Ser declaradamente de esquerda, por Luis Nassif

O que é ser de esquerda ou direita? Como se todos os temas fossem abarcados por essa dicotomia.

O colega Fábio Zanin publica uma boa matéria sobre a censura que sofri do prefeito bolsonarista de Poços de Caldas. No artigo, para demonstrar a motivação política do prefeito, me enquadra como “declaradamente de esquerda”.

Agradeço a nota de Zanin, mas o “declaradamente de esquerda” dá um bom mote para a discussão do momento: o que é ser de esquerda ou direita? Como se todos os temas fossem abarcados por essa dicotomia.

Talvez seja a confusão maior em que se meteu a humanidade, nesta era de polarizações.

Vamos a alguns temas fundamentais para conceituar ideologicamente as pessoas:

Direitos Humanos – é tema considerado de esquerda. De fato, foi a esquerda que abraçou as grandes teses humanistas.  Mas, e os críticos das políticas identitárias, são de esquerda ou de direita? Conheço vários “progressistas” que consideram que as políticas identitárias (aquelas em que um grupo vulnerável assume sua própria defesa) são estratagemas da direita para enfraquecer a luta maior da emancipação dos vulneráveis. Essa é uma bandeira típica da esquerda radical, mas não apenas. É abraçada por lideranças de direita – como Ciro Gomes – que consideram que desviam o foco da luta por um projeto nacional. E aí? Sou a favor das políticas de direitos humanos, defendo as políticas identitárias e considero que o grande desafio dos estadistas é abrir espaço para essas políticas, mas trazê-las para debaixo de um partido político – sem que percam suas identidades. Sou de esquerda ou direita?

Mercado – há três posições em relação ao mercado. Um esquerdista clássico é contra o mercado, visto como o braço mais vistoso do capitalismo selvagem. O neoliberal trata o mercado como um bezerro sagrado. Alinho-me com aqueles que consideram o mercado essencial para a promoção do desenvolvimento, desde que submetido a regras claras de controle e responsabilidade social e ambiental, e sem a influência que hoje tem sobre a política econômica. Ele tem que ser uma peça de estratégias de desenvolvimento integral apresentado pelo governo. Como fico? Sou declaradamente de esquerda ou social-liberal?

Empresas públicas – também há três posições sobre o tema: os que consideram que toda empresa pública é intocável; os que julgam que todas devam ser privatizadas; os que defendem o papel das empresas públicas estratégicas, que devem ter como foco o consumidor e a economia; e ainda os que defendem, como os chineses, que mesmo as empresas estratégicas devam ter parte do capital em bolsa, para monitoramento da sua eficiência. Sou do grupo da social-democracia, que defende o papel econômico e social das empresas públicas, tendo como foco a produtividade da economia e o bem-estar dos consumidores.

Empresas privadas – há os que são contrários a qualquer forma de empresa privada e aqueles que as consideram a prioridade única da economia. Finalmente, os que consideram que, mesmo privadas, empresas são ativos públicos – no sentido de que devem ser preservadas, enquanto geradoras de emprego, pagadoras de impostos e desenvolvedoras de inovação. Mas seus ganhos devem se destinar, também, ao bem estar dos funcionários – através do respeito aos direitos trabalhistas e previdenciários. Mais que isso: seguindo o modelo alemão, defendo que as grandes empresas tenham participação acionária de sindicatos de trabalhadores. É a melhor maneira de casar interesses do capital e do trabalho. Seria uma posição declaradamente de esquerda ou social-democrata?

O paradoxo da eficiência econômica – Há décadas, consolidou-se a ideologia de que a prioridade única das políticas econômicas deve ser o mercado. Com o mercado se desenvolvendo, haverá crescimento na economia e benefícios para todos. Sempre foi um blefe. Mas, em cima desse blefe, todas as análises midiáticas passaram a levar em conta apenas a eficiência individual de cada empresa – muitas vezes medida pela sua capacidade de geração de dividendos. Tome-se o caso do BNDES. É um banco de desenvolvimento público cuja orientação era fornecer financiamento de longo prazo às empresas, tendo como base as taxas internacionais – para dar igualdade de condições aos investimentos internos. Só que o mercado queria entrar nesse espaço de financiamento e capitalização das empresas, mas o BNDES balizava o custo do dinheiro. O que foi feito? Simplesmente aumentaram-se as taxas de juros do BNDES, a pretexto de que o financiamento a juros baixos era subsídio bancado pelo povo brasileiro. O mercado ganhou e a economia perdeu. Ser a favor das taxas baixas do BNDES é ser de esquerda ou de direita?

Sobre o papel do Estado – a esquerda quer tudo estatal; a direita não quer estado. Defendo um Estado forte, que atue em políticas sociais, que estimule o ambiente econômico para desenvolvimento das empresas privadas, e que seja eficiente no combate às desigualdades. Sou esquerda ou direita?

Sobre direitos trabalhistas – a esquerda defende que se revoguem todas as mudanças trabalhistas. A direita defende sua manutenção. Eu defendo uma nova reforma trabalhista que contemple os novos tempos, mas que substitua os direitos anteriores – superamos pelo novo modelo de emprego – por outros direitos que garantam o bem-estar do trabalhador. Sou direita ou esquerda?

Enfim, o mundo é muito complexo para caber em conceituações simplificadoras. O relevante é que, sendo esquerda ou direita, pessoas e instituições se guiem por princípios básicos:

  • É responsabilidade do país garantir direitos básicos a todos seus cidadãos, incluindo direito à alimentação, à aposentadoria digna e à informação.
  • É assegurado a todos os brasileiros o direito à livre manifestação religiosa.
  • Todo desenvolvimento precisa, necessariamente, ser atrelado à melhoria de vida da população. Setores eliminadores de emprego devem ser taxados para, com os recursos arrecadados, garantir o sustento dos desempregados.
  • É papel de qualquer nação civilizada a redução das desigualdades e, principalmente, o combate à fome e à miséria absoluta.
  • A questão ambiental é tema global. Mas países que consomem mais recursos (os mais ricos) têm a obrigação moral de apoiar os países mais pobres.

Não se trata de esquerda ou direita, mas de civilização ou barbárie.

Luis Nassif

15 Comentários

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  1. Já li muitos artigos do Nassif e admiro sua inteligência e posições. Infelizmente, a insanidade tomou conta e quem não é neoliberal é considerado de esquerda.

  2. Já li muitos artigo do Nassif e admiro sua inteligência e posições. Infelizmente, a insanidade tomou conta e quem não é neoliberal é considerado esquerdista.

  3. Pois eu acho que você tem razão ao dizer que esquerda ou direita são simplificações. Mas ao explicar porque você acha isto, você simplifica demais. Não existe a “esquerda”, mas posições que, em dado momento são à esquerda ou à direita. Mas sempre em relação a alguma coisa. Não são posições absolutas.

    E certas questões tem respostas diferentes dependendo de que “esquerda” você fala. Por exemplo, Getulio era de esquerda ou de direita. Os liberaloides paulistas sempre o acusaram de fascista. Falavam que a legislação trabalhista era cópia da “carta del’lavoro” italiana e seria corporativista. No entanto a existência de instâncias de mediação entre capital e trabalho é anterior ao fascismo. Lembro de ter algo assim, criado pela esquerda, na Dinamarca no ínicio do século.

    Para mim esquerda é o que dá prioridade aos produtores de riqueza, todos os tipos de trabalhadores, portanto. E direita é o que prioriza o capital. Em cada momento se está mais ou menos à direita ou à esquerda.

    E Social Democracia é o nome do movimento criado por Marx e Engels via Segunda Internacional. Mas agora aparece como tokemismo, ou algo assim, para dizer que não são de direita, mas algo que não é direita nem esquerda. Toda vez que surge esta conversa tenho já certeza de que são de direita.

    Emfim, tem mais coisas para discutir nesta questão

  4. Nunca existiu “esquerda”. Existem Esquerdas, assim, no plural. Desde antes de Marx já existiam os socialistas, os anarquistas e a social democracia. Basta conferir relendo alguns clássicos sobre o tema. Muitos são atualíssimos. O Nassif é de esquerda? Lula é de esquerda? Fez um governo Social Democrata, E fará outra vez. E o Boulos? Ciro Gomes eu sei que nunca foi, assim como outros.
    Abraço

  5. Rui Cerqueira está certo, essa conversa é sempre proposta por quem tem o pensamento de direita, ou conservador. É a mesma coisa com a tal ‘polarização’, assunto que é sempre colocado em destaque pelo pensamento conservador, invariavelmente para acusar o pensamento de esquerda, ou progressista, de responsável por esse “mal”. Se o PSDB ainda existisse, ou se o espectro direitista da política brasileira tivesse conseguido emplacar um candidato de 3ª via, ninguém estaria falando em polarização.

  6. Dicotomias são o fundo do poço, né?

    Mas fico a pensar. Para se livrar delas, que tal jogar toda racionalidade ocidental no lixo? Pois ela está fundada em dicotomias, como Céu e Inferno, Bem e o Mal, Deus e Diabo, Passado e Presente, Natureza e Cultura, Urbano e Rural

    Isso não é pouco.

    Por exemplo: a fixação das populações que ocorreu a partir da desagregação do Império Romano até o século XI, XII, quando uma nova territorialização, a cristã, ganhou hegemonia na Europa Ocidental (depois reproduzida na Mata Atlântica e na Amazônia a partir do século XV e XVI), em linhas gerais, foi produzida pela implantação de igrejas e cemitérios no centro das aldeias (que antes eram móveis) enquanto o cristianismo (religião urbana) se expandia sobre os territórios pagãos (paganus = camponeses).

    Dicotomicamente falando, esse processo “material” (cruzes, igrejas, cemitérios condicionando a ocupação das populações em seu entorno com moradas não mais móveis) não pode ser explicado sem sua face “espiritual”, por exemplo, da velha cosmografia cristã, com a terra sendo o centro do universo, circundado por esferas concêntricas cujos limites são o Céu (Paraíso) e o Inferno.

    A mãe das dicotomias (Céu – Inferno) fundou outras que estão na base da racionalidade ocidental. Pois quando os pagãos passaram a se reunir nas igrejas e nos cemitérios para rezar por seus defuntos (coisa que antes era tabu) foi para dar um lugar para suas almas, que antes estavam no cotidiano e agora deveriam estar no Céu – ou no Inferno, no caso dos indígenas, pois, por ironia divina, os antepassados indígenas ainda não haviam conhecido Jesus Cristo.

    Esse processo de retirada do “antePASSADO” do cotidiano, na longa duração, não só faria emergir uma nova temporalidade (com o passado desconectado e afastado do presente) como, dessacralizaria a “natureza” (afastando e se diferenciando da “cultura”), criando condições para o surgimento do capitalismo.

    O mundo ocidental racionaliza por dicotomias. E não nos esqueçamos: são por meio das representações ideológicas (onde elas abundam na esfera da política) que a gente se dá conta de uma situação de dominação e se organiza para superá-la.

    Direita e esquerda estão ligadas à necessária resposta a uma pergunta de ordem ontológica: o que torna uma sociedade mais justa? Ou o que faz uma sociedade melhor?

    Se você acredita que uma sociedade melhor e uma sociedade mais justa é uma sociedade menos desigual, você tende à esquerda. Agora, em um país com quase 400 anos de escravidão pesando ainda em nossas costas, se você acredita que é preciso reproduzir ou manter as desigualdades para se chegar a uma sociedade mais justa, parabéns, você é de direita – e a contradição é tamanha que, se você for cristão, nem vai se importar em esquecer que Jesus Cristo dividiu o pão ao invés de pregar ódio.

  7. No século V aC, segundo seus discípulos Sócrates teria dito que era melhor ser injustiçado do que praticar injustiças. Segundo ele, cada qual deve conviver em companhia de si próprio e não seria aconselhável obrigar-se a dialogar intimamente com um criminoso.
    Esse é um excelente parâmetro para distinguir pessoas de direita e de esquerda. Aqueles que estão sempre dispostos a praticar violências e injustiças para preservar hierarquias sociais são de direita. Quem reconhece a igualdade entre os seres humanos e se recusa a conviver intimamente com um criminoso é de esquerda. Não é possível alguém dizer que é de direita sendo intimamente de esquerda, pois o discurso da direita sempre instiga o ódio, o racismo, a violência e o crime. Mas é perfeitamente possível uma pessoa dizer que é de esquerda e intimamente conviver com um criminoso. Eu mesmo conheço muitos criminosos de esquerda que usaram o PT como trampolim para enriquecer e depois passaram a desprezar o movimento operário e a cultivar suas relações perigosas e lucrativas com a direita.

  8. É IMPORTANTE RESSALTAR QUE A A PROPRIEDADE PRIVADA É A DIVINDADE MÁXIMA DE TODOS OS SISTEMAS QUE SE FUNDAMENTAM NO EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM. NÃO NOS ESQUEÇAMOS QUE COMO IRMÃ XIFÓPAGA DA PROPRIEDADE PRIVADA NASCEU A CORRUPÇÃO.

    SEI QUE A HUMANIDADE ESTÁ LONGE DE ELIMINAR A PROPRIEDADE PRIVADA, SE É QUE AINDA TEREMOS TEMPO PARA TAL, NO ENTANTO, DO PONTO DE VISTA ECONÔMICO, AS FORMAS COLETIVAS E PRIVADA DE PROPRIEDADE, PODEM CONVIVER COM RAZOÁVEL GRAU DE HARMONIA E PROPICIAR UM ELEVADO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. ACREDITO QUE É O QUE ESTÁ ACONTECENDO NA CHINA.

  9. O que é açúcar ? É uma substância que deixa o café amargo quando não se lhe põe. Democracia, como se define ? É um regime político que deixa de existir quando exercido pela Direita. Direita, o que é isso ? É o contrário de Esquerda.
    Nem sempre usar de palavras para tentar definir algo é a melhor forma de dar o significado. Nada supera o exemplo, que transmite um conhecimento empático, de assimilação instantânea: Nassif Esquerda, Augusto Nunes Direita. O mais, só nuances.

  10. Muito Bom Nassif, este seu comentário. Vou “plagiá-lo” de vez em quando, porque comungo muito de seus pensamentos que você colocou muito bem em palavras precisas. Aproveito para manifestar minha antiga admiração à sua resistência na defesa de seus valores, sua coragem e contínuo bom trabalho jornalístico.

  11. Luis Nassif,
    Uma questão que não me parece bem tratada diz respeito ao mercado. Eu oponho o mercado à genese do capitalismo que é acumular capital com o trabalho de terceiro.
    Digo que o mercado é socialista, pois a tendência do mercado é a pulverização da economia com mais pontos de trabalhos e menores lucros. E nesse sentido ele é de esquerda
    Menciono como exemplo um quarteirão em uma cidade do interior de 25 mil habitantes que posuia 6 farmácias em toda a cidade sendo quatro delas no quarteirão, todas elas à mosca. Uma só farmácia poderia desempenhar a contento o papel. Em vez de 8 ou 12 no mínimo de funcionários tudo poderia funcionar com 3 ou 4 funcionários. O salário dos funcionários seria maior e o lucro maior.
    Então o mercado funciona gerando mais emprego e diminuindo o lucro. O Mercado então seria socialista, com caráter distributivo, e, nesse sentido, de esquerda.
    Já a gênese do capitalismo que é acumular capital com o trabalho de terceiro tem tendência concentradora. E ela vence o mercado, a menos que o Estado interfira.
    Clever Mendes de Oliveira
    BH, 09/11/2022

  12. O Nassif pergunta:

    “Ser a favor das taxas baixas do BNDES é ser de esquerda ou de direita?”

    Marx responde:

    “Os pequeno-burgueses democratas, muito longe de pretenderem revolver toda a sociedade em benefício dos proletários revolucionários, aspiram a uma alteração das condições sociais que lhes torne tão suportável e cômoda quanto possível a sociedade existente. Por isso reclamam, antes de tudo, a diminuição das despesas públicas mediante a limitação da burocracia e a transferência dos principais impostos para os grandes proprietários fundiários e grandes burgueses. Reclamam, além disso, a abolição da pressão do grande capital sobre o pequeno, por meio de instituições públicas de crédito e de leis contra a usura que lhes tornassem possível, a eles e aos camponeses, obter em condições favoráveis adiantamentos do Estado em vez de os obterem dos capitalistas; e ainda o estabelecimento das relações de propriedade burguesas no campo, pela completa eliminação do feudalismo. Para realizarem tudo isto, necessitam de uma Constituição democrática, seja ela [monárquica] constitucional ou republicana, que lhes dê a maioria, a eles e aos seus aliados, os camponeses, e de uma organização comunal democrática que ponha nas suas mãos o controlo direto da propriedade comunal e uma série de funções atualmente exercidas pelos burocratas”.

    Os pequenos-burgueses são de direita ou de esquerda?

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