E os jovens cérebros, professor? Uma resposta a Jorge A. Neves, por Rafael Sampaio

Se a educação e a ciência são realmente essenciais para o país e para nosso projeto futuro de nação, a greve de técnicos e docentes é justa.

E os jovens cérebros, professor? Uma resposta a Jorge Alexandre Neves

por Rafael Cardoso Sampaio

Professor Jorge, li seu texto e achei muito interessante. Discordo de grande parte de sua argumentação, inclusive achando que ela reproduz justamente os argumentos de comentadores de internet, porém obviamente com grande profundidade e sofisticação, como argumentei em outro texto publicado no início da greve. Mas, se me permite, gostaria de fazer uma resposta me atendo a dois pontos principais, nomeadamente sermos suficientemente bem remunerados e as consequências indesejáveis que menciona.

Gostaria de me dedicar mais ao primeiro, como apresento em meu título. Evidentemente, em qualquer comparação, ganhamos razoavelmente mais que a média brasileira. Proponho um novo enquadramento: ganhamos bem em relação aos melhores salários do estado brasileiro, a exemplo de auditores fiscais, servidores do banco central, de carreiras nobres de ministérios, dos tribunais de contas, do judiciário, burocratas do legislativo e até de órgãos como os Detrans estaduais. Sim ou não?

Por exemplo, as agências reguladoras oferecem remunerações iniciais de mais de R$ 16.000, com exigência apenas de graduação, enquanto a remuneração do professor federal – cargo com exigência de doutorado – gira em torno de R$ 10.500. A carreira de Analista do Senado tem remuneração inicial de mais de R$ 25 mil, outra carreira que exige apenas a graduação. É intrigante investigar a justificativa de um doutor em física quântica, que desenvolve ciência de ponta, receber aproximadamente 138% menos que um analista do Senado. Fica o desafio de mostrar algum país com ciência de ponta que remunere mais um administrador de agência do que um cientista de alto impacto com doutorado.

Consequentemente, para os colegas mais antigos, há um desânimo geral. As condições gerais para trabalhar pioraram significativamente, os recursos se tornaram mais escassos, os salários são cada vez menos competitivos em relação ao mercado, ao exterior ou aos colegas das posições já mencionadas. Isso para não mencionar ser uma carreira desgastante em vários sentidos. Deve-se produzir ciência enquanto ministram múltiplas aulas na graduação e pós-graduação, orientam na graduação e pós, oferecem e coordenam projetos de extensão, assumem cargos administrativos de todos os tipos (que também são geralmente mal remunerados). Logo, aqueles que apresentam a inteligência mais preciosa do país se sentem menosprezados, derrotados.

Além disso, o professor talvez esteja se esquecendo dos nossos jovens pesquisadores. De fato, o salário de um professor titular não é tão ruim, apesar de vergonhosamente inferior aos supracitados cargos no estado brasileiro. Todavia, o salário inicial de um professor adjunto I é escandalosamente não atrativo. Novamente, não digo em comparação à média do Brasil, mas justamente aos cargos que os jovens brilhantes poderiam conseguir.

É como a brincadeira de antigamente. Você pergunta a uma pessoa com um fone que a impede de ouvir: “você trocaria um salário de 20-25 no estado brasileiro com prestígio e boas condições por um salário líquido de 8 mil de professor universitário com dedicação exclusiva, que precisará lecionar, pesquisar e fazer projetos de extensão, frequentemente com condições ruins, recursos insuficientes e ainda sem grande prestígio na sociedade ou no governo?”. E por não estar ouvindo, o jovem gritaria entusiasmante “SIM!”.

Mas os jovens estão atentos. Serão cada vez mais raros aqueles dispostos a não ir para o mercado por uma bolsa de mestrado de 2 mil reais e menos ainda os dispostos a investir quatro anos em um doutorado por uma bolsa de 3 mil reais. Ora, é melhor que a média nacional, porém evidentemente é muito menor que aquilo que irão conseguir em outros lugares, afinal estamos falando de mentes promissoras.

Em suma, se não têm uma vocação acadêmica, vão para carreiras melhores no estado. Se são pesquisadores, vão para fora. Afinal, além da bolsa de pós-doc ser igualmente pouco atrativa, a capacidade de absorção desses jovens brilhantes é muito pequena. Os concursos são poucos e a concorrência é gigante. Portanto, existe a fuga de cérebros da ciência para o exterior, mas também uma fuga geral das mentes mais brilhantes para o estado.

 Na verdade, os valores são tão inexpressivos que o recente e infeliz anúncio do programa que pretende investir 1 bilhão para repatriar cientistas é a prova máxima disso. Prometem uma bolsa de 10 mil reais líquidos para um mestre que retornar. Isso é praticamente o dobro da bolsa de pós-doutorado de quem já está no Brasil. Por sua vez, prometem 13 mil reais para os doutores que retornarem. O valor dessa bolsa de mestrado é maior que a de um professor doutor adjunto contratado pelos três anos iniciais. O valor da bolsa de doutorado oferecida é maior que o líquido que um professor adjunto IV vai ganhar depois de 11 anos de carreira. Entretanto, além do timing horrível, o programa não é bom. Não vai trazer mentes brilhantes de volta, pois comparado ao dólar ou euro e afins, os valores não são bons. E não há estratégia posterior para fixar essas pessoas. Mas, para meu ponto aqui, creio que ficou mais claro o desequilíbrio e o quanto desvalorizamos os profissionais que estão por aqui.

Então, são necessários novos enquadramentos à mesma questão, assim como novas perguntas. O quanto o país valoriza sua produção científica? O quanto ele acredita que um verdadeiro projeto de nação passa necessariamente por educação superior e pesquisa científica de ponta?

 Quanto ao seu segundo argumento, concordo que não devemos alimentar um antipetismo de esquerda. Não obstante, creio que o restante de seu relato comparando o momento atual a 2013 precise ser considerado com cuidado. Porque retoricamente levando-o ao extremo, o tal momento certo pode não chegar nunca. Arrisco dizer que já seguimos o conselho de Lenin. Demos um passo para trás durante o governo Bolsonaro, uma vez que uma greve naquele momento não conduziria a quaisquer ganhos reais, seria antes utilizada pelas forças de direita para degradar ainda mais a educação e a investigação, e até mesmo como argumento para a privatização das instituições federais.

Agora, é fato que Lula se elegeu prometendo, entre outras coisas, mais valorização dos servidores públicos e da pesquisa científica. Apesar do cenário político ser adverso, notadamente em relação ao Congresso Nacional, vivemos, na prática, um momento de crescimento econômico e decréscimo da inflação, ambos acima de projeções. E estamos vendo fortes investimentos em outras áreas consideradas vitais pelo governo, como PAC, minha casa, minha vida, Bolsa Família e daí em diante. Novamente, a questão me parece ser mais de prioridade que realmente de falta de orçamento.

E entendo o que você quer dizer em relação a “mudança na reação das pessoas se dará pelo desconforto e pela frustração que essas greves causarão em muitas famílias e indivíduos pelo Brasil afora”, entretanto precisamos resgatar que greves existem exatamente baseadas nesse exato pressuposto. Atividades são paradas, a sociedade fica insatisfeita e o governo é pressionado a ouvir os grevistas. Não há nada de novo de fato. O que, concordando com o senhor, podemos fazer é melhorar nossa comunicação sobre as razões e a importância da greve. Cenário no qual acho que seu texto infelizmente não colabora.

Além disso, como um pesquisador de comunicação política, posso te garantir que a extrema-direita está disposta a usar quaisquer fatos (reais ou não) para tentar desestabilizar o governo. Não creio que haja boa razão para crer que a greve dos professores será o ovo da serpente de 2024. Teríamos que ser infinitamente mais prestigiados na sociedade para ter tamanho impacto. Entretanto, aqui concordo com a visão do professor Luis Felipe Miguel. Um constante medo de que qualquer manifestação, greve ou movimento de massas para pressionar o governo vai apenas gerar o retorno da extrema-direita é uma posição igualmente perigosa. Em suas palavras: “é um discurso cujo horizonte é entregar o governo à direita, sem disputa, e conduzi-lo à derrota, por ser incapaz de promover as políticas necessárias para a reconstrução do Brasil. Somos – tenho certeza – suficientemente maduros para lutar por nossos direitos sem descuidar da luta pela democracia”.

É preciso lembrar que o equilíbrio fiscal pleno ainda em 2024 é uma pauta exclusiva de Fernando Haddad, nosso querido professor da USP e ex-ministro da Educação, e de seu entorno. Existem diferentes alas no governo e no congresso que adotam uma posição mais política e mais partidária dos professores. E, novamente, está longe de ser uma situação por si que trará um caos fiscal ao Brasil.

Portanto, se a educação e a ciência são realmente essenciais para o país e para nosso projeto futuro de nação, a greve de técnicos e docentes é justa. E, se é verdadeiramente uma prioridade para o governo Lula, o discurso tecnocrático curto-prazista do déficit zero precisa ser derrotado.

Rafael Cardoso Sampaio – Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Pesquisador 1D do CNPq. É professor do Departamento de Ciência Política da UFPR há 9 anos e ainda é adjunto III, faixa inicial dos cargos para professores no Brasil. Sentiu diretamente as perdas salariais acumuladas nestes últimos 5 anos de mais de 30%.

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Redação

3 Comentários

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  1. Quanto mais leio Rafael Sampaio, mais gosto de Jorge Alexandre Neves. Triste pensar que um jovem professor universitário só consiga pensar o “valor” relativo ao seu trabalho em termos comparativos com a “remuneração” de outros setores do funcionalismo público. É a academia de joelhos à lógica do mercado. Muito triste mesmo.

    1. Há um problema: boletos a serem pagos. Boletos não admitem desaforos, análises equivocadas, medos diversos. Há o dia de pagamento e ponto final. Docentes, de qualquer idade ou tempo acadêmico, são trabalhadores, que vivem de vender sua força de trabalho ao patrão eventual, no caso o Estado brasileiro. Óbvio, a grande, imensa maioria assim o é. Há os “empreendedores”, no padrão de trabalhadores do Serviço Público Federal que a Lava Jato consagrou com Deltan e cia. A greve vem dos baixos salários, do desprezo manifestado em reuniões infrutíferas, dos cortes orçamentários, da não abertura de novos concursos, da infralegislação (na forma de portarias, intruções normativas, normas técnicas, etc) imposta por temer-bolsonaro e mantida por ser útil e funcional a quem está no poder. De outro lado, comparar com os valores de remuneração de outros trabalhadores do Serviço Público Federal é mais que natural. Mostra quem é importante para o governo eventual na disputa orçamentária. Por fim, caso sobrevenha qualquer ganho salarial fruto da greve, Jorge Alexandre e outros do mesmo naipe irão devolvê-lo ao Tesouro Federal?

  2. Oi, André,
    fico feliz com seu comentário, pois evidencia que estou sendo coerente em meus argumentos em diferentes textos.

    Não tenho muito o que responder, pois o colega grevista já argumentou de forma perfeita o que eu desejava.

    A sua leitura na lógica de pensarmos apenas em valor é válida, mas não é a minha intenção. Como bem notou o colega, tem mais a ver quais são as prioridades do estado brasileiro. Infelizmente, nem educação e nem ciência estão inclusas. Justamente de onde podem vir as melhores soluções…

    Muito triste é isso na verdade.

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