“Papai tentou evitar crimes contra a humanidade”, diz filha de general listado pela CNV

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Claudia Maria Madureira de Pinho lamenta o nome do pai na lista de autores de crimes do relatório da Comissão Nacional
 
Geisel recebendo cumprimento
 
Jornal GGN – A filha de um general citado pela Comissão Nacional da Verdade como responsável por crimes contra a humanidade escreve a coluna de O Globo, “Pela memória de meu pai”. Nela, Claudia Maria Madureira de Pinho introduz: “Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los. Foi escolhido para o cargo para isso. Por seu perfil. Era a missão. Acreditava na instituição do Exército”.
 
Pela memória de meu pai
 
De O Globo
 
Por Claudia Maria Madureira de Pinho
 
Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los. Foi escolhido para o cargo para isso. Por seu perfil. Era a missão. Acreditava na instituição do Exército
 
Pouco após o assassinato de Vladimir Herzog dentro de sua cela no DOI-Codi, em São Paulo, o presidente Ernesto Geisel e o ministro do Exército, Sílvio Frota, convocaram meu pai ao Planalto. Desejavam que assumisse o comando do Centro de Informações do Exército, o Ciex. Precisavam de alguém que acabasse com o horror dos porões. Papai, o general Antonio da Silva Campos, não queria o cargo. Em família o pressionamos para que passasse à reserva. Era uma ordem, ele a acatou. (Mantinha o pedido de saída para a reserva pronto na gaveta.) Por conta desta passagem de pouco mais de um ano pelo comando do Ciex, seu nome foi listado entre os 377 responsáveis por crimes contra a humanidade da Comissão da Verdade.
 
O que leva um nome a ser colocado como responsável por crimes contra a humanidade em um relatório oficial? Ele é citado três vezes no documento, todas de forma vaga. Mas está na lista. Os membros da comissão sequer descobriram o ano em que nasceu ou aquele em que morreu. Puseram seu nome entre os responsáveis pelo pior de todos os crimes que um ser humano pode cometer sem, ao menos, ter o respeito, a decência, de buscar saber de quem se tratava.
 
A Geisel e Frota, naquele dia, papai argumentou que não tinha o perfil. Que sua vida no Exército havia sido toda baseada no respeito à Convenção de Genebra. “Quem aceita tocar num fio de cabelo de um preso”, lhes disse, “ainda mais torturar, é um ser doente.” Não eram militares de fato. Eram pessoas “a quem nenhuma ordem é capaz de conter”. Como de fato nenhuma ordem conteve. Durante aquele ano do Ciex, que passou viajando de quartel em quartel tentando impedir a barbárie, perdeu dez quilos.
 
Papai nasceu em família pobre. Sua mãe, imigrante portuguesa, foi uma empregada doméstica que jamais aprendeu a ler. Entrou nas Forças Armadas porque ali poderia estudar, encontrar futuro. Se fez voluntário para combater o fascismo durante a Segunda Guerra. Foi preso e arriscou corte marcial porque se recusava a separar soldados brancos de negros em seu pelotão durante paradas. Contava a história do único homem que soube ter matado, um soldado alemão, na Batalha de Montese. Lance de sorte: sacou mais rápido, disparou. Seguindo as regras, retirou do corpo o cordão de identificação que seria enviado para as forças inimigas e manuseou sua carteira. Lá, encontrou a foto de uma mulher e de um bebê. No meio de um tiroteio, nunca se sabe se uma bala feriu ou matou. Mas, naquele momento, ele soube. Os pesadelos com aquela imagem o perseguiriam pelo resto da vida.
 
Entre seus melhores amigos estavam vários militares cassados pela ditadura. Dentre eles, o brigadeiro Rui Moreira Lima. Estão, como papai, mortos. Não podem vir à frente e depor em seu nome, contar quem foi Antonio da Silva Campos. Mas eu, sua filha, posso.
 
O período da ditadura foi difícil para nós. Eu ia às passeatas pedir a volta da democracia, ele implorava que ficasse em casa. Tinha medo de que, se desaparecesse, não conseguiria me localizar. Ainda tenente-coronel, no fim dos anos 1960, foi responsável direto por um preso político, na Vila Militar. Almoçava com ele. Talvez ainda esteja vivo. Foi libertado e retornou para visitar meu pai.
 
Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los. Foi escolhido para o cargo para isso. Por seu perfil. Era a missão. Acreditava na instituição do Exército. Talvez não devesse. De fato comandou o Ciex em 1976 e 1977. Mas, por honestidade, por integridade, no mínimo por uma questão de decência, antes de listar seu nome entre alguns dos homens mais abjetos que passaram pelas forças militares brasileiras, deviam se informar sobre quem foi.
 
Mas não fizeram, sequer, uma busca no Google.
 
Claudia Maria Madureira de Pinho é filha do general Antonio da Silva Campos, citado pela Comissão da Verdade como responsável por crimes contra a Humanidade
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

16 Comentários

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  1. Ora…

    Se foi designado para acabar com a tortura e não conseguiu (com ordem direta do ditador de plantão e seu títere), só mostra que também era incompetente.

  2. A ser verdade o depoimento da

    A ser verdade o depoimento da filha, e não há nada que aponte ser falso, a CNV tem o dever de vir a público para restabelecer a verdade sobre o militar, sob pena de cair na desmoralização. O texto é muito tocante, será este um caso único de injustiçamento?

    Por que a CNV não convocou parentes dos acusados, especialmente os mortos, para uma oitiva?

    Por que não fez uma divulgação prévia, mas não final, da lista, dando um prazo para que pessoas ou parentes que se sentissem injustiçados se manifestasse?

  3. Louvável e compreensível a

    Louvável e compreensível a defesa da memória do pai pela filha. Será, no entanto crível? Primeiro, pelo interesse em defender o parente tão próximo e, consequentemente, defender a si mesma e a sua família. Segundo, qual filho de militar realmente sabia o que seu pai fazia no quartel durante a ditadura? Em terceiro lugar, é muito comodo hoje acusar a CMV de estar agindo sem com promisso com a verdade. Nenhum torturador, assassino, inimigo da humanidade, vai admitir que realmente agiu como uma besta, muito menos seus familiares. Mas, contra os fatos, não há argumentos. Ele foi comandante do CIEX, de triste memória.

  4.  
    As pessoas envolvidas no

     

    As pessoas envolvidas no difícil trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Certamente,  para reconstituir o obscuro e terrível momento da história brasileira, quando, por largos 21 anos um bando de militares de patente superior, rasgaram, rompendo seus juramentos patrióticos, e se deixam envolver por interesses mesquinhos de grupos econômicos locais e internacionais traindo miseravelmente o povo e o País, ao qual juraram servir. Não matar, torturar, perseguir com mentiras, na vã tentaiva de aliviar a dor e a vergonha de trair.

    Para muitas famílias, as feridas ainda sangram n’alma. Por certo, se confirmado o relatado pela brasileira Claudia Maria Madureira de Pinho,  nada vai impedir, que sejam feitas retificações necessárias para corrigir o grave descuido. Pois, os que buscam a verdade, tem honra, dignidade e humanidade.

    E olhem! Assim como ocorrido em Nuremberg. Aqui também, há muitos cidadãos de colarinho branco, que  não lhes foi cobrado, se apresentar na lista, ora,majoritariamente composta por criminosos de farda. Tá faltado muito nome de barão e seus capachos da caneta. E, de antigos manda-chuvas engravatados da FIESP.  Os cadernos da história contemporânea brasileira, necessitam serem concluidos.  Serão!  Pois, os herdeiros daqueles senhores necessitam arcar com o legado moral, não apenas desfrutar do material.

    Orlando

     

  5. É mais do que normal que uma

    É mais do que normal que uma filha procure defender a memória do pai, mas o relato parece pouco crível, principalmente na história da Segunda Guerra Mundial.

    Caberia melhor investigação, apesar que, após a morte de Herzog, sabe-se que a tortura e a perseguição ao inimigos reais ou imaginários do governo não cessou.

  6. CNV

    Nassif,

    A CNV tem por obrigação informar os motivos pelos quais incluiu este general em seu relatório já capenga.

    Foi oferecido tempo mais do que suficiente para, como diz a filha do general, pesquisar no Google, logo, que agora pesquisem e tragam ao público o que encontrarem, seja lá o que for.  

    1.  
      Tudo muito interessante

       

      Tudo muito interessante Alfredo. De fato, bastaria pesquisar no Google.

      Mas,…assuntando melhor… quem mesmo teria alimentado o senhor Google com os dados e as atividades do moço general?

      Até mesmo, por desconhecer se este gringo, digo, o Google, andava lá pelos porões da ditadura. Quem sabe…e… se o cabra for um contumaz contador de bazófias?

      É por acreditar em tudo que ouve dizer, e pensa vêr, por ter assistido na TV. É que muita rapariga que ousa costear os Rios da Amazônia em noite de lua cheia, se diz engravidada pelo boto cor-de-rosa. Pra quem gosta de mito amazônico, este, é bem mais verossímel que o do mensalão do PT.

      Orlando

      1. Rito amazônico

        Orlando,

        Com ou sem Google, o fato é que prá colocar o nome de alguém naquele relatório, faz-se necessária uma apuração concreta dos fatos, o que patece não ter ocorrido. Se você discorda quanto a isto, não deixa de ser uma opinião.

        Se algo deste tipo tivesse ocorrido com alguém de sua família, num instante o seu ponto de vista seria outro, nem rito amazônico seria suficiente prá te acalmar.

        Taí o caso da Hildegard Angel e seus parentes, situação pavorosa que as pessoas teimam por menosprezar, até porque pimenta no dos outros é refresco.

         

  7. Desde quando a esquerda tem

    Desde quando a esquerda tem algum compromisso com a verdade? rs

    O compromisso da esquerda com a verdade ( como com os direitos humanos ) é apenas e tão somente retórico.

    Tanto é que pessoas que confessadamente executaram ou determinaram execuçoes sumarias ( Che só para ficar em um só nome ) são louvadas como herois.

    Não há a menor razao para a filha do general demonstrar supresa , mas sempre há os ” inocentes ” que acham que essa comissão tenha em algum momento assumido algum compromisso com a verdade, pois como sabemos:

    -VERDADE NAO TEM LADO… 

  8. O parato Buroxrático Militar não era coeso

    Prezados.

    A revelação da verdade nos anos de chumbo será difícil, mas considero que algumas questões deveriam ser respeitadas.

    A tática de “Aberturas Lentas Graduais e Seguras” de Geisel/Golbery era a tentativa de pular fora do processo e nas condições de que escolheriam, quando, como e do jeito que preferissem. Dizer que houve derrubada da ditadura é desconhecer a história.

    A linha política das Aberturas . . .não era a única e muitos burocrata-militares achavam que tinha era que fechar mais, reprimir mais e em maio/1977 fomos os últimos presos políticos torturados e não no DOI CODI do 2º Exército e sim no DEOPS -SP e também no mesmo no DEOPS havia a linha Geisel que queria apenas tomar depoimento, iniciar o processo e enviar à Justiça Militar como haviam feito desde que o general Dilermando retornou o DOI CODI às suas funções originais (O pessoal do PC do B do Massacre da Lapa 1976 foram torturados no 1º Exército), mas a linha Frota que denunciava e acusava que a Abertura . . . estava levando ao retorno dos “comunistas” ao poder venceu e eu e meus companheiros fomos barbaramente torturados e sem a Inteligência do DOI CODI, o que apanhei para dizer onde estavam as armas, foi muito e nunca as utilizei (as de fogo).

    Portanto generalizar os integrantes do Aparato Burocrata Militar é faltar com a verdade e então convido a todos os atores da época, corajosamente se mostrarem e assumirem suas barbaridades e crimes, para não denegrir a sua totalidade de integrantes do Aparato e provocar situações tão emocionantes como a carta dessa senhora.

    Atenciosamente.

    CGBrambilla

  9. “Papai tentou evitar crimes

    “Papai tentou evitar crimes contra a humanidade” – mentira descarada. Os comunistas nunca tiveram condições militares de tomar o poder. Tanto que não houve resistência armada efetiva ao golpe militar, os poucos que resistiram foram impiedosamente massacrados por um exército absolutamente soberano dentro do território brasileira.

    A filhinha do tirano pode choramingar o quanto quiser, pois como dizia Quinto Fábio Máximo “A verdade, embora eclipsada às vezes, nunca morre. ” E a verdade é que o papai dela foi sim um CRIMINOSO. É como CRIMINOSO que ele deve ser tratado pela história. 

     

  10. Autoridade maior no mínimo conivente

    Esse sujeito, como autoridade maior, tinha o poder para abrandar torturas, matanças e crimes cometidos pelo Estado. Foi omisso, conivente e cúmplice das barbáries cometidas pela ditadura. Mais um pulha. Não há justificativa para o que fizeram. Cansamos de ser enganados!

  11. O General Antonio da Silva Campos – um oficial digno e honrado.

    Amigos:

    Numa Ditadura uma acusação pode significa a MORTE,numa DEMOCRACIA uma acusação precisa de PROVAS,JULGAMENTO e finalmente a pena de INOCÊNCIA ou CULPA.

    A Claudia Madureira de Pinho é um pessoa séria e correta – nunca pactuou com a DITADURA e  sua carta é bastante enfática na CONDENAÇÃO DE QUALQUER DITADURA.

    Convivi com a família do General  Antonio da Silva Campos e dou o seguinte depoimento abaixo:

         

    Solidariedade e Justiça!

    Injustiça precisa ser corrigida SEMPRE!
    Minha solidariedade à família do militar honesto,sério,íntegro e que
    nunca fez parte de escória de torturadores,mandante e financiadores de
    terroristas de Estado.
    Me orgulho em tê-lo conhecido, ter convivido e ter sido adotado por
    toda sua família como amigo e irmão dos seus
    filhos:Claudia,Alvaro,Luiz Antonio e Marco Antonio.
    Herói da FEB,respeitado por sua capacidade de comando na frente das
    batalhas, respeitado por onde comandou por atitudes sempre justas e
    corretas.
    O golpe de 64 – vitimou por volta de 1.400 oficiais legalistas das 3
    forças armadas, o General Antonio da Silva Campos, na ATIVA,jamais
    renegou ou julgou seus camaradas de fardas punidos – meu pai Maj
    Brigadeiro Rui Moreira Lima foi um dos que conviveram com o Grande e
    Decente Militar até o fim de sua vida.
    Me lembro como garoto assustado na cruel ditadura de 64 – onde TODO
    MILITAR ERA GORILA E TORTURADOR – aprendi que não era assim – em sua
    casa sempre recebi carinho,amizade e calor humano – só posso retribuir
    com solidariedade e amor que sempre recebi do General Antonio da
    Silva Campos,mulher e sua família.
    Certeza absoluta, a Comissão da Verdade, da qual apoio completamente,
    restabelecerá a VERDADE e JUSTIÇA .a um OFICIAL DIGNO E HONRADO,como
    o General de Divisão Antonio da Silva Campos.
    Sem dúvida meu pai em solidariedade e amizade daria:
    Um Adelphi seguido por um vibrante Senta a Pua,Brasil!!!
    General Antonio da Silva Campos!!!
    Pedro Luiz Moreira Lima

     

  12. “Papai, papai, papai”. Papai

    “Papai, papai, papai”. Papai são criaturinhas doces, não esperamos que levassem “trabalhos” para casa. Nem que falassem do “bicho papão” para seus filhinhos. Alguns são tão doces…que “ATÉ CRIARAM COM AMOR FILHOS QUE SEQUESTRARAM DE OUTROS”.

    “Papai, papai, papai”…são tão fofinhos. Filhinha, já ouviu falar na “TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO”…xííííí!!! “Papou papai”!

  13. O Comandante “tentou impedir a barbárie”…

    “Papai não cometeu crimes contra a humanidade. Tentou evitá-los.” e “passou viajando de quartel em quartel tentando impedir a barbárie”: isso diz tudo…

    Será que alguma das vítimas das torturas perpetradas nos porões do Centro de Informações do Exército ficou sabendo que o Comandante dessa organização criminosa era na verdade um bom pai de família, uma pessoa de bom coração que na verdade era contra a tortura ? 

    E, que atitudes tomou o General quando seus esforços para “impedir a barbárie” falharam ?

    Vale lembrar que o General Antonio da Silva Campos deixou no fundo da gaveta das hipocrisias e conveniências a tal “carta de passagem para a reserva”, porque só foi reformado em Fevereiro de 1983, atingido pela Cota Compulsória quando comandava a 10ª Região Militar.

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