Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Gal: uma mulher a cantar, uma cidade a cantar, por Ana Laura Prates

Ela era assim: chique, sexy, irreverente, politizada, rigorosa, debochada, tímida, reservada, espalhafatosa, livre, leal, bonita, elegante

Divulgação – Estratosférica

Gal: uma mulher a cantar, uma cidade a cantar

por Ana Laura Prates

para o Zé Gambeli

Precisei que alguns dias se passassem e muitas lágrimas se derramassem para que eu pudesse escrever algo sobre a morte da Gal. Agora mesmo, enquanto escrevo, lágrimas negras caem, saem. Dói. Nunca vivi sem a Gal. Seu primeiro disco, Domingo, junto com Caetano, foi lançado em 1967, ano em que nasci. Desde o início estava você, meu bálsamo benigno. Cresci escutando sua voz, mas pelo menos desde Gal Tropical, já no início da adolescência, fui acompanhando cada lançamento, cada reviravolta em sua carreira. Em 1982, se não me engano, eu a vi ao vivo e a cores pela primeira vez de muitas. Foi em Araraquara, em um carnaval no Clube Araraquarense. Meu amigo Zé Gambeli e eu ficamos literalmente na beira do palco, completamente embriagados de amor por aquela aparição.

Minha turma tinha uma pegada alternativa, banquinho e violão e tal e não estava gostando muito daquela guinada que achávamos um tanto comercial. Mas bastava ela aparecer cantando: “meu coração amanheceu pegando fogo, fogo, fogo” com aquele vestido vermelho e aquela boca vermelha, que nossa festa do interior se incendiava! Era impossível não se contagiar, afinal ela nos autorizava a sermos bregas e alegres sem perder a elegância jamais. Depois, já em São Paulo, a gente economizava o ano inteiro pra comprar o LP da Gal ou nos presenteávamos mutuamente nos aniversários de cada um – já era uma tradição.

E como não lembrar do show de 1993, “O Sorriso do Gato de Alice?” no qual toda a caretice ficava pra traz. Imaginávamos, muito românticos que éramos, que seria para sempre, mas não foi. A caretice voltou, e a Gal ainda estava aqui para nos amparar. Isso pra não dizer das gravações dos clássicos de Tom Jobim e Lupicínio Rodrigues, e das canções pré Bossa Nova redescobertas nas suas interpretações magistrais. Nos anos 2000, depois de alguns anos sem gravar veio Recanto, um soco no estômago, uma retomada explorando os seus graves que a gente não conhecia ainda, nas canções exatas que Caetano mais uma vez compôs só pra ela. E, em seguida, os extraordinários Estratosférica e A Pele do futuro com canções cujas letras são verdadeiras aulas de poesia e filosofia. Durante a Pandemia, lá estava ela fazendo parceiras com os jovens da nova MPB que amamos, sempre aberta, inclusiva e sem preconceitos.

A Gal era assim. Ela nos autorizava! Se ela podia, por que não eu? Ela era assim: chique, sexy, irreverente, politizada, rigorosa, debochada, tímida, reservada, espalhafatosa, livre, leal, bonita, elegante, perfeccionista, inteligente, boa amiga, mãe, ética. E então escolheu São Paulo pra viver com sua mulher e filho. Ela dava voz às tantas mulheres que tenho em mim e já faz tempo reconheci que, sem ela, talvez eu não tivesse tido coragem de, com o passar dos anos, entender que não precisava escolher apenas uma. A Gal podia, por que não eu? Há alguns anos estávamos de novo grudados no palco, meu amigo Zé e eu, aqui em Sampa, mais uma vez sendo tietes da nossa musa. Qual não foi nossa surpresa quando depois reconhecemos nossas vozes gritando: “Gal, eu te amo!”, nas gravações daquele show. Era como uma senha nossa, que nos unia e nos amparava nos piores momentos. A gente tinha a Gal, nossa Gal: “minha voz, minha vida, minha bússola e minha desorientação”. O Zé foi a primeira pessoa pra quem eu liguei, assim que soube da morte da Gal, mas não conseguimos falar, só chorar. Várias amigas e amigos me escreviam, como se tivesse morrido alguém da minha família. Eu não tinha ideia de que minhas amigas e amigos, os verdadeiros, tinham tanta noção da minha ligação com ela.

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A Gal não sabia, mas ela era da minha família desde que nasci. Ela me autorizou a ter cabelo, cabeleira e ser cabeluda, descabelada. Ela me autorizou a amar como louco por ter um insensato coração, mas também a ir embora, sem precisar de muito dinheiro, graças deus, por ter um coração vagabundo que quer guardar um mundo em mim. Ela me ensinou que uma mulher não deve vacilar e que qualquer maneira de amor vale a pena! Ela me autorizou a amar o Tim Maia. Ela, com Marília Mendonça me consolou durante o confinamento da Pandemia, me cuidando de longe. Ela me ensinou que meu avesso, meu lado mais bonito fica escondido por detrás dos meus cabelos e da minha vida confusa. Ela me ensinou que nada do que fiz, por mais feliz está à altura do que há por fazer. Ela deu voz a todas as vozes, a mãe de todas as vozes!

E agora, durante as eleições, lá estava ela pedindo voto, fazendo votos, emprestando mais uma vez sua voz para ajudar a resgatar nossa democracia, depois desses anos tão tristes e cruéis pra nós que somos poetas, e ansiávamos o futuro! Ressuscitamos! E ela estava lá: Viva, cheia de planos, ideias e projetos.

A Gal morreu aqui pertinho de casa, tipo uma vizinha, uma irmã mais velha, uma amiga, tipo uma deusa em carne e osso, que ia envelhecendo junto comigo, perto de mim. Eu sabia que daqui a pouco a gente iria se reencontrar no próximo show. Eu sempre ia, às vezes só, às vezes bem acompanhada, com amigos, amores e filhos. Mesmo quando ia só, lá sempre encontrava com gente boa e com ela. Uma mulher a cantar, uma cidade a cantar!

A Gal morreu sem pedir licença. Estratosférica! Não era de seu estilo pedir permissão, nem preparar ninguém para seu desparecimento. Mas ela vive e sempre viverá em mim, nos meus filhos e em cada um e cada uma de nós. O século XXX vencerá e estará à altura de sua herança! Baby, baby, eu sei que é assim. Baby, baby, I love you!

Ana Laura Prates é dona de casa, psicanalista, escritora, editora e ativista. Membro do Campo Lacaniano e Pesquisadora da UNICAMP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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