Entrevista: Omar García, sobrevivente do massacre no México

Jornal GGN – O OperaMundi entrevistou um sobrevivente do massacre de 26 de setembro, no México. Para ele, a escola Isidro Burgos de Ayotzinapa está na mira dos poderosos por sua incapacidade de se conformar com o que está posto.

“Esse é o problema que o governo tem conosco: que alguns maltrapilhos, camponeses, miseráveis, desafortunados estudantes que vêm do campo, lhes digam em sua cara que são uns corruptos, que são assassinos, que estão vendendo o país, que se beneficiam à custa do trabalho de milhões de pessoas no México”, disse.

“Creio que a versão do governo para cortar a garganta de todos é, da mesma forma, nos pintar como delinquentes”.

Massacre no México: ‘Meu nome é Omar García e sou sobrevivente de 26 de setembro’

Por Federico Mastrogiovanni

Para o OperaMundi

Omar García está sentado no banco de um parque de uma região bonita da Cidade do México. Há quatro meses sua vida mudou drasticamente. Estudante do segundo ano da escola normal rural Raúl Isidro Burgos, de Ayotzinapa, no Estado mexicano de Guerrero, Omar se salvou de um dos acontecimentos mais trágicos da história recente do México: o desaparecimento forçado de 43 jovens e o assassinato, por parte da polícia municipal, de outros três, na noite de 26 para 27 de setembro de 2014, no município de Iguala.

Assista trechos da entrevista de Omar García

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Omar lembra dessa noite com a expressão séria, tentando não esquecer nenhum detalhe importante. Insiste sobre um fato: uma escola normal rural não é qualquer escola. São instituições criadas para formar professores que atuem nas áreas mais pobres do México, com currículo politizado e a Raúl Isidro Burgos de Ayotzinapa é ainda mais especial.

O sobrevivente também conta o que está por trás das divergências entre as versões do Estado mexicano e dos amigos e familiares dos seus companheiros estudantes desaparecidos. Leia os principais trechos da entrevista abaixo:

Omar García: ele ‘se salvou’ de desaparecimento forçado de jovens no México

Opera Mundi: O que é uma escola “normal rural”? E o que é a Isidro Burgos de Ayotzinapa?

Omar García: Nossa escola foi fundada em 1926 e sua missão é educar as pessoas de baixos recursos, alfabetizar a população do campo, atender as zonas rurais. Supõe-se que, naquele tempo, tinha o objetivo de integrar os camponeses no projeto de nação que os governos pós-revolucionários [depois da revolução mexicana que, em 1910, derrubou o general Porfirio Diaz do poder] tinham. Nesse caso, era chamá-los, seguindo o discurso deles, “integrá-los à modernidade ao progresso, à civilização”. Com o tempo, o objetivo continuou sendo este, alfabetizar, dando aos camponeses e às pessoas de baixos recursos opções para sobreviver no sistema, nesse tipo de sociedade, inclusive para integrá-los à forma de governo. No entanto, temos visto que as pessoas não entendem.

OM: Qual é a razão de tanta agressividade contra os “ayotzinapos”?

OG: O motivo pelo qual nos atacam, isso posso dizer sem medo de errar, é sermos um tipo de estudante diferente. Porque vemos coisas que a maioria da população não consegue ver e não está em condições de ver, em primeiro lugar. Nossa escola tem um plano de estudos diferente, e não outorgado pela Secretária de Educação Pública. Nossa escola não é uma escola comum, é também uma organização estudantil, e por isso estamos ao alcance de muita gente de fora, temos contato com milhares de pessoas que pensam diferente de nós, inclusive, ou que pensam como nós, e por isso adquirimos uma visão diferente.

É fácil para muita gente se deixar levar pelas versões oficiais porque é a única coisa que escutam. Eu também, antes de entrar na escola normal, era indiferente, era uma pessoa que pensava que as coisas aconteciam por vontade de Deus ou obra do destino ou porque a vida é assim. Mas não, tudo tem suas causas dentro da sociedade. As hierarquias determinam nosso papel e lugar dentro da sociedade. E nós nos negamos a estar sempre subordinados e esse é o problema. Esse é o problema que o governo tem conosco: que alguns maltrapilhos, camponeses, miseráveis, desafortunados estudantes que vêm do campo, lhes digam em sua cara que são uns corruptos, que são assassinos, que estão vendendo o país, que se beneficiam à custa do trabalho de milhões de pessoas no México e que, ainda por cima, além de dizê-lo, quando nos matam, quando nos torturam, quando nos sequestram, quando nos reprimem, no lugar de ficarmos calados, já que no final das contas é esse o objetivo da repressão, não nos calamos e continuamos aqui, e vamos continuar aqui. Vocês vão ver, depois de todo esse processo de busca de nossos companheiros, nós vamos continuar fazendo marchas, nos solidarizando pelos camponeses. Por quê? Porque nós não aprendemos e não vamos aprender, porque não queremos aprender isso que eles querem nos ensinar. Não vamos aprender a estar ajoelhados, não vamos aprender a estar indefesos. Não nos incutirão a impotência aprendida porque não deixaremos.

OM: O que aconteceu e onde você estava no dia 26 de setembro de 2014?

OG: Pude viver esses acontecimentos. Não todos, pois eu já estava na escola. Sabia que os meus companheiros tinham ido para Iguala. Tínhamos o objetivo de interceptar mais de 20 ônibus para irmos participar da marcha de 2 de outubro, data na qual se relembra o massacre de Tlatelolco de 1968. Imagine, são muitos ônibus e, além disso, é necessário fazer isso muitos dias antes. O que aconteceu foi que, ao chegarem a Iguala pela estrada que vem da Cidade do México, meus companheiros pararam o primeiro ônibus e chegaram a um acordo com o motorista, que iria com os companheiros à escola, mas, para isso, pediu que passassem antes na central. “Bom”, dissemos, “está bem, mas dez companheiros vão junto te acompanhar e voltar contigo. Não podemos confiar que você vá e volte por sua conta”.

Então eles foram até a central, mas o motorista passou a perna neles e os deixou trancados dentro do ônibus. Disse “já venho, esperem-me”, saiu, fechou a porta e não voltou. Ao contrário, começou a fazer um escândalo do lado de fora, a alertar o gerente e os guardas que “aqui há Ayotzinapos”, como ele disse, “que vieram fazer bagunça”.

A partir daí, todos se alertaram e os nossos também, chamaram o restante dos companheiros que tinham ficado na estrada, eram mais de 70, quase 80 pessoas. Chegaram à central, não encontraram o motorista, pediram que abrissem a porta, mas não abriram. Então quebraram a porta, tiraram seus companheiros de lá e decidiram ali mesmo tomar três ônibus, que já iriam mesmo pegar na estrada. Para fazê-lo distribuíram pessoas pelos ônibus, saíram alguns rumo ao centro, pela rota norte, e outros dois pela rota sul. Já neste momento os policiais estavam muito alerta ali na central, havia todo tipo de suposições. Chegaram os policiais, começaram a querer detê-los, os companheiros não acataram, seguiram pela rota norte, se aproximaram do centro. Ali nos disseram que era onde estava a esposa do prefeito, José Luís Abarca, dando seu relatório das atividades do DIF [Sistema Nacional para o Desenvolvimento Integral da Família, por sua sigla em espanhol]. E supuseram que íamos boicotá-la, motivo pelo qual ordenaram que nos detivessem de qualquer maneira. Os policiais começam a disparar e a gritar que parássemos, mas não conseguiram. Não conseguiram deter os companheiros e os perseguiram até quase a saída norte. Bem na esquina, uma patrulha que é do município de Cocula cruzou com eles e os deteve. Tinham uma patrulha de frente atravessada, cinco ou seis patrulhas atrás dela e disparavam sem parar. Desceram para ver o que estava acontecendo, mas os policiais não se importaram, continuaram disparando para o céu e para o chão e, em todos esses disparos, um companheiro, que se chama Aldo Gutiérrez Solano, foi atingido e está hospitalizado, em coma. Foi então que meu companheiro disse “escutem, a polícia está disparando contra nós e já temos um morto.”

OM: E o que aconteceu depois, quando estes seus companheiros pediram ajuda?

OG: Começamos a nos organizar e fomos para Iguala também. Isso aconteceu por volta das 8h30 da manhã. Nós chegamos por volta de 9h30. Depois de tudo o que tinha acontecido nessa primeira etapa, pois bem, estavam os companheiros que tinham ficado ali, guardando os ônibus.  Foi quando caiu o companheiro Aldo, depois disso as patrulhas submeteram os companheiros que iam em um terceiro ônibus. Dos três que iam para a rota norte, o terceiro ia quase cheio de companheiros do primeiro ano. Os policiais já o haviam detido nesse momento e subiam nele. É nesse ponto que levaram a maioria dos nossos companheiros que hoje estão desaparecidos.  Quando chegamos, nos disseram que as patrulhas tinham levado os companheiros. “Os policiais os levaram.” E nós dissemos, bom, tranquilo, amanhã vamos até eles, com certeza os prenderam. E perguntamos pelo companheiro que levou um tiro na cabeça e disseram que ele foi levado para o hospital. Não tinham certeza se estava vivo, mas foi levado para o hospital, motivo pelo qual era preciso buscá-lo também, era necessário ir se certificar.

E não pudemos nos retirar porque não havia nenhuma representação do Ministério Público nem nada para proteger o local, as cápsulas de 9 mm, de R-15, o sangue dos nossos companheiros estava ali e temíamos que os policiais que ainda estavam rondando o local, intimidando, poderiam sumir com as provas. Por isso, pedíamos que chegasse a imprensa para ter evidências do que tinha acontecido. E, bom (sorri), não chegaram. Esse foi o pequeno problema. Chegaram quase às 11h30 para fazer entrevistas e tal, e de novo o tiroteio das onze e meia até a meia-noite. Outra vez se sentiram os disparos.

OM: A versão do governo é que suspeitavam que iam para o discurso da esposa de Abarca em Iguala. Essa explicação tem algum sentido?

OG: Não tem nenhum sentido. Eu não nego que no passado participamos ao lado de muitas organizações, apoiando-as com contingentes ou marchas ou o que seja, mas nesse momento não havia nada. E, ainda que houvesse, desde quando a suspeita é um delito? Não há motivo para que isso tivesse acontecido, e menos ainda para que tenham sumido com nossos companheiros, nem para os assassinarem. Em todo caso, os pais de família foram bem categóricos com as autoridades, com o presidente Enrique Peña Nieto, lhe disseram: “se nossos filhos estavam cometendo um delito, por que não os prenderam?”. As prisões estão aí. É para isso que servem.

OM: O que a Procuradoria Geral de República deveria ter feito para encontrar seus companheiros?

OG: Olhe, quando foi aprovada a reforma das telecomunicações, o presidente Peña Nieto e todos os seus secretários do governo falaram que, no caso de acontecer um sequestro, era possível localizar imediatamente uma pessoa por meio da telefonia celular. Era esse o argumento principal para que essa reforma acontecesse. Muitos diziam que não, que era para nos vigiar, também foi isso, obviamente, mas eles diziam quer eram por motivos de se-gu-ran-ça. Por que, no caso de nossos companheiros, não foi feita a geolocalização ou a retenção de dados? Por que não obrigaram as empresas a entregarem os dados celulares de nossos companheiros desde o momento em que saíram da escola até o último momento onde podem ter estado? Isso lhes daria indícios imediatos de quem os levou e como foram levados. Don Rafael Catarino, o pai de um dos nossos companheiros desaparecidos, procurou pessoas que ele conhece que têm acesso a esse tipo de informação e comprovou que o telefone de seu filho esteve no 27º Batalhão de Iguala. No campo militar. Sabemos que o Exército está envolvido no desaparecimento de nossos companheiros.

OM: Qual é a relação entre a violência e a presença de recursos naturais?

OG: Para tornar possível o despejo, obviamente é necessário meter medo na população, fazê-la acreditar na ideia de que, faça o que fizer, vai sair perdendo, seja por uns seja pelos outros [traficantes ou policiais. Nesse sentido as pessoas aprenderam que não é somente o governo que vai matá-las, mas qualquer outro pode fazer isso e ninguém vai fazer nada para defendê-los ou lhes dar justiça. É o que se viu em Guerrero e acho que é também o que se vê no resto do país e da América Latina, é a mesma política daqueles que atuam impunemente, são sobretudo os que hoje convocam as pessoas da delinquência ou do crime organizado.

Creio que a versão do governo para cortar a garganta de todos é, da mesma forma, nos pintar como delinquentes. E veja como ocorre. Para colocar a mineradora na região de Carrizalillo, quando começava o problema que iam explorar as minas de ouro, começaram a dividir os camponeses e a população e meter medo neles. Por um lado, ofereciam grandes recursos por suas terras: escolas, clínicas, modernidade e, por outro, lhes metiam medo por meio do narcotráfico. Ou seja, para conseguir um projeto esses caras agem com todas as suas ferramentas, ativam todos os seus mecanismos para conseguir que as pessoas se submetam e, no final das contas, terminem entregando suas terras e as minas para que as empresas transnacionais, sejam hidrelétricas, de petróleo ou de gás, terminem se estabelecendo no nosso país.

OM: Uma coisa que me chama muito a atenção é que você sempre fala em “nós” e não em “eu”.

OG: É precisamente disso que eles têm medo. De que serve cortar a cabeça de Omar García se atrás dele há muitos outros, se a nossa organização não é dessas organizações estudantis que têm dirigentes permanentes durante anos? Ou como uma classe política que se perpetua no poder, como personagem, mas no final das contas os que mandam são os de sempre. Não, não, não. Nós somos muitas e muitas pessoas. E o “nós” pesa na nossa organização. Nós não acreditamos nas grandes personalidades, no potencial individual, em extremo protagonismo.

Não, assim como eu falo, falam muitos companheiros. E acredito que vocês também viram isso. Assim como as pessoas que aparecem nos meios de comunicação estão determinadas, as outras também estão. E somos substituíveis. E isso é o que queremos para nosso país. Essa forma de organização comunitária na qual o camponês, que é eleito delegado por um ano, no ano seguinte volte a ser camponês e dê oportunidade para outro. Assim a autoridade vai sendo revezada, não como o político que hoje é síndico, amanhã quer ser deputado, depois quer ser senador e jamais volta para o povo. Torna-se parte de uma classe política muito divorciada da sociedade e, portanto, com interesses muito diferentes. Nós não. Nós somos diferentes. E isso é algo de que têm medo, de que nossa visão do mundo se generalize. E de fato se generalizou. Ainda que nos apaguem, creio que o movimento marcou a história da sociedade mexicana. Marcou. Ou seja, o que vão fazer, me pergunto, a partir de agora, para enganar outra vez as pessoas? Mesmo que nós deixemos de fazer alguma coisa, as pessoas não vão ficar cegas. E esse é o problema, e já não é nosso problema, mas é problema seu.

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