicamente colonizada pela direita – no que fez apenas reproduzir nossa formação – jamais fez, (a última chance foi em 1989, mas os intelectuais do PT, sucumbindo à ideologia, não viram em Brizola nada além de populismo) ou então vamos ficar eternamente enviuvando da democracia representativa, nos perguntando por que dá certo na Europa e aqui, não.

  10. Texto primoroso.
    Escreveu

    Texto primoroso.

    Escreveu tudo aquilo que eu já sabia, mas não tinha a competência para colocar no papel.

    Só quero fazer um adendo: não vivi a experiência histórica de 1964, por isso não tinha exatamente claro quais eram as condições e possibilidades da esquerda e da direita. Imaginava eu que a direita fosse minimamente civilizada e a esquerda em geral e o PT em particular soubessem como se comportar para manter o poder. 

    Foi um erro estúpido…

    Desde 2013 ficou claro para mim que nossa direita é fascista, não joga e nunca jogou limpo. Ela usa todas as armas para manter e ampliar seus privilégios, pouco se lixa com o país e com seu povo. É o pior e mais estúpidos dos erros confiar nos conservadores brasileiros, dado seu baixo grau civilizatório. São primatas.

    Quanto a esquerda provou ser terrivelmente primária e ingênua, bem como escreveu o professor. Essa ingenuidade nos custou caríssimo.

    Agora sei que não se negocia com os conservadores brasileiros. Deve-se jogar pesado e sujo tendo em vistas um único objetivo: exterminá-los.

  11. …e quando a realidade é tanta, que queremos fugir dela?…
    …e quando a realidade é tanta, que queremos fugir dela?…

    (texto escrito em meu Face após a leitura do artigo do professor Marcos Dantas)
    .
    Esse texto é quase uma “anti-reflexão”, meus amigos. Porque é mais um desabafo do que “pensamentos coordenados e alinhados num artigo”. Traz praticamente apenas dúvidas, questionamentos e “confissões de ignorâncias múltiplas” – é um texto honesto nesse sentido, e acho que alguns se identificarão com ele – a busca pela consciência da realidade, dessa tal lucidez, é um caminho angustiante… Porque? Porque se formos realmente sinceros nessa busca, os depararemos com signos a que não estamos acostumados, coisas de difícil assimilação numa primeira leitura, não estamos habituados a “esgarçar” os limites da mente para forçá-la através da repetição, a apreender aqueles novos signos, preceitos, ideias, conceitos…..
    .
    Todas essas coisas eu senti ao ler o texto “Crer e destruir – tentando entender um retrocesso histórico, por Marcos Dantas” – no GGN, hoje. Ando tão exausto, que nem consegui ler o texto inteiro, bastaram alguns trechos para eu compreender que estava diante de algo simples, mas muito DENSO, e bem acima do que estou acostumado pelo meu baixo conhecimento acadêmico…. E olha que se trata de um assunto que me domina mente e coração nos últimos anos, os que leem meus textos com frequência identificarão isso facilmente….. Nesse aspecto, foi apaixonante ver um mestre falar de coisas que falo como “amador empírico” – a agradável sensação do: “olha como apesar de simples o texto é profundo, cita fontes ricas, alinhava coisas que em você são fragmentos esparsos e angustiantes, se você se esforçar e mergulhar nesses abismos, pode “chegar lá” um dia, formando o esqueleto e o corpo do tema que você quer conhecer e escrever sobre nos próximos anos….”
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    E que tema é esse, do artigo do professor de comunicação da UFRJ, Marcos Dantas? Basicamente, uma tentativa de saber COMO E PORQUE nossa sociedade se tornou o que é, esse horror, esse pântano obscuro, essa mistura de intolerância, fascismo, indiferença social, o mal e as perversidades comendo a sociedade “pelas beiradas”, a ponto de nos tornarmos um espanto vergonhoso aos olhos do mundo….. – Tanto que em seu artigo, Marcos Dantas traz toda uma síntese de quem eram os oficiais da “SS” nazista, como eram altamente cultos, a nata da sociedade alemã naquela época. Compreendemos melhor o conceito da “banalização do mal” de Hannah Arendt, compreendemos o que se sucede no Brasil de hoje e em várias partes do mundo, é um “banho de lucidez e conscientização” novos à disposição dos que estão nessa busca…
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    Porque essa minha “anti-reflexão” afinal? Apenas para REAFIRMAR a necessidade premente de aprendermos com essa turma de articulistas e intelectuais brasileiros que têm feito um trabalho DIGNO E BRILHANTE, numa forma de LUTA sim, que é trazer a realidade à luz do conhecimento, das ideias, porque se não entendemos os “comos e porquês”, a História se repete como FARSA, como tragédia e comédia dantescos, e jamais sairemos dessa condição perversa, sórdida, DESUMANA CONDIÇÃO, de sermos uma das nações que causa ao seu próprio povo a fome, a morte por causas “prosaicas” como diarréia e outras doenças decorrentes do descaso de nossos governantes e de nossa sociedade pouco atingida por essas precariedades, esse Brasil narcísico, egoísta, amesquinhado, que “não quer saber de política”, hipócritas, pois “querem saber de política” se é o caso de achincalhar e odiar homens de quem têm nojo como Lula, ou deporem uma presidente como Dilma para jogarem o poder nas mãos da mais canalha das quadrilhas – PMDB e os “respeitáveis” tucanos, que essa turba tanto admira e vota neles em massa…..
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    PRECISAMOS compreender o que é uma rede Globo, um Moro, um Dallagnoll, os três desembargadores paupérrimos em ética, dignidade e conhecimento jurídico, para exaltarem e concordarem com a sentença criminosa de Moro, condenando Lula num processo além do que Kafka seria capaz de imaginar.
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    É CONHECENDO O MAL, seus fatores, sua forma de pensar, sentir, agir, que podemos combatê-lo mais eficazmente – que o diga a ingenuidade poliana de Lula e Dilma, acreditando no “republicanismo” dessas autoridades, que destroçaram nossa democracia, depuseram uma presidente eleita, tiraram Lula da eleição, nada faz crer que não o jogarão na cadeia, enquanto permitem todo o desmonte do Brasil, seu fatiamento e entrega às potências estrangeiras, o momento mais perigoso e fatídico de nossa História em 500 anos.
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    Repito a pergunta-título dessa “anti-reflexão”:
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    “…e quando a realidade é tanta, que queremos fugir dela?…”
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    Respiramos fundo, recuperamos as forças e insistimos, cientes de que lutar sem consciência da realidade é “dar socos a esmo”, é quase o mesmo que não lutar……
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    À lucidez, ao conhecimento, às reflexões que nos façam saber o país que somos, e como combater essa gente canalha que hoje nos desfigura e humilha, enquanto nação NÃO-civilizada – e compreendermos o papel de nossa elite e classe média nessa guerra que hoje vivemos.
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    A luta de classes hoje, no Brasil, é nossa REALIDADE mais evidente. Apreender todos os significados que envolvem essa luta, deve ser a prioridade de todos nós, os inconformados com a destruição do nosso país.
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    (eduardo ramos)

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