O homem que amava as crianças – o Estado, a política e a repressão, por Marcio Sotelo

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Justificando

O homem que amava as crianças – o Estado, a política e a repressão

Por Marcio Sotelo Felippe

Na coluna ContraCorrentes

Eduardo Collen Leite ganhou o apelido de Bacuri porque gostava muito de crianças. Nascido no interior de Minas, técnico em telefonia, ingressou na luta armada contra a ditadura militar logo após servir o exército, por volta de 1967. Militou na POLOP e, depois de passar por outras organizações, pertencia à ALN quando capturado. Ousado, temido pelos órgãos da repressão pela sua coragem, participou dos sequestros do cônsul japonês e do embaixador alemão. Quando sua companheira Denize Crispim foi presa, grávida, telefonou para o comandante do II Exército para dizer que sabia qual era o carro em que o militar ia visitar às escondidas sua amante. Destacava-se pela beleza física e inteligência acima da média. Traído por dois infiltrados na ALN, foi preso em 1970. Sua morte foi a mais bárbara dentre todos os assassinados pela ditadura, e quiçá terá poucos paralelos na História. Passou, sem dar qualquer informação, por 109 dias de tortura. Seu corpo foi entregue à família em um caixão lacrado com os olhos vazados, as orelhas decepadas, todos os dentes quebrados, costelas partidas, cortes, hematomas e queimaduras por todo o corpo.

Mentes capazes de submeter um ser humano a essa barbárie estão por aí passeando com seus cachorros, sorrindo no elevador e pagando contas no banco ao nosso lado. Impunes. Vivem ainda muitos dos que fizeram tais coisas. Há os que, nas circunstâncias propícias, fariam sem piscar, mas vão viver uma vida honesta e tranquila porque o acaso os terá poupado de um lugar no inferno.

À parte a questão da alma de seres humanos dessa natureza, importa tratar do que responde pela barbárie estatal no século XX e que não desapareceu no século XXI, ainda que sob fundamentos às vezes distintos. Da inteligibilidade de fatos como a morte horrenda de Bacuri e de milhões de outras pessoas.  Por que alguém é torturado 109 dias? Por que Estados no século XX mataram milhões de pessoas, inclusive e principalmente seus próprios cidadãos, inventando uma nova guerra, não a de Estados contra Estados, mas a de Estados contra seus cidadãos? 

Remeto o leitor ao capítulo 2 (Doutrina. Guerra Revolucionária) de A Casa da Vovó [i]  do jornalista Marcelo Godoy. O livro tem como subtítulo “Uma biografia do Doi-Codi”. É um precioso trabalho de pesquisa sobre a repressão desencadeada pela ditadura militar.

O capítulo 2 expõe duas ideias chaves, ainda que uma delas não seja suficientemente desenvolvida por Godoy

A primeira é apresentada como a “inversão de Clausewitz”. O teórico militar prussiano dizia que a guerra é a continuação da política por outros meios. A doutrina que Godoy investiga e expõe consiste na inversão do conceito. Foi solidamente estabelecida por teóricos franceses da contrarrevolução no período da Guerra Fria: a política passa a ser a continuação da guerra por outros meios.

No conceito de Clausewitz, a política dá racionalidade instrumental à guerra. Ela a limita a determinados objetivos. Quando a lógica é invertida, a guerra é absoluta e a política é seu apêndice, secundária e subordinada aos interesses de uma guerra ilimitada.

A inversão do conceito de Clausewitz presidiu a lógica de uma nova guerra, a guerra do Estado contra seus próprios cidadãos. O inimigo não é outro Estado, mas parte da sociedade. Não há adversários políticos. Há cidadãos que devem ser exterminados mais ainda de como se mata no campo de batalha, precisam ser torturados e destruídos mesmo quando rendidos, coisas que não são, rigorosamente, elementos da guerra clássica, mas desvios dela. Quando o território é tomado e o inimigo não pode mais resistir, a guerra de Clausewitz acaba. Mas, invertida a lógica de Clausewitz, a guerra é total e seu território é a própria sociedade. Mesmo sem poder resistir, o inimigo é destruído. O Estado não se dedica à tarefa de punir condutas, como a visão clássica e liberal do Estado apregoa. Quer matar.

A segunda ideia chave, que Godoy menciona quase de passagem, explica a primeira. Quando no futuro historiadores tentarem responder ao porquê de tudo, é o que efetivamente dará inteligibilidade ao século XX: o proletariado como agente político. Escravos e servos jamais deixaram a esfera privada. Eram absolutamente subordinados ao mundo da necessidade. No capitalismo, os produtores diretos de bens ingressam na vida pública e têm um projeto político de transformação social. Ou são marxistas ou são anarquistas.

Esse projeto parecia esgotar-se, no século XIX e começo do século XX, em movimentos sociais e reivindicações específicas, preocupantes para a dominação de classe, mas não suficientemente ameaçadoras. Eram reprimidos quando necessários. Erupções de revoltas sociais eram combatidas com erupções de repressão.

No entanto, em 1917 marxistas tomam o Estado russo e põem abaixo as estruturas sociais. Nesse ponto, a história do Estado começa uma inflexão e o mundo jamais será o mesmo. As antigas formas de dominação não bastavam.

Uma resposta imediata foi o fascismo, digamos, “clássico” na Europa. A dominação capitalista apoiada tanto no terror do Estado quanto no manejo das mentes. Para preservar a antiga dominação, extermínio físico sistemático dos adversários políticos e convencimento das massas de que o que não fosse o modo convencional, capitalista, de funcionamento da sociedade era perversidade e doença. A sociedade deveria ser homogeneizada, deveria ser como um organismo, em que tudo funcionasse harmonicamente e aquilo que não estivesse na lógica da funcionalidade orgânica tinha que ser combatido como doença.

No período da Guerra Fria vem outro momento da contrarrevolução. É o que Godoy investiga. Constrói-se a doutrina que vimos aplicada aqui pela ditadura militar, aplicada na Argentina, no Uruguai, no Chile e em tantos outros países:  a Doutrina da Guerra Revolucionária ou Guerra Moderna, de responsabilidade de teóricos franceses:

“Servia para definir um conflito sem regras, como as [regras] da Convenção de Genebra, pois não era travado entre forças beligerantes nacionais. Tratava-se para seus seguidores de uma guerra que começava com a agitação e propaganda ideológica, normalmente marxista, para infiltrar as ideias inimigas na sociedade muito antes de o primeiro tiro ser disparado, o que transformava a luta política em guerra. Ela fugia ao modelo imaginado por Clausewitz de conflitos entre Estados soberanos que procuravam aumentar seu poder e prestígio na comunidade internacional”[ii]

Os franceses põem em prática a doutrina na Argélia para manter a dominação colonial. A tortura e a busca de informações são as armas e o objetivo buscado sem limites. O militar francês Paul Aussaresses, que serviu na Argélia, dizia:” isso me obriga a não raciocinar em termos de moral, mas do ponto de vista da eficiência […] Depois que eles falam [os suspeitos], se eles têm relação com os crimes terroristas, eu os abato.”[iii]

A pesquisa de Godoy mostra que atribui-se erradamente a origem dessa doutrina de guerra aos americanos. Na verdade, os militares franceses a ensinaram aos americanos, portugueses e aos países da América Latina. As Forças Armadas brasileiras a incorporaram e, a serviço da dominação, submeteram a sociedade e a puseram em prática com o golpe de 64.

O conceito de guerra absoluta, que não é travada no campo de batalha, mas na sociedade, explica o que vimos e vivemos na segunda metade do século XX. Nas palavras de Godoy:

“…quem pensa viver uma situação de guerra na praça pública onde se faz a ação política deve enxergar em qualquer dissidente não a diversidade democrática, mas um inimigo. Em vez de a guerra ser a continuação das relações políticas com o complemento de outros meios, as relações políticas que passam a ser a continuação da guerra. O conflito ideológico, a rivalidade entre EUA e URSS, levou teóricos franceses e americanos no pós-guerra a dissolverem a fronteira entre paz e guerra”.

Quem torturou Bacuri barbaramente durante 109 dias?  Quem fuzilou Marighella na alameda Casa Branca, praticamente imobilizado no banco de trás de um fusquinha? Quem torturou até a morte o ex-deputado Rubens Paiva, homem da esquerda não armada vivendo em plena legalidade? Quem matou no Brasil 400 pessoas por execução sumária ou torturadas? Quem prendeu 50 mil pessoas no Brasil? Forçou ao exílio 10 mil pessoas? Baniu 130 pessoas?    

É imperioso, para entender o mundo em que vivemos, para aprender a se defender dele, para tornar eficaz o que a doutrina da Justiça de Transição denomina de princípio da não repetição, estabelecer todos os nexos de causalidade. Dar toda inteligibilidade a tais fatos. Estabelecer responsabilidades intelectuais, morais, jurídicas, políticas. Um homem não é torturado por inacreditáveis 109 dias, tem seus olhos perfurados, seu corpo destruído em vida, porque teve o azar de encontrar pessoas perversas. Mentes perversas estão por aí, e devem ser responsabilizadas, mas é preciso uma rede de fatos, ideias, doutrinas, crenças e convicções para que elas ajam. O livro de Godoy mostra isto com clareza.

Em Julgamento em Nuremberg (Stanley Kramer, 1961) o diálogo final entre o juiz e jurista nazista e o magistrado de Nuremberg é antológico. Quando o primeiro, já condenado, afirma “nós não sabíamos que aquilo [o Holocausto, Auschwitz] ia acontecer”, o segundo responde: “começou a acontecer na primeira vez em que você condenou um homem que sabia inocente”.

                 ***

A ideia de uma guerra sem limites que explica o modo de operar da contrarrevolução aplica-se em outro campo da repressão estatal no Brasil. Nele é, tal qual a política na contrarrevolução, secundário e acessório o Direito Penal:

“A prática genocida da PM nas periferias carrega uma aberração institucional. A classificação “auto de resistência” para definir esses homicídios tornou-se comum. Em 2011, 42% das mortes foram registradas como autos de resistência nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Grande parte deles contra negros.

(…)

“Isso é um entulho da ditadura e continua existindo. No Rio de Janeiro foram analisados 12 mil autos de resistência e 60% deles foram execução pura e simples, muitas com tiro na nuca. Queremos que essas pessoas respondam por homicídio”, disse Paulo Teixeira.

(…)

“Uma pesquisa feita pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com dados oficiais, aponta que o número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a população branca. Os dados revelam que 61% das vítimas da polícia no estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. Já os policiais envolvidos são brancos (79%), sendo 96% da Polícia Militar. Ou seja, o racismo institucionalizado.[iv]

(…)

“Nos últimos anos, nós documentamos muitas situações em que as mortes são verdadeiras execuções extrajudiciais, em que a polícia mata e obstrui a cena do crime, registrando essas mortes como resistências advindas de tiroteios, confrontos”, disse Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights no Brasil.

(…)

“A Human Rights alerta também que a tortura, tanto na abordagem policial, quanto nas cadeias, está presente no país. Segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, entre 2012 e 2014, ocorreram mais de 5,5 mil denúncias sobre esse tipo de crime. Em 84% das situações, os casos de tortura foram reportados quando o preso estava sob a custódia do Estado, em estabelecimentos prisionais, nas ruas, nos centros policiais, em detenção, nas cadeias e delegacias.

“Os métodos utilizados são os mais cruéis que a gente pode identificar, como choque elétrico, espancamento, violência sexual e outros tipos de métodos que, nesse estágio da nossa democracia, a gente não espera que ainda existam”, declarou Maria Laura.”[v]

Como na guerra política, contrarrevolucionária, o Estado aparece aí, para além das sombras da mistificação ideológica, não punindo condutas, mas travando uma guerra, matando e torturando. O Direito Penal aparece como outro modo de travar essa guerra, subsidiário, acessório. Quando o Estado não mata, aplica o Direito Penal.

Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

[i] Era como os que trabalhavam lá denominavam as instalações da rua Tutóia e a explicação para o nome é bastante ilustrativa. A Casa da Vovó é sempre um lugar em que se pode fazer tudo: “lá é que era bom”, explicaram os agentes da ditadura entrevistados.

[ii] A Casa da Vovó, p. 71

[iii] A Casa da Vovó, p. 77

[iv] http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-que-sao-os-autos-de-resistencia-da-pm-e-por-que-eles-tem-de-acabar/

[v] http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/01/fim-do-auto-de-resistencia-poderia-reduzir-mortes-por-acao-policial-defende-ong

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. “O homem que amava as

    O homem que amava as crianças – o Estado, a política e a repressão, por Marcio Sotelo

    a propósito

    O homem que amava os cachorros, por Leonardo Padura na Boitempo Editorial – é um excelente romance histórico policial é tudo verdade que, em alta adrenalina suspense noir cubano, retrata a mesma coisa: o Estado sou eu Stalin, a política e a repressão… e mais os indefectíveis infiltrados traíras invejosos desde sempre… nos idos das revoluções russa e espanhola com culminância explosiva na Segunda Guerra do AA mais os fora de eixo: senador Suplicy / Hitler / Mussolini / Stalin / Churchill / Hirohitosan, né! (seguido da indefectível inexorável inoxidável risadinha amarela de japonês…)

  2. Nossa guerra civil

    A quem interessa realmente que o entulho da ditadura seja enterrado de vez pela vala da justiça ? A ver o fim melancolico que levou as Comissões da Verdades, não sera a atual geração que fara algo concreto. Teremos sempre artigos e livros terriveis sobre o tema e vez em quando algum militar aposentado assassinado misteriosamente, mas a rigor, poucos no Brasil desejam, crêem que os militares mereçam punição pelos crimes cometidos. A policia é terrivelmente violenta porque ainda hoje setores da sociedade avaliza essa violência contra pobres, negros e mestiços. 

  3. pois é, os entulhos continuam

    pois é, os entulhos continuam por aí.

    e parece que a própria justiça não está a fim de jogá-lo no lixo da história….

  4. Esse comentário é para

    Esse comentário é para aqueles que acreditam. Li num livro mediunico uma vez que, o sofrimento daqueles que matam após cometer torturas é inenarrável, são um dos piores crimes que um ser humano pode cometer.

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