Da Roda de Íxion para além da perda da crônica, por Eliseu Raphael Venturi

A exaustão das crônicas, como um gênero muito ligado ao cotidiano, não se deu, obviamente, pelo gênero puro e simples, mas por um exaurimento e uma saturação de uma realidade extremamente repetitiva

Da Roda de Íxion para além da perda da crônica

por Eliseu Raphael Venturi

Ao final de 2019 – em tempos pré-pandêmicos, portanto – publiquei uma crônica intitulada “A Perda da Crônica”.

Àquele momento – mal se imaginava o que viria – encontrava-me às vias de exaustão das crônicas, já encaminhando muito dos textos a uma mescla de contos, numa vã tentativa de fuga, tendo ficado, pouco depois, desde maio de 2020, já na pandemia e com alguns escritos acerca, sem publicar crônicas, por pura prostração mental e emocional.

A exaustão das crônicas, como um gênero muito ligado ao cotidiano, não se deu, obviamente, pelo gênero puro e simples, mas por um exaurimento e uma saturação de uma realidade extremamente repetitiva (fruto de uma estratégia de governamentalidade), a qual, inclusive, desde então, “pouco mudou”.

Inclusive este abatimento (que é um pouco de negação do jogo, também) é um dos resultados visados por tal estratégia, como é consabido. Como uma força muito pungente em uma estrutura de poder muito ampla, ela engendra outros movimentos, incluindo os da “resistência” e da multidão, que formam um bolo indigesto do “todo” do fazer e do ser político.

Aquele “pouco” que mudou, porém, tem um traço um tanto significativo no chamado “establishment” – e que, sendo visível, se dá na ordem do senso comum e do conhecimento. E, claro, não se dá por uma qualificação ética, por bondade, por alteridade, mas por uma corrosão de interesses, de privilégios, de prerrogativas, de ordens de prioridades e de distribuições em uma país em que princípios como o da impessoalidade não são prioritários.

Fala-se mais abertamente sobre tais estratégias daquela governamentalidade problemática, errante e aberrante, coisa que, poucos anos atrás, não se era permitido fazer. E isto é, hoje, muito saudável, muito embora esta fagulha de liberdade tenha sido aberta a um preço muito caro, é notável; preço este, inclusive, que será cobrado por muito tempo, ainda.

Na minha concepção da perda da crônica de então, eu precisava utilizar verbos impessoais e no pretérito como pulsões de um distanciamento, de um deslocamento e de uma irracionalidade que poderia me aproximar do imponderável da história, senão da deriva. Aquele eu, que era uma voz, então, já não era o indivíduo, nem o autor, mas o dito “scriptor”, uma instanciação em para Barthes. É o que a literatura permite: uma quebra do real dentro dele mesmo, posta a arbitrariedade da sua ilusão. Era o que eu dizia, assim:

“A perda da crônica no tempo passado era a perda do tempo ele mesmo, era o que se demolia. A perda da memória e da linguagem, de tudo aquilo que poderia segurar quando tudo pareceria, indiferentemente, levar: ao apagamento, ao esfacelamento, à morte. Era um golpe sutil e mordaz ao qual há muito já se acostumara. Um ataque ao espírito cronista era mais um crime contra a humanidade, um crime inapreensível pelo direito penal, um crime atípico e inatipicizável”1.

Penso, hoje, que este léxico fala muito do que vivemos, hoje, explicitamente: quase quinhentas mil mortes documentadas por um vírus (descontrolado), em um crime contra a humanidade (aguarda-se a decisão talvez jamais vinda do ente competente, aguarda-se a justiça talvez jamais realizada), e tantas outras milhares e mais milhares mortes das continuidades das tanatopolíticas do gênero, da orientação sexual, da raça, da infância, da adolescência, do idoso, do imigrante, da geografia, da classe, da renda, do emprego, da renda, e das tantas e mais tantas vulnerabilidades indocumentadas e desigualdades sociais que se somam fulminando corpos (aguarda-se a decisão talvez jamais vinda do ente competente, aguarda-se a justiça talvez jamais realizada).

Aqui eu quero apenas mencionar algo que sempre me intrigou na história da genealogia do crime do genocídio pelo jurista Raphael Lemkin: a criação da palavra que até então não existia. Sabe-se o peso disso no Direito Penal, em sua dogmática. Para além disso (ou aquém): as realidades nem sempre cabem no que estamos aptos a nominar nas formas que estão pré-determinadas nos nossos juízos, e isso não é uma justificação à evasiva, mas uma advertência.

Tudo o que hoje nos acomete não adveio sem uma grande carga de avisos ao período eleitoral, também ali, de um tão próximo e tão distante 2018, sobre os riscos de se apostar no negacionismo – dentre outros vícios – como modo de fazer o político. E não era uma admoestação partidária. Falava, então, sem qualquer pretensão visionária, por estar diante do óbvio ululante, do futuro na roda de Íxion. Era o que eu dizia, assim:

“Uma história assoreada tal como a nossa democracia contemporânea. Repleta de ingratidões, imaturidades, falta de respeito, reveses traidores e descompromissos. Vícios individuais, vícios coletivos, vícios institucionais, vícios acadêmicos, vícios privados e vícios públicos. Vícios do sistema do poder e do dinheiro que consomem o mundo da vida e da comunicação”2.

Este texto, um tanto anterior e muito mais rápido e objetivo, também ainda me soa muito apropriado ao tempo presente, e muito me entristece que ainda faça tanto sentido em cada uma de suas linhas e citações tão valiosas, desde a epígrafe de Auden, que fala dos “costumeiros maus líderes” e do “habitual sofrimento”, quando do ódio à democracia de Rancière, que, ao contrário do fatalismo de alguns biopolitólogos, nos dá algum horizonte (de existência) por meio dos Estados de direito oligárquicos, como que pequenos rasgos em um tecido hegemônico.

Estou, aqui, ao repetir textos do passado, em alguma das volutas daquela indesejável espiral repetitiva que me afastou da crônica, mas é preciso pontuar da roda de Íxion para a perda da crônica – talvez para estripar um giro a mais de um Prometeu ainda mais sórdido.

Muito ainda há a acontecer. Muitos cadáveres e muita disputa pelos corpos mortos. Vivemos estes tempos das saturações dos tempos, da profusão dos termos inventados e dos termos por inventar, de uma sede infinita de reconhecimentos institucionais, da gana de condenações capitais, de uma insuficiência capital de condenações totais.

O que foi dito deflagra-se mais e mais. O que acontecerá com a crônica?

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.

1 https://jornalggn.com.br/cronica/a-perda-da-cronica-por-eliseu-raphael-venturi/

2 https://jornalggn.com.br/artigos/eleicoes-de-2018-o-futuro-na-roda-de-ixion-por-eliseu-venturi/

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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