Ronaldo Bicalho
Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Os militares como mais um fator de instabilidade: a nova rodada da crise

Por Eduardo Costa Pinto*

A crise do capitalismo brasileiro tornou-se uma “tempestade perfeita” (ou “uma bola de neve que aumenta feito avalanche”) que combina crises sobrepostas em três dimensões: (i) o da acumulação de capital; (ii) o da cena política que circunscreve ao sistema partidário e a representação (plano político); e (iii) o da relação entre os segmentos dominantes/empresariais e o Estado brasileiro (plano institucional).

Para muitos, a crise brasileira chegou num momento inimaginável em que a instabilidade cresce de forma acelerada. Voltou-se a discutir a questão da intervenção militar, da ruptura democrática e da ordem constitucional. Um assunto que parecia que estava morto e enterrado, dado a nossa trajetória de 21 anos de ditadura empresarial-militar (entre 1964 e 1985) e o longo período de redemocratização (1985 até os dias atuais).

Vários articulistas – de diversos jornais, blogs e de diferentes matizes (Kennedy Alencar, Jânio de Freitas, Míriam Leitão, Luís Nassif, Demétrio Magnoli, Editorial da Folha, etc.) – discutiram essa questão depois da palestra do General Antônio Augusto Mourão no dia 15 de setembro de 2017 que, após uma pergunta, afirmou que caso as instituições não resolvam os problemas políticos (questão da corrupção) haverá a “necessidade de intervenção militar”.

Dentre os vários elementos da crise (destacados em textos anteriores[1]), analisaremos aqui o efeito do fator militar no atual momento crítico em sua forma institucional, sem perder de vista que esta dimensão por si só não explica o caminho que nos trouxe até aqui. 

Na sua forma institucional, a crise ganhou dimensões sem precedentes em que as instituições[2] – regras do jogo em uma sociedade – brasileiras aparentemente estariam funcionando, mas que, na verdade, elas estão se desestruturando a cada nova rodada de aceleração da instabilidade (1ª: impedimento da Dilma; 2ª: delação do Joesley; e 3ª: anúncio pelos militares da possibilidade de intervenção) em virtude do não comprimento das regras do jogo. Estas são a cada dia interpretadas e utilizadas ou negadas como forma de obtenção de determinado interesses de grupos, corporações estatais e empresários.

Rodadas de instabilidade: impeachment (golpe parlamentar de 2016) e efeito Joesley

A origem da crise do capitalismo brasileiro e do processo de instabilidade, em curso, tem duas dimensões centrais. A primeira que é o travamento da acumulação de capital em 2015 e 2016, dado que as queda das taxas de rentabilidade, com a elevação dos salários (ou queda menor que as quedas da rentabilidade em 2016), reascendeu o conflito distributivo entre capital e trabalho, amenizado durante o governo Lula, em virtude da conjuntura internacional extremamente favorável (efeito China) que possibilitou um “jogo de ganha-ganha” – materializado pela busca de coalizões de interesses entre as burguesias (industrial, financeira e agrícola) e o movimento sindical e popular (PINTO, et. al., 2017).

Com o acirramento da crise de acumulação e da expansão da lava jato, o impedimento da Dilma representou, por um lado, uma “possível alternativa” (anti-trabalhadores e anti-democrático), por parte das classes dominantes, para destravar a crise de acumulação do capitalismo brasileiro, por meio do ajuste perverso sobre os trabalhadores e as populações mais pobres; e, por outro, para barrar a lava jato (PINTO, et. Al, 2017).

Os empresários, o sistema político, a grande imprensa e o governo Temer acreditam que a saída da crise de acumulação seria alcançada pelo ajuste recessivo e pelas reformas neoliberais por mercado (teto dos gastos públicos, reformas trabalhista e previdenciária). Isso não gerará um crescimento sustentável. Mesmo com toda a instabilidade institucional, em curso, segue-se uma pressão enorme sobre a classe trabalhadora exercida pelos segmentos dominantes brasileiros que buscam manter, agora (golpe parlamentar de 2016) como no passado (golpe empresarial-militar de 1964), os trabalhadores no “seu devido lugar” e para isso eles adotam uma resistência “[…] ultraintensa à mudança social” e voltam-se de forma “sociopática” para “a preservação pura e simples do status quo [defesa de privilégios e do lucro a qualquer custo]” (FERNANDES, 1962, p. 211).

No que tange à lava jato, nenhuma fração de classe do bloco no poder conseguiu comandar esse processo até aqui e ele segue fazendo devastações intra-burguesas, intra-partidárias e intra-institucionais. As instituições e sua legitimidade estão desmanchando. 

Nesse sentido, a forma institucional assumida pela crise foi a criminalização completa da relação entre o privado e o público que se tornou um dos problemas centrais (segunda dimensão originária da crise). Com base em princípios éticos – do consórcio de poder que se formou entre a Procuradoria Geral da República/ “República do Paraná” (os weberianos messiânicos) e os grandes meios de comunicação –, empreendeu-se uma “cruzada messiânica” contra a corrupção e para a refundação do capitalismo brasileiro[3]. Isso implicou numa completa criminalização dessa relação, supondo-se que seria necessária e possível uma completa separação entre interesses privados e públicos (PINTO, et. al, 2017).

É evidente que a corrupção deve ser combatida – por meio da construção de novas pontes institucionais entre o público e o privado e da punição dos agentes que cometeram crimes segundo as regras legais estabelecidas. No entanto, a cruzada contra a corrupção foi feita de maneira voluntarista (i) ao criminalizar qualquer tipo de relação entre o privado e o público; (ii) ao demorar em realizar os acordos de leniência com as empresas envolvidas nos atos ilícitos; e (iii) e ao adotar procedimentos passíveis de questionamentos jurídico, flexibilizou-se as regras formais do jogo para prender políticos e empresários.

Para seguir em sua cruzada, a operação lava jato utilizou instrumentos nada convencionais assentado na seguinte estratégia: vazamento/publicidade → instabilidade → deslegitimação política → legitimidade da operação junto à opinião pública (aumento do poder) → pressão sobre às instâncias superiores do judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), para que as mesmas não coibissem a flexibilização das regras adotadas pela operação.

Essa flexibilização das leis ficou nítido no parecer do relator do processo no Tribunal Regional Federal da 4ª Região contra o juiz Moro (que foi acompanhado por 12 desembargadores) no caso da retirada do sigilo da gravação entre à época a presidente Dilma e o ex-presidente Lula. Essa passagem é esclarecedora: “Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada ‘Operação Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”[4]

Em linhas gerais, os instrumentos centrais dessa operação para seguir em sua cruzada foi a instabilidade (“poder de balançar o barco/Brasil)” do consórcio entre lava jato e mídia) e a flexibilização das regras legais. A medida que a operação avançava aumentava a reação dos mais diversos segmentos políticos e econômicos.

A 1º rodada de instabilidade foi o impedimento da Dilma. Nos períodos antecedentes e posteriores àquele evento é possível enumerar um conjunto de fatos que evidenciam a flexibilização ou ruptura das regras legais, vejamos: 1) divulgação das gravações entre Dilma e Lula pelo juiz Sérgio Moro; 2) decisão de Gilmar Mendes, ministro do STF, que impediu Lula de assumir o cargo de ministro; 3) o golpe parlamentar em que o Congresso Nacional utilizou de forma flexível e particularizada as “pedaladas fiscais” para atribuir um crime de responsabilidade; 4) o impedimento de Dilma sem a perda de seus direitos políticos; 5) quebra de hierarquia de juiz de primeira instância de Brasília ao solicitar a prisão da polícia do Senado, função que caberia apenas ao STF; 6) o Senado realiza uma clara desobediência civil ao desacatar uma decisão do STF, mesmo que de forma liminar, referente à destituição do seu presidente, o senador Renan Calheiros; 7) o pleno do Supremo rasga a Constituição e cria um “jeitinho” para manter o presidente do Senado retirando-o da linha sucessória (PINTO, et. al, 2017). Isso foi minando a legitimidade dos poderes executivos e legislativos e também do STF.

Esses eventos já seriam relevantes para gerar enorme instabilidade institucional. No entanto, uma nova rodada de instabilidade ocorreu com a delação da J&BS (que tem como proprietários os irmãos Batistas). Até aquele momento, o poder de “balançar o barco” estava com o Ministério Público e a mídia. Mas, agora, os possíveis acusados descobrem que podem fazer isso com um potencial muito maior de desestabilização (efeito Joesley). Portanto, também têm poder no jogo e podem usar isto para alcançar um acordo mais favorável tanto em termos jurídicos quanto econômicos.

Para se salvar, Joesley jogou muito combustível na fogueira (gravação de conversa com o presidente Temer e com o senador Aécio; operação controlada da polícia federal com malas de dinheiro entregues), a ponto de nem mesmo a PGR e seus consorciados (grande imprensa, em especial o Grupo Globo) conseguirem controlar o fogo. Ainda sob os efeitos das labaredas da vaidade e ansiedade de demonstrar poder, o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot e a Globo aceleraram para cima do presidente Temer. No afã, a Globo achou que conseguiria derrubar o Temer rapidamente (comandando uma narrativa) e colocando alguém no lugar dele para seguir com as reformas econômicas neoliberais. Mas, a Globo errou feio no cálculo político!

A aceleração da lava jato, especialmente da PGR, causou preocupações nas outras grandes empresas de comunicação, em segmentos empresariais (como os bancos) que até então estão fora da operação e implodiu todos o sistema político, especialmente o PSBD com a revelação das conversas do Aécio Neves. Não foi por acaso que após a delação da JBS, ocorreu a ampliação da fragmentação dos setores dominantes e parte dos mais rico (inclusive alguns meios de comunicação) e do sistema político passaram a apoiar o presidente Temer que conseguiu se manter no poder, por meio de votação no Congresso, após a 1ª denúncia da PGR contra ele e toda cúpula do PMDB.

A delação da JBS (que garantiu a liberdade para os seus donos e baixos custos para a empresa) e sua reversão (com a auto gravação sem querer do Joesley que mostrou que o mesmo tinha recebido informações de Marcelo Miller da PGR para fazer sua delação, o que deve gerar uma reversão dos benefícios obtidos); as interpretações recorrentes da Constituição pelo STF e suas disputas internas; e a manutenção no poder do presidente Temer ampliaram a deslegitimada, em curso, dos principais órgãos políticos (executivo e legislativo) e jurídicos (PGR e STF) que executam, criam e garantem as regras do jogo (instituições).

O poder de balançar o barco (gerar instabilidade), que antes estava com a lava jato (em sua missão messiânica) e a Mídia (em sua busca por mais poder), agora é utilizado por outras corporações estatais, indivíduos e pequenos grupos, políticos e empresários para alcançar seus interesses, quer sejam eles para o “bem ou para o mal” (e o que isso possa significar!). Agora todos envolvidos acham que podem balançar o barco: juízes de primeira instância de todo o Brasil (efeito imitação do Moro); MP que atua desde clube de futebol até PGR no caso da delação do J&BS e de sua reviravolta; ministros do STF que realizam uma atuação política e falam antecipadamente de processo que vão julgar na imprensa; empresários como os donos da JB&S que tentaram se salvar jurídica e economicamente; o Temer e a cúpula do PMDB que se mantêm nos cargos de presidente e de ministros mesmo com todas as acusações contra os mesmos. Isso elevou ainda mais a instabilidade institucional.

Nova Rodada de instabilidade: o fator militar e o perigo para a democracia

Essa crise ganhou um novo capítulo (3ª rodada de instabilidade) quando o general Antônio Augusto Mourão, um integrante do alto comando do exército, falou – numa palestra proferida na maçonaria de Brasília no dia 15 de setembro de 2017 – sobre a possibilidade de intervenção militar quando respondeu uma pergunta da organização do evento. Vejamos:

[Pergunta]: “A constituição de 1988 admite uma intervenção constitucional com emprego das Forças Armadas; os poderes executivos e legislativos estão podres cheios de corruptos, não seria o momento dessa intervenção quando o presidente da república está sendo denunciando pela segunda vez e só escapou da primeira denúncia por ter ‘comprado’ membros da Câmara Federal? Observação: fechamento do Congresso com convocação geral em 90 dias sem a participação de parlamentares envolvidos em qualquer investigação. Gente nova” 

[Resposta do Gal. Mourão]: “Excelente pergunta! Desde o começo da crise o nosso comandante [General Eduardo Villas Bôas] definiu um tripé para atuação do exército (eu estou falando aqui da forma como o exército pensa). Ele baseou: 1) na legalidade; 2) na legitimidade que é dado pelo […] reconhecimento perante a sociedade; 3) não ser o exército fator de instabilidade. É óbvio quando nós olhamos com temor e com tristeza os fatos que estão nos cercando, a gente diz: pô, por que não vamos derrubar esse troço todo? Na minha visão, que coincide com os meus companheiros de Alto Comando do Exército, nós estamos […] na situação de ‘aproximações sucessivas’. Até chegar o momento em que, ou as instituições solucionam o problema político, pela ação do Judiciário, retirando da vida pública esses elementos envolvidos com todos os ilícitos, ou então nós teremos que impor isso. Qual é o momento para isso? Não existe fórmula de bolo […]. Nós temos planejamentos muito bem feitos. No presente momento o que vislumbramos: os poderes terão que buscar a solução, senão conseguirem chegará a hora que nós teremos que impor uma solução. Essa imposição não será fácil […] trará problemas […] se tiver que haver, haverá, mas hoje nos consideramos as aproximações sucessivas que terão que ser feita. Essa é a realidade”.

A partir desses trechos é possível extrair alguns pontos importantes a respeito da possibilidade de intervenção militar, a saber:

1)      Caso as instituições, em especial o STF, não consigam resolver a questão política haverá uma intervenção militar para combater a corrupção;

2)      O general afirmou que sua posição é a mesma do Alto Comando do Exército;

3)      Ao falar sobre a intervenção, o Gal. Mourão afirmou que “temos planejamentos muito bem feitos”. Parece que já há sim um plano operacional para isso. É evidente que o general não o explicitou, no entanto, não seria nada estranho se o plano fosse: “fechamento do Congresso com convocação geral em 90 dias sem a participação de parlamentares envolvidos em qualquer investigação. Gente nova”; como dito pela pergunta da organização do evento (realizado num ambiente controlado e planejado) dirigida ao general;

4)      Não há ainda um “dia D” para a intervenção, pois isso dependeria de situações de aproximações sucessivas, como dito pelo general sem explicar o que seriam essas aproximações.

No primeiro momento, a posição do Gal. Mourão foi interpretada por muitos com uma opinião isolada, sem vinculações com o pensamento do Alto Comando. Apesar disso, diversos setores da sociedade (impressa, políticos, governo, etc.) expressaram desconforto com as palavras do general e reivindicaram punição ao mesmo por ter desrespeitado a Constituição (ao afirmar sobre a possibilidade de intervenção militar sem a iniciativa de um dos poderes) e quebrado a hierarquia militar (por ter falado pelo comandante das Forças Armadas). O Ministro da Defesa, Raul Jungman, em nota chegou a convocar o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, para discutir as medidas cabíveis a serem tomadas contra o Gal. Mourão.

Para surpresa de muitos, o comandante do exército general Eduardo Villas Bôas, ao ser entrevistado no programa do Bial da rede Globo (https://www.youtube.com/watch?v=wHRbkLeeDkY), não desautorizou nada do que foi dito pelo general Mourão. Ao contrário, o que se viu foi uma exaltação ao seu subordinado e às suas opiniões. Nas palavras do próprio Villas Bôas:

“[…] Mourão é um grande soldado! É uma figura fantástica! […]. Se você recorrer o que está na constituição artigo 142º (como atribuição das Forças Armadas). Ela diz ali que as Forças Armadas podem ser empregadas na garantia da lei e da ordem por iniciativa de um dos poderes e isso tem acontecido recentemente, mas antes diz o texto: as Forças Armadas se destinam a defesa da pátria e das instituições […]. Essa defesa poderá ocorrer por iniciativas de um deles ou na iminência de um caos. Então as Forças Armadas teriam o mandato para fazê-lo. Caso não seja solucionado o problema, nós podemos intervir. É isso o que ele [Gal. Mourão] quis dizer. […] quando ele fala das aproximações sucessivas uma delas são as eleições […]. Não haverá punição formal [para o Mourão].”      

Essas palavras do comandante das Forças Armadas dispararam sinais de alertas para diversos segmentos da sociedade. Vejamos alguns porquês.

Em primeiro lugar, o Gal. Villas Bôas realizou uma interpretação completamente flexibilizada do caput do artigo 142 da Constituição[5], pois não há nenhuma expressão de “eminência de caos” que justifique uma intervenção militar sem a solicitação de um dos poderes (ver Alencar, 2017; Leitão, 2017; PGR, 2017)[6]. Essa interpretação é a mesma do Gal. Mourão e, coincide, com trechos da pergunta endereçada ao mesmo no evento da maçonaria.

Em segundo lugar, o comandante do Exército em nenhum momento desautorizou o seu subordinado no que diz respeito às suas palavras sobre plano de intervenção militar (“aproximações sucessivas”; “temos planejamentos”; etc.). O que se viu foi, inclusive, um esclarecimento no que tange à expressão aproximações sucessivas utilizadas pelo Gal. Mourão. As eleições seriam uma dessas aproximações, conforme dito por Villas Bôas.    

Além do apoio de seu comandante, o Gal. Mourão recebeu amparo de vários integrantes do exército. Dentre os quais destaca aqui o do general da reserva Augusto Heleno – primeiro comandante da Força de Paz no Haiti (2004) – que publicou a seguinte mensagem: “Meu apoio irrestrito ao meu amigo de longa data e respeitado chefe militar, General Antônio Hamilton Mourão. Em resposta a uma pergunta, colocada diante de uma plateia restrita, ele limitou-se a repetir, sem floreios, de modo claro e com sua habitual franqueza e coragem, o que está previsto no texto constitucional. A esquerda, em estado de pânico depois de seus continuados fracassos, viu nisso uma ameaça de intervenção militar. Ridículo. E mais, isso sim preocupante, o descaramento de alguns políticos, indiciados por corrupção e desvio de recursos públicos, integrantes da quadrilha que derreteu o país […]”[7]

A matéria da revista IstoÉ, assinada por Franco, Libório & Oliveira, 2017[8], afirmou que as palavras do Gal. Mourão ecoou o que foi discutido na 314º reunião do Alto Comando do Exército, realizada em Brasília (entre os dias 11 e 15 de setembro), que “ […] foi convocada para discutir os problemas que afligem os militares, entre os quais, a crise política do País e a falta de recursos para manter soldados nas casernas e garantir as atividades básicas da força, alvo de um significativo contingenciamento de verbas do governo federal”.

Tudo isso evidencia que o que foi dito pelo Gal. Mourão reflete a opinião do Alto Comando do Exército. Ou seja, há sim um plano operacional de intervenção para acabar com a corrupção caso as instituições civis não debelem esse mal (todos os políticos atuais indiciados pelo judiciário).

Nassif (2017), assim como outros jornalistas, destacam que a não punição do Gal. Mourão – que teria sido solicitado pelo Ministro da Defesa Raul Jungman – pelo comandante das Forças Armadas teria aberto um momento em que: […] encerrou-se a fase de subordinação das Forças Armadas ao poder civil. Obedeceu a uma lógica óbvia: como vai punir um companheiro de fardas, que expressou o sentimento do Alto Comando, se o próprio presidente da República é reconhecidamente corrupto e o Congresso Nacional está dominado por um grupo de parlamentares denunciados? ”[9]

Dado que as palavras do Gal. Mourão foram respaldadas pelo seu comandante e por outros integrantes graduados das Forças Armadas, faz necessário apresentar os principais fatos estilizados de sua palestra na maçonaria, pois as ideias ali contidas podem nos dar pistas sobre a atual doutrina do exército e de suas escolas de formação. Vejamos os principais eixos da palestra: i) as grandes corporações hoje desafiam os Estados nacionais. Ele cita, como exemplo, as empreiteiras brasileiras que teriam tomado conta do Estado; ii) a grande interação entre interesses públicos e privados teria gerado a corrupção; iii) os políticos adotam conceitos anacrônicos de esquerda e direita, sendo que todos eles estariam juntos na prática da corrupção; iv) há inúmeros atos terroristas praticados no Brasil hoje, tais como ônibus queimados e rodovias bloqueadas; v) a América do Sul seria uma região instável, marcada por disputas territoriais e organizações diplomáticas paralelas, como o Foro de São Paulo que reuni organizações criminosas e partidos de esquerda; vi) quanto à questão econômica há uma defesa de políticas neoliberais, quais sejam: disciplina fiscal, reforma gerencial do setor público, desregulamentação, privatização, estímulos aos investimentos estrangeiros, liberalização financeira, entre outras medidas. Esses elementos evidenciam que, para o Gal. Mourão, a corrupção é o problema central do país.

Esse diagnóstico é o mesmo do seu comandante, Eduardo Villas Bôas, que em entrevista ao valor[10] afirmou: “[…] acho importante todo esse processo que estamos vivendo em decorrência da Lava-Jato e de outras operações. A Lava-Jato é a esperança de que se produza no país mudança nesse aspecto ético que está atingindo nosso cerne, que relativiza e deteriora nossos valores. […]. Esse processo é fundamental para o prosseguimento do país. E aí você me pergunta: o que pode acontecer se a Lava-Jato atingir a todos indiscriminadamente? Que seja. Esse é o preço que tem que se pagar. Esperamos que tenha um efeito educativo”

É claro que as Forças Armadas não são um bloco monolítico. Existem grupos diversos, mas parece que as vertentes nacionalista/desenvolvimentista – em que as questões do mercado interno, do estado e das estatais estavam articuladas as visões de segurança nacional – tornaram-se minoritária; ao passo que os grupos majoritários se tornaram liberais difusos da mesma linha dos integrantes da lava jato. Esses liberais difusos (burocracia militar e civil) acreditam que o combate a corrupção levaria a salvação do país. Para isso seria necessário separar/criminalizar completamente os interesses privados e públicos (mesmo sem saber eles são defensores da teoria da busca da renda – rent seeking), pois o mercado seria a instituição mais eficiente e o Estado a fonte original da corrupção.

Chama atenção o fato de que esses liberais difusos (militares e civis) se aproximam no campo econômico, mesmo que de forma involuntária ou não, dos banqueiros nacionais e estrangeiros, dos consultores econômicos, da grande mídia, das políticas econômicas de um governo (Temer) que eles tanto combatem, de professores universitários neoliberais, entre outros segmentos da sociedade. Isso mostra como as Forças Armadas não têm um projeto de desenvolvimento para o país, pois para eles o combate à corrupção (via criminalização das relações entre o público e o privado) seria o único caminho.

Pelo visto, não foram somente os civis que esqueceram do projeto de desenvolvimento para o país, mas também os militares. Aqueles que, na década de 1970, foram responsáveis pelo projeto de desenvolvimento brasileiro – que construiu e consolidou os oligopólios industriais e financeiros que conhecemos hoje–, em que o Estado teve um papel central, hoje negam o seu passado e assumem uma visão neoliberal e estrangeira em que “[…] fábricas de posições sem reflexão, apenas ecos de sons vindos do Norte” (Freitas, 2017)[11].

Dada o tamanho da nossa crise atual, é óbvio que as Forças Armadas construiriam cenários e plano diversos, incluindo, inclusive, a possibilidade intervenção militar. No entanto, há uma questão obscura: Quais teriam sido os motivos que levaram a divulgação da existência desses planos? Será que os militares também resolveram balançar o barco para alcançar seus objetivos?

É possível apresentar algumas hipóteses que justifiquem a divulgação da existência do plano de intervenção. A primeira é que haveria uma disputa na sucessão do Gal.  Eduardo Villas Bôas – que é considerado muito legalista – no comando das Forças Armadas e que as palavras do Gal. Mourão seria uma forma de pressionar o comandante a se pronunciar sobre o papel dos militares na crise política. Essa é uma situação possível, mas pouco provável em virtude dos comentários elogiosos do Villas Bôas ao seu comandado. A segunda hipótese é que a divulgação seria uma forma de pressionar o governo federal por maiores recursos e salários para as Forças Armadas. A terceira é que a revelação teria como objetivo pressionar o judiciário (STF) e o sistema político (Congresso Nacional), para, respectivamente, condenar os políticos corruptos e aceitar a 2º denúncia contra o presidente Temer.

Independente dos objetivos que guiaram a divulgação do plano de intervenção, a forma de atuação dos militares nesse caso ampliou ainda mais a instabilidade, pois eles usaram os mesmos instrumentos dos outros participantes da guerra de todos contra todos (em que a massa de trabalhadores está fora desse embate), quais sejam: gerar instabilidade (por meio da divulgação que possuem um plano de intervenção) para pressionar os órgãos políticos (executivo e Congresso) e judiciários (STF) para alcançar seus objetivos (derrubar o Temer; ampliar as punições para um conjunto maior de políticos e obter mais recursos financeiros e salários).

Caso o presidente Temer não seja denunciando, o que as Forças Armadas vão fazer? E se a eleição de 2018 não resolver o problema político? Situação mais plausível, pois, provavelmente, haverá uma elevada fragmentação (muitos candidatos para a presidência) sem grandes mudanças no perfil dos congressistas eleitos. Mesmo que tenhamos um presidente eleito que tente reestruturar as instituições e a legitimidade, ele dificilmente conseguirá em virtude do perfil do Congresso. Ou seja, como os militares agirão com as “aproximações sucessivas” sem a resolução do problema político? Ou ainda caso o ex-presidente Lula seja condenado no TRF-4 e preso gerando protesto, como as Forças Armadas reagirão a essas possíveis manifestações? Caso a intervenção ocorra (transformando os militares em juízes armados), será que ficará restrita apenas a questão da corrupção? A última intervenção militar (em 1964) que seria pontual para combater a corrupção e os comunistas durou 21 anos.  

Em suma, a divulgação (como forma de pressão) da existência de um plano de intervenção militar para combater a corrupção ampliou a instabilidade, em vez de criar condições para restabelecer as instituições e a estabilidade. Em vez das Forças Armadas fecharem a “caixa de pandora” – com proposta de restituição das regras do jogo e da relação entre o público e o privado –, elas utilizaram os instrumentos de instabilidade para alcançar seus objetivos (combate à corrupção e obtenção de recursos). Isso retroalimenta esse processo, pois o jogador (militares) que acabou de entrar no jogo tem o poder das armas. Sem dúvida essa nova rodada de instabilidade é um perigo para a democracia.

Referências

FERNANDES, F. A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

FIANI, R. Cooperação e Conflito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

PINTO, E.; PINTO, J.; SALUDJIAN, A.; NOGUEIRA, I.; BALANCO, P.; SCHONERWALD, C.; BARUCO, G. A guerra de todos contra todos: a crise brasileira. In: XXII Encontro Nacional de Economia Política, 2017.

Notas:

* Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Grupo de Análise Marxista Aplicada (GAMA)

[1] Ver “A economia política dos governos Dilma: acumulação, bloco no poder e crise” (http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/discussao/2016/TD_IE_004_2016_COSTA_PINTO_et_al.pdf); “A guerra de todos contra todos: a crise brasileira” (http://www.ie.ufrj.br/images/pesquisa/publicacoes/discussao/2017/tdie0062017pinto-et-al.pdf); “Consenso da insensatez, reformas e crescimento: as formas da luta de classe no Brasil” (http://www.corecon-rj.org.br/anexos/70897FD9C90D3054C6FE4FDDBE0D91EB.pdf); “Os bancos adotam a estratégia Joesley” (https://jornalggn.com.br/blog/ronaldo-bicalho/os-bancos-adotam-a-estrategia-joesley-por-ronaldo-bicalho); “Lava Jato e crise: impactos econômicos e desestruturação institucional” (http://www.corecon-rj.org.br/anexos/D2555AE4F6E8BDA931867AC9CC473A1C.pdf); “O General Mourão disse o que o exército pensa (e isso pode ser um perigo para a democracia)” (https://carlostautz.wordpress.com/2017/09/21/o-general-mourao-disse-o-que-o-exercito-pensa-e-isso-e-um-perigo-para-a-democracia/)

[2] “As instituições são as regras do jogo em uma sociedade ou, mais formalmente, são as restrições elaboradas pelos homens que dão forma à interação humana. Em consequência, elas estruturam incentivos no intercâmbio entre os homens, quer seja ele político, social e econômicos” (North, 1990 apud Fiani, 2011, p. 3). Como bem observado por Fiani (2011, p. 03), as regras do jogo são compostas pelos “elementos formais (ou seja, regras formalizadas em documentos, frequentemente formuladas e aplicadas por alguma organização política, como o Estado) e elementos informais (regras de relacionamento consolidado pelo hábito e pela cultura de uma sociedade, em relação às quais as pessoas que as empregam muitas vezes nem se dão conta de que essas regras existem).”.   

[3] Há sim viés político nessa operação, sobretudo na “República do Paraná”. Tal situação é fruto da posição pessoal e de classes de muitos desses agentes públicos. A posição política de alguns importantes delegados da Lava Jato na campanha presidencial de 2014; a condução coercitiva de Lula; a famosa e desastrada apresentação do power point do procurador Deltan Dallagnol contra Lula; e a atual peça condenatória do Lula, proferida pelo Moro, evidenciam essa seletividade. No entanto, a unidade entre os agentes públicos vai além da disputa partidária e está assentada na ideia difusa de que o combate a corrupção salvará o país.

 

Ronaldo Bicalho

Pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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